Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura

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Rio de Janeiro, 1 de Novembro 2003

Sara Elena Hassan: Dinara, por onde você quer começar sua apresentação?

Dinara:. Vou começar por minhas posições teóricas. Estas revelam uma dedicação especial aos estudos do comparecimento do sujeito em variadas situações e registros, a partir de suas relações com o inconsciente, o sujeito do desejo, o sujeito do prazer, o sujeito da ciência, o sujeito da criação, entre outros. Assim, o meu trabalho na tese de Mestrado, como na de Doutorado, ambas realizadas dentro da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - um espaço universitário que acolhe trabalhos multidisciplinares - é na psicanálise em extensão, quer dizer, sua intervenção e presença na Cultura. Primeiro, trabalhei o cinema como olhar - um olhar que não é simplesmente ver, o olhar da pulsão escópica de Jacques Lacan, olhar ilusório, olhar da miragem. Depois, o cinema como uma voz silenciosa e que me faz dimensionar o quanto ela nos escuta a nós mesmos. Existem poucas citações de Lacan ao cinema. Cons

Sara: Herdeira no sentido de você poder rolar os significantes. Não no sentido de tomar posse e congelar. Porque aí tem uma questão institucional que talvez você gostaria de falar antes de continuar conversando sobre seu trabalho mais atual com o cinema.

Dinara: Ser uma herdeira dos significantes de Lacan é passá-los, o que está associado com a possibilidade de desenvolver alguns de seus conceitos e de suas noções. Quanto a questão institucional, eu não gostaria de ser porta-voz dos conflitos que já estão passados e repassados, contados e historiados. Inúmeros psicanalistas já se detiveram em escrever sobre o assunto. Há os que consideram a instituição psicanalítica um mal necessário e aqueles que querem se dedicar à formação do psicanalista.

Sara: Mas não precisa falar das instituições. Você já está dando uma posição a partir do que diz. Não precisa falar, digamos, de cronologias ou de histórias ou historietas. O que você está falando já marca sua posição neste momento.

Dinara: Acho muito importante articular os estudos da psicanálise com os significantes da cultura como o que vocês fazem na Acheronta. É uma forma de institucionalização que consiste de relações, podemos dizer, horizontais recíprocas entre integrantes de uma rede que se organizam para um intuito definido, diferente das relações verticais pelas quais, em seu estudo Psicologia de grupo e a análise do ego, de 1920, Freud revelou interesse. É que lhe pareceu importante estudar o indivíduo absorvido pela multidão. Na multidão freudiana o eixo da identificação vertical e unívoca é comparável com o que a situação hipnótica impõe. O indivíduo preso em uma multidão fica num estado semelhante ao hipnótico em que a sugestão emocional prevalece sobre suas capacidades intelectuais e críticas, assim liberado da responsabilidade. Contudo, a possibilidade de institucionalizações tem crescido, de um tempo para cá.

Sara: Dinara, "Vazio iluminado", é o título do teu primeiro livro em psicanálise e cinema. Você poderia explicar um pouquinho como chegou até este ponto e o que seria este vazio iluminado.Isto é, como você se valeu dos conceitos da psicanálise para dar essa resposta para o cinema, se é que tem uma resposta neste teu trabalho...

Dinara: O "Vazio iluminado" vem justamente da noção de Vazio resultado do encontro de Heidegger por Lacan. No sentido heidegeriano, o vaso é considerado desde o vazio e é o vazio que há nele. Lacan ressalta: o oleiro não inventa o vazio, mas na medida em que ele cria o vaso, dá forma ao vazio a partir do vazio. Por este caminho, Lacan chega ao vaso como significante que como tal dá forma ao nada, ao vazio. Reencontramos aqui sua idéia prevalente do significante criado ex-nihilo, do nada, numa estriutura de oposição representada pelo pleno e o vazio. No cinema, noto, particularmente no meu estudo de Fellini, que ele chama o circo de casa, ventre e fala dele como um vazio fascinante. Aí ele constrói a morada para o objeto sublime ou um objeto revestido de sua fantasia.

Sara: Por sinal eu assisti há pouco tempo um vídeo dele, Os clowns.

Dinara: Os clowns de Fellini, como todo palhaço, duvidam das pessoas sérias, sendo, ao mesmo tempo, pessoas verdadeiras e sem importância. Ele é essencialmente um cineasta que não trabalhava com atores, mas criava personagens, todas muito ricas e assim atravessaram o tempo e os lugares, são universais.

Sara: Mas a partir do particular...? Dos arranjos particulares do cineasta.

Dinara: É claro. Considera-se que sejam fellinianas. Este adjetivo, "felliniano", foi inclusive introduzido no dicionário da língua italiana.

Sara: Qual é a idéia do psicanalista, da caricatura do psicanalista, poderíamos dizer, também como uma personagem felliniana, quando ele fica colado aos significantes congelados?.

Dinara: (riso) Você constrói um chiste, uma brincadeira, em tal imagem que eu trouxe para nossa reflexão. Assim é que Fellini, quando utiliza a linguagem visual para criar retratos caricaturais, constrói chistes, no sentido proposto por Freud, em Os chistes e sua relação com o inconsciente, de 1905, quando disse que o chiste convoca três pessoas: uma que provoca o riso, uma que ri e outra de quem se ri. O chiste como um esclarecimento do desejo colocado à luz do conhecimento do Outro, tão bem descrito por Freud e manejado pelo artista quando concebido como uma expressão estética, através do que o humor estruturado contrasta o ridículo e o cômico, no que participa já, tacitamente, da caricatura que leva a cabo a degradação ao enfatizar, na impressão geral fornecida pelo objeto eminente, um único traço que é, em si mesmo, cômico, embora passe despercebido quando considerado apenas no quadro geral. Isolando este traço, a caricatura

Sara: Para voltar um pouco ao eixo principal da tua fala, a articulação a respeito da psicanálise e do cinema, gostaria de voltar à questão do olhar e da voz que você tem trabalhado ultimamente?

Dinara: Para mim, foi uma passagem. Eu me perguntava porque a noção do olhar como objeto de Lacan não foi suficiente, o que lhe fez introduzir a voz como objeto, na lista de seus objetos a . E, tratando do cinema que é conhecido como olhar, me interessava a voz que perpassa a imagem, o tema de meu próximo livro, Voz na luz, no prelo da editora Garamond, que também vai reeditar o Vazio iluminado.

A psicanálise é um discurso, entre outros. E mesmo que não tenha mais aquele caráter da revelação como aconteceu com Freud, do ponto de vista teórico, as questões do inconsciente que outros campos não respondem despertam um interesse muito grande. Agora mesmo estou indo para a França apresentar um trabalho em um colóquio internacional sobre Cinema e Viagem promovido pela Universidade de Aix-en-Provence. É interessante o desafio de poder falar para quem não tem o conhecimento da teoria psicanalítica porque a gente tem de inventar uma maneira própria de dizer. Fazer este trabalho implica em desconstruir os significantes do Lacan para tentar reconstruí-los junto com os nossos, procurando dar nomes aos novos fenômenos com que a gente vai se confrontando como sujeitos no mundo.

Sara: Dinara, por falar em coisas que acontecem, eu estou aqui no seu consultório e vejo que tem um jornal onde estou lendo "É preciso entrar nas redes, não apenas deitar, para romper com a província e encontrar o universal". Isto aqui é do Suplemento Cultural de um jornal, de onde?

Dinara: De Pernambuco.

Sara: Você vai querer explicar um pouquinho o que é isso de "entrar nas redes"?

Dinara: A institucionalização através de redes que vai se tecendo e ampliando é um outro modo de organização grupal que não favorece os fenômenos hipnóticos. Deve ser a "lóqica coletiva" que, Lacan, para explicá-la no seu artigo O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada - Um novo sofisma, usou o sofisma dos três prisioneiros: o diretor da prisão faz comparecer três detentos de sua escolha e lhes comunica que deve liberar um dentre eles. Propõe que cada um deles seja marcado nas costas por um disco escolhido entre cinco cores, três são brancos e dois são pretos. O primeiro a poder concluir sobre sua própria cor deve beneficiar-se da medida liberatória. A solução perfeita para o sofisma, segundo Lacan, é a seguinte: "Eu sou um branco, e eis como o sei. Se eu fosse um preto também, o outro, tendo reconhecido imediatamente que ele é um branco, teria saído imediatamente, portanto "

Sara: Quer dizer que tem uma singularidade no seu trabalho: você trabalha, ao mesmo tempo, em rede e sozinha.

Dinara: Sozinha porque o trabalho na prática psicanalítica e no ato de escrever é solitário.

Sara: O solitário não é o isolado, sem dúvida. Você está perfeitamente conectada através desta idéia de redes.

Dinara: Sim.

Sara: Você faz uma construção pessoal para ocupar esse espaço que permite sua história, sua formação a partir da psicanálise e com seus objetivos.

Dinara: Claro. Sabemos que não existe o "ser psicanalista". É a única certeza antecipada. Pois, se a gente quer praticar a psicanálise o caminho é mesmo solitário, para que não precipitemos o momento de concluir sem passar pelo momento de compreender, nem dar lugar ao instante de olhar, que o antecede.

Sara: Vamos dar uma parada aqui, no solitário acompanhado de toda esta bagagem da psicanálise. O que fazer com ela?

Dinara: Existe a polaridade do coletivo e do individual, do particular e do universal. É universal a violência de um sujeito exilado de sua própria morada. O universal é o tema do individual.

Sara: Este "exílio de sua própria morada" seria uma forma bela de falar do inconsciente.

Dinara: A violência que é o objeto de trabalho em uma psicanálise, esta de não habitar a sua própria morada, também é o objeto do artista. E disso resulta uma obra que produz a perplexidade, o espanto. Fellini que fez a passagem do filme de arte para o filme comercial é visto e adorado por espectadores de diversas partes do mundo, soube exprimir este permanente estranhamento da intimidade. Existe o estranho sujeito que promove a história da violência e da guerra. A violência maior é esta mesmo, da humanidade assimilar uma barbárie e que, como Freud destaca na Psicologia de grupo e análise do ego, ela tem uma determinação no eu.

Sara: Bom ponto de parada, aqui. Parece que a passagem pelo cinema faz com que a forma como você nomeia o inconsciente esteja marcada justamente por sua experiência, pelos teus estudos sobre o cinema, voz e olhar. Muito obrigado!

Dinara: Espero que toquem alguém para prosseguirmos conversando.

Sara: Mas, antes de terminar, você pode dar mais dados sobre sua trajetória?

Dinara: Estou radicada no Rio de Janeiro, onde pratico a psicanálise, o que comecei há 30 anos atrás, em Recife. Lá nasci, cursei pedagogia, na Faculdade de Filosofia do Recife e psicologia clínica na Universidade Católica de Pernambuco. Trabalhei, vários anos, na Clínica Psicológica da FAFIRE - para atendimento de crianças e adolescentes -, no Centro Terapêutico Psiquiátrico - uma experiência pioneira de hospital psiquiátrico com portões abertos para atendimento de pacientes do INSS -, no Hospital Pedro II - onde minha prática da psicanálise foi orientada por psicólogos e psiquiatras, profissionais da saúde mental, entre eles, alguns haviam estudado em Paris ou em Louvain, de onde trouxeram os significantes de Jacques Lacan que eram, na época, uma novidade. Depois, estudei em Paris, como estagiária do Centre Alfred Binet, dirigido pelos psicanalistas Serge Lebovici e René Diatkine, na ocasião, o presidente e o vice-presidente da IPA.

Sara: Isto se refere as origens de sua formação. Mas, de lá para cá, aconteceu muita coisa.

Dinara: Esta experiência em Paris me proporcionou uma abertura muito grande. Pude rever aquela noção que se tinha do psicanalista encastelado no consultório, o que me empurrou na direção da psicanálise extensiva, vertente que desenvolvo até hoje, pela possiblidade de escutar significantes que indiquem a dinâmica do inconsciente. Na verdade, o que restou desta feliz oportunidade de ter ouvido Lacan foi uma transferência de trabalho. E é uma coisa muito forte. Fiz uma parte de minha psicanálise com o Guy Rosolato, que o acompanhou até o "passe", o motivo de sua divergência com a escola de Lacan. Tudo isso me fez uma trabalhadora da psicanálise.

Sara: De alguma maneira sâo os significantes da psicanálise que tem trabalhado você nesses anos todos, ao longo de seu rico percurso que hoje esta deixando passar para os leitores de Acheronta . Muito obrigada!.

dinaraguimaraes@ig.com.br

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
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