Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Sobre a alteridade e a exclusão no trabalho
Marcio Luiz Miotto

Imprimir página

"E eu para ser coerente
Estou preso à incoerência que à vida
está latente"

Victor Tartas -

O "Homem" moderno, como desenvolve Michel Foucault em 'As Palavras e as Coisas' (1966/1992), configura-se como uma 'forma precária', onde, para garantir sua 'existência', é dado como finito em relação a uma alteridade que lhe serve como fundamento, ao mesmo tempo em que é essa uma alteridade relegada ao que será Exterior. Assim, o homem é um ser que vive, que trabalha e que fala; ao mesmo tempo, não é sujeito de sua vida, e sua língua e os modos de produção se desenvolvem de uma forma que não garante o homem como algo no 'centro' da existência. O homem moderno é 'sujeito' do conhecimento, ao mesmo tempo em que é 'objeto'. É posto como fundamento de todo conhecimento, ao mesmo tempo em que se encontra no elemento das coisas empíricas. O cogito é circundado pelo impensado, e a cada recuo ao passado em busca de uma origem que dê uma resposta última, o saber depara-se com a necessidade de um novo recuo.

Foucault desenvolve de várias maneiras diferentes a 'precariedade' dessa curiosa formação que surge a partir do final do século XVIII e que torna um saber sobre o Homem possível. Já no primeiro prefácio à História da Loucura (1961/1999), Foucault afirma que rumar a essa dimensão da alteridade faria a razão ocidental medir-se em sua própria desmedida, e essa 'desmedida' traria mais uma consideração sobre os limites do que sobre a identidade de nossa cultura:

Poder-se-ia fazer uma história dos limites - desses gestos obscuros, necessariamente esquecidos logo que concluídos, pelos quais uma cultura rejeita alguma coisa que será para ela o Exterior; e, ao longo de sua história, esse vazio escavado, esse espaço branco pelo qual ela se isola a designa tanto quanto seus valores. (1961/1999: 142)

Ou seja, 'medindo-se' em sua 'desmedida', e elegendo o que lhe será exterior, a 'forma-homem' adquire existência1. Exterioridade essa que será tudo aquilo que circunda o homem e que o define, como num giro: a loucura, o inconsciente, sua vida, seu trabalho, sua linguagem, sua história, sua cultura... O homem moderno passa a uma oscilação constante entre 'sujeito' e 'objeto' que torna comum pensar-se em termos de 'consciência', de 'verdades terminais', 'alienação', etc..

Além desse tema em que a alteridade é dada como exterioridade, Foucault desenvolve no último capítulo de História da Loucura (1961/1995) e na segunda parte de Doença Mental e Psicologia (1962/1984) o tema do reconhecimento: ou seja, aquilo que é Outro e Exterior é algo que não pode ser reconhecido, ou é analisado sempre em termos da negatividade e do desvio (e não em termos de uma 'positividade' e de uma 'realidade'). O que a psiquiatria e a psicologia, nesses textos, são incapazes (ou ao menos não 'optam') por 'reconhecer'? Trata-se de uma "familiaridade insidiosa" de uma "verdade comum" (1961/1995:512), verdade comum que é essa que prende o homem à sua alteridade. A 'luz' da razão que ilumina a loucura, na fórmula de Foucault, só é possível a partir da 'escuridão' que ela dissipa.

Finalmente, pode-se caracterizar a alteridade como estranheza. Tal fórmula pode ser encontrada em um texto de Peter Pal Pelbart (2002). Ilustra-se nesse texto inicialmente a grande presença de nômades no centro imperial chinês exatamente durante a construção da Muralha da China (que serviria para evitar a presença de bárbaros). Tais nômades não demonstravam a intenção de tomar o palácio imperial ou fazer qualquer invasão; em seu silêncio, enquanto estavam próximos à cidade, não tinham nenhum esforço de conhecer os costumes dos chineses, ao mesmo tempo em que tinham um modo de vida totalmente outro, esquisito. Modo de vida que se imprime numa estranheza, numa esquisitice, frente ao Império, exatamente por sua presença insistente e por não fazer questão de uma 'interação'. Um 'território subjetivo' totalmente estranho às territorialidades do Império. Frente a essa estranheza, Pelbart pergunta:

Como pode o Império lidar com um território subjetivo de tal natureza? Mas como pode ele deixar de lidar precisamente com isso? Por mais que um Imperador tenha muralhas concretas a construir, Império algum pode ficar indiferente a essa dimensão subjetiva sobre a qual ele se assenta primordialmente, sob pena de esfacelar-se -o que é ainda mais verdadeiro nas condições de hoje. (PELBART, 2002)

Ora, mais do que muralhas materiais, o Império deve lançar mão de aparatos compatíveis com uma captura de subjetividade, uma captura de desejo, de "maneiras de ver e de sentir", enfim uma captura de formas de vida. Para Pelbart, mais do que capturar a consciência e o inconsciente, nosso 'Império' atual, o Capital, "não só penetra nas esferas as mais infinitesimais da existência, mas também as mobiliza, ele as põe para trabalhar, ele as explora e amplia" (2002). O capitalismo, mais do que manipular ou criar diferenças de classes, produz subjetividade. O próprio Império, para Pelbart, se nomadizou, constitui-se numa mobilidade em rede, onde é uma questão preponderante ao indivíduo a ameaça de ser 'desengatado', 'desconectado'.

Como resultado, no contexto do trabalho não é mais o corpo de um trabalhador 'disciplinado' que é necessário, mas sim exige-se ao trabalho a própria alma, a própria subjetividade, essa que se mobiliza, é posta em ação. Ao invés de 'disciplina', o 'controle' é o que entra em voga. Ao invés do perito formado numa rígida educação, e pronto para os projetos de toda uma vida, exige-se agora a formação continuada e pessoas questionadoras e 'críticas'.

Toda uma nova linguagem a respeito de como deve ser o trabalhador, como deve comportar-se, vêm sido criada e difundida. Termos como 'criatividade', 'dinamismo', 'competência interpessoal', 'inovador', 'treinamento' e 'qualificação' são corriqueiramente utilizados, mostrando que o homem deixa de ser um 'recurso humano' e agora torna-se uma 'pessoa' que deve ser gerida em todos os aspectos de sua vida. Tal gestão da própria vida é consoante com a 'nomadização do Império', que não permanece mais sob a rigidez de uma muralha, mas sim num movimento constante de captura.

Movimento de captura que busca absorver constantemente as esferas da 'exterioridade', do 'reconhecimento' e da 'estranheza', que mencionamos, mesmo que seja para transformar a produção singular num mero "exotismo ético de consumo descartável" (PELBART, 2002).

Essa figura da alteridade, no advento do que Deleuze chama de "as sociedades de controle" (DELEUZE, 1992), passa a ter um papel especial. Nas empresas, ao menos no discurso ou nos casos ideais, é o 'diferencial' que importará, ao invés do indivíduo massificado. Ao invés de uma estrutura rígida, buscar-se-á o perfil 'maleável'. Em lugar de decisões heterônomas vindas de uma estrutura piramidal e burocrática, é favorecida a 'autonomia' de decisões. Enfim, em lugar do trabalhador ser alguém que constitui-se como separado das decisões da empresa, coisificado ou tornado 'estranho a si'2 - ou seja, dos três modos, alienado -, buscar-se-á o indivíduo que é sociável, integrável aos demais, maleável, dinâmico, 'espontâneo' e 'livre'.

Sendo não mais produto o que é material, mas sim a própria subjetividade e a informação, os 'bolsões' de exclusão adquirem uma faceta interessante, nessa 'economia de produtos subjetivos': primeiramente, restringem-se esses bolsões às minorias, àquelas que não tem acesso (ou não desejam possuir, ou oscilam entre o acesso e sua ausência) a um modo de subjetividade massificado; em segundo lugar, essas minorias configuram-se praticamente numa maioria, de certo modo alheia ao movimento do 'Império'. São essas questões fundamentais, como afirma Guattari (1986:26)3, questões de um nível subjetivo que interferem numa possível mudança social.

Em consonância (e num paradoxo) com esse fator das minorias 'alheias', está o fato de que tal massificação crescente de valores, seguindo o mesmo movimento de captura que resulta em 'exotismos éticos' (na fórmula de Pelbart), podem ser também acrescentados ao aparecimento desses novos valores da empresa. Ou seja, da mesma forma que um conjunto de rap de um presídio pode encarnar a voz e a bandeira de determinados setores marginalizados, pode também ser capturado como mero artefato exótico de apreciação popular; mutatis mutandis, conceitos como 'liberdade', 'criatividade', 'espontaneidade', 'inovação', conceitos que indicariam mudanças sociais e heterotopias, podem ser configurados como conceitos perfeitamente enquadrados no movimento de 'captura' desse 'Império nômade'. Conceitos cuja permissão de serem utilizados ocorre, porém num campo semântico delimitado claramente numa não contestação das atribuições do capital.

Têm-se, portanto, um duplo movimento: o de uma produção de subjetividade que se depara cada vez mais com 'grandes minorias' não 'capturadas', e o movimento de captura de uma produção de subjetividade que busca uma 'inclusão' da alteridade, porém num certo movimento de reterritorialização. Tudo aquilo que é Outro passa por um processo de adequação, de inclusão ao "sistema de significação dominante", no dizer de Guattari (1986: 27). O 'diferencial', o 'criativo', é valorizado e aceito, porém sob limites que não contestem um processo de mudança mais radical que o comumente ditado. Um processo quimérico, onde a importância de significações verdadeiramente 'esquisitas', que poderiam "se estender (...) numa sociedade de outro tipo", é subjugada à reintegração da significação numa

poderosa fábrica de subjetividade serializada, produtora destes homens que somos, reduzidos à condição de suporte de valor - e isso até (e sobretudo) quando ocupamos os lugares mais prestigiados na hierarquia dos valores. (GUATTARI & ROLNIK, 1986:12)

Acompanhando a reflexão deleuziana a respeito de Foucault4, encontramos várias mutações que implicam no advento do chamado 'Império', no artigo de Pelbart. Mutações que interferem diretamente em um novo tipo de Trabalho, onde a fábrica cede lugar à empresa, a heteronomia à autonomia, as estruturas hierárquicas piramidais a estruturas horizontalizadas, etc.. A questão da alteridade, tão cara ao século XX, passa a ser da ordem de um movimento de inclusão, onde a diferença seria valorizada de um outro modo: Ao invés de pertencerem a um âmbito de exterioridade, de ausência de reconhecimento e de estranheza, os modos de subjetividade 'marginais' são atualmente conduzidos a seus 'opostos' - a inclusão, o reconhecimento e a familiaridade. Assim postos, não causam 'ameaça' alguma. "Ameaça" no sentido sugerido por Guattari, em que a dinâmica do louco, da criança, do marginal e da 'sociedade arcaica' implicam, sem sua 'captura', numa sociedade "de outro tipo" (como vimos), num mundo inacessível como o dos nômades citados por Pelbart: um mundo sem utopias impossíveis, porém de múltiplas heterotopias.

Notas

1 Não mais sendo definido como finito em relação ao Infinito, como no século XVII, agora o homem passará a uma 'finitude constituinte': ao mesmo tempo em que é 'sujeito' de conhecimento, está 'exposto' ao acontecimento.

2 Como explicita Guerreiro Ramos (1983:56), explicando os vários significados do tema da alienação

3 "(...) uma mudança social a nível macropolítico, macrossocial, diz respeito também à questão da produção da subjetividade, o que deverá ser levado em conta pelos movimentos de emancipação. Essas questões, que pareciam ser marginais (...), com o nascimento de imensas minorias que, juntas, constituem a maioria da população do planeta, tornam-se questões fundamentais"

4 Em que a 'sociedade disciplinar' está cedendo lugar a uma 'sociedade de controle', em 'Sobre as Sociedades de Controle' (1988); ou o saber 'moderno' depara-se agora com a questão da 'morte do Homem', em 'Sobre a Morte do Homem e o Super-homem' (1988).

BIBLIOGRAFIA

DELEUZE, G. Sobre a Morte do Homem e o Super-Homem In Foucault. São Paulo, Brasiliense, 1988.

DELEUZE, G. Post-scriptum Sobre as Sociedades de Controle In Conversações: 1972-1990 . Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

FOUCAULT, M. História da Loucura (1961/1972). São Paulo, Perspectiva, 1995.

FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia(1962). RJ, Tempo Universitário, 1984.

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas (1966). São Paulo, Martins Fontes, 1992.

FOUCAULT, M. Prefácio (Folie et Déraison) (1961) In Michel Foucault - Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise (Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica - cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.

PELBART, Peter Paul. Trópico - Poder sobre a vida, potência da vida. Artigo publicado em 2002 pela revista francesa 'Multitudes' nº 9 e reproduzido no arquivo da 'lista de discussão O Estrangeiro' http://br.groups.yahoo.com/group/estrangeiro/

RAMOS, Guerreiro. Administração e Contexto Brasileiro. Rio de Janeiro, ed. FGV, 1983.

Volver al sumario del Número 18
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
www.acheronta.org