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Resumo: As linhas que se seguem são uma tentativa de ler a escritura de Freud, perseguindo suas reflexões e idéias sobre a problemática da guerra e morte e os impasses do pacifismo. A intenção é a de fazer com que esse rastreamento, acrescido da leitura de outros autores em cujas obras encontramos, também, uma preocupação para com a violência e a crueldade crescentes na modernidade, ilumine nossas próprias inquietudes frente aos fenômenos coletivos mais inquietantes da contemporaneidade.
Da operação guerreira ao extermínio
Sob o impacto da Primeira Guerra Mundial, Freud, acometido por um forte sentimento de perplexidade e desilusão diante da desrazão que aflorava no coração da civilização européia, indagava-se atônito: por que todas as conquistas intelectuais e científicas da cultura moderna não foram suficientes para diminuir a violência e a destruição entre os homens? Com um tom de profunda descrença no poder de liderança das nações mais avançadas técnica e cientificamente, e profundamente decepcionado com intelectuais e cientistas que, então, demonstravam uma clara afinidade para com o infernal, transpõe para o papel sob o título, "De guerra e morte. Temas da atualidade", suas primeiras elaborações sobre a violência e a categoria do Mal na ordem dos fenômenos coletivos. Em seguida, articulou esses dois eixos temáticos à atitude do sujeito do inconsciente para com a morte, criando, assim, condições para pensá-los, exclusivamente, a partir do que observava como analista.
O objetivo não era o de explicar a guerra a partir da psicanálise, mas, ao revés, tomar a destruição e a violência como realidades do psiquismo, e disso retirar conseqüências teóricas. A lógica de sua argumentação - baseada na experiência clínica que lhe abriu as veredas do inconsciente e que fez da pulsão o limite de sua disciplina - foi precisa: se no homem, amor e ódio intensos convivem conflitantes (ambivalência de sentimentos), e as pulsões são aquilo que são - nem boas nem más, dependendo do destino que seguem na história do sujeito e da civilização -, então a guerra, a destruição e a desumanização dos laços sociais não são apenas momentos efêmeros, fadados à superação no futuro. Muito ao contrário, são acontecimentos inexoráveis que incorporam um elemento radicalmente social e histórico.
Moral da história: impossível erradicar o mal. Mesmo porque alguns impulsos considerados como maus são de natureza primitiva. Por exemplo: não existe sujeito sem uma boa dose de agressividade e crueldade; o que é diferente das manifestações que ocorrem no registro da agressividade não erotizada tais como o assassinato e o extermínio. A insistência de Freud em considerar - a partir da construção do mito de Totem e tabu - que o direito e a lei foram originários de transformações da violência, condensa, de forma precisa, o duplo sentido deste termo em sua obra. Além de designar a força que sustenta os processos simbólicos e as relações entre os homens, indica, também, a presença bruta do elemento mais arcaico desta força nas operações destrutivas e outras assemelhadas que, sistematicamente, inundam de sangue e dor a civilização.
Convém lembrar as reflexões de Freud sobre o lugar da guerra através dos tempos, que mostram que, o sujeito moderno e o selvagem das cavernas podem ser igualmente bárbaros, cruéis e malignos. A psicanálise desconstruiu a idéia de uma "superioridade" da civilização mais avançada sobre as mais primitivas, passando a defender a tese de uma certa unidade da espécie. Foi em nome desse princípio, que Freud trouxe à luz o conceito que batizou com três nomes - pulsão de morte, pulsão agressiva e pulsão de destruição - passou a perscrutar "a inclinação inata do ser humano ao ´mal`, à agressão, à destruição e, com elas, também à crueldade" 3 O que nos disse ele sobre esta pulsão? Que ela trabalha diabolicamente em silêncio, em nosso interior, buscando o retorno ao estado inanimado. Fusionada à pulsão de vida, dissolve organizações e transgride os ditos para dar lugar às novas e ruidosas manifestações das pulsões sexuais (substrato principal das pulsões de vida). Há, portanto, uma positividade indiscutível no trabalho da pulsão de morte. Daí porque o conflito entre Eros e Tanatos ser imprescindível à civilização.
Uma fusão antinômica. Caso desfeita, a pulsão de morte se configurará como destruição em estado puro - agressividade não erotizada - cuja força assassina ficará a serviço da lógica do aniquilamento do outro, base de qualquer guerra. O mito da pulsão de destruição - o que dissolve e destrói, ruidosamente, tudo o que a vida constrói - contém o horror que, em suas múltiplas transfigurações revela sobre o caráter inexpugnável da Guerra no reino dos animais pensantes. Isto é o que encontramos enunciado em "Mal estar na civilização", quando Freud questiona a vocação da humanidade de "satisfazer no outro a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, tirar-lhe a posse de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo" 4. Portanto, a exploração econômica, a instrumentalidade moderna do Estado sobre o corpo, segundo suas próprias necessidades e circunstâncias, o racismo, a humilhação do outro, são figuras da crueldade e da violência inerradicáveis da espécie.
Antes mesmo de ter introduzido o conceito de pulsão de morte no coração de sua teoria, Freud, acusou o pior: o conflito de 1914 entre os Estados modernos, não era apenas tão cruel e implacável quanto os que o precederam, mas o mais destrutivo. Os desenvolvimentos técnico-científicos geram os meios de destruição mais devastadores de todos os períodos históricos. Um primeiro paradoxo: o perigo mora ao lado do progresso. Ciência e tecnologia protegem o homem das forças da natureza, trazem bem-estar e mudanças consideráveis à civilização; mas, por outro lado, concedem poderes desmesurados ao "homem-lobo", essa espécie de "deus de prótese" 5 que sacia o desejo de morte mergulhando na barbárie.
A crítica freudiana ao uso perverso das conquistas cientificas pelo Estado que inclui em seus cálculos de poder a crueldade arbitrária - promover ações violentas que sob sua vigência não se configuram como tais - mostrou-se premonitória diante dos acontecimentos em Auscwitz e Hiroshima. O campo de extermínio introduziu na cultura a prática da morte planificada em conluio com a civilização técnico-científica. A bomba atômica que caiu sobre o solo japonês mostrou, de vez, que as forças que aparentemente representavam a modernidade, na verdade eram igualmente arcaicas e bárbaras.
Jacques Lacan, que tinha como fundo contemporâneo a tragédia do Holocausto, seguiu os passos de Freud: circunscrevendo, em sua Proposição ao analista de sua Escola, o real em jogo na constituição dos campos de concentração e de extermínio, mostrou que "aquilo que a humanidade viu deles emergir, representa a reação de precursores com relação ao que irá se desenvolver no remanejamento dos grupos sociais pela ciência, em sua tentativa de universalização e normalização da sociedade" 6. Esta abordagem é muito útil para se entender certos fenômenos, como a segregação, que se tornaram cruciais em nossa época e no atual estágio de predomínio de um certo discurso da ciência que alimenta o sonho de normalização da sociedade. Nessa mesma linha de reflexão, J. Hassoun mostrou, da maneira mais convincente, que a invenção de máquinas fabricantes de cadáveres - que os faziam entrar no ciclo da produção/consumo (reciclagem sob a forma de sabão) - não foi apenas um acidente único da História, mas é inerente ao próprio progresso técnico-científico, a serviço do ideal de construção de uma sociedade sem outro 7.
A guerra é a experiência maior de confronto com o limite da morte. Perscrutá-la através dos tempos descortina um outro paradoxo: as sociedades primitivas são profundamente mais éticas e civilizadas que as modernas, na medida em que estas descartam mais facilmente a vida e desacralizam a morte. Ainda que no inconsciente não haja representação da morte, - o que dificulta dar à guerra o lugar na realidade que lhe é devido -, e que o homem seja inclinado ao assassinato e ambivalente para com aqueles que se ama, a experiência da perda exige o trabalho de luto do objeto, mesmo quando este é um inimigo ao qual endereçamos nosso ódio. Enquanto o guerreiro primitivo responsabilizava-se pela morte infligida ao inimigo, e realizava o luto através de um conjunto de práticas cerimoniais e tabus que buscavam expiar a culpa pelo homicídio, nas sociedades ditas modernas vigora o desrespeito pela morte, no sentido mais amplo do termo.
O último filme de M. Scorcese, Gangs de Nova York, ilustra muito bem a primeira situação. O Açougueiro, personagem violento, primitivo, mas não desprovido de uma concepção particular de valor e honra, enquanto chefe da gang nativista, mantém presente a lembrança do arqui-inimigo - o chefe da gang de imigrantes irlandeses que ele próprio matara numa operação guerreira. É o que se depreende nas cenas em que, endereçando o olhar para o retrato do morto, o Açougueiro reverencia as virtudes e qualidades do inimigo. O cuidado que dispensa ao filho do morto, acusa a singularidade ética de preservar, numa sociedade de iguais, o lugar do Outro. Já o filme de R. Polansky, O pianista, exemplifica o modo como o descaso pela morte está no cerne da invenção do extermínio. Ao reproduzir em seu filme a famosa foto do general Jurgen Stroop da SS nazista tomado pelo gozo, olhando com escárnio e desdém para o Gueto de Varsóvia arder, o cineasta polonês congela o espírito mesmo de um tempo marcado pela tecnologia moderna da morte que, talvez, conduza à extinção do que hoje conhecemos como raça humana.
O que é certo é que a invenção moderna do extermínio em massa figura o ato de destruição da vida, após negar a questão do seu sentido - assassinato da ordem simbólica -, matando a própria morte. Num estudo sobre o extermínio armênio no início do século XX, a psicanalista Hélène Piralian considerou, com acuidade interpretativa, que o genocídio visa destruir a Morte como estrutura simbólica que torna possível a transmissão transgeracional. 8
Em resumo: as considerações da psicanálise sobre a guerra e práticas assassinas inauguradas na modernidade, estabelecem relações diretas entre as pulsões de morte - em sua dimensão de negatividade - e as transformações desse tempo histórico, a saber: (1) desenvolvimento crescente da tecnologia e da ciência que, no lugar de oferecer bem-estar e segurança, fomenta a barbárie; (2) o ineditismo da foraclusão da morte que poderá levar, cada vez mais, à total destruição do simbólico.
Política como barbárie
No início da década de 20, Viena estava sendo tomada pelo nazifascismo. Foi sob este tempo histórico que Freud sistematizou e aprofundou a incursão da psicanálise no campo da política. Ainda que raramente esse termo apareça designado como tal em sua obra, "Psicologia das massas e análise do eu", "Mal-estar na cultura", e "Moisés e o monoteísmo" são textos que testemunham sua inquietações para com a política do ódio que então se perfilava no leste da Europa. Inaugurando esta trilogia, o primeiro texto circunscreve a constituição da massa moderna e do outro, movimento pelo qual se forja uma identidade nacional, baseada na defesa contra a alteridade. O Estado moderno está vinculado à fabricação de uma unidade fictícia, com o objetivo de perpetuar a dominação real sobre todos. A coesão comunitária está na dependência direta dos afetos - amor e ódio - orquestrados pela ordem de amor entre os idênticos e ódio ao outro. Ou seja, a palavra de ordem do Estado a seus cidadãos é reprimir a hostilidade e o ódio contra o próximo, a quem se deve amar, e dirigi-los, justamente, à "malvada" alteridade.
Este fenômeno grupal de amor aos seus e ódio ao outro, que conhecemos como a lógica do narcisismo das pequenas diferenças, base da constituição do "nós" e do outro, se levado ao paroxismo desemboca, inevitavelmente, na segregação do estrangeiro, outro a quem os idênticos endereçam o ódio que circula entre eles próprios. O racismo traduz o ódio à diferença em nome da in-diferença entre a maioria compacta. Situado assim, talvez pudéssemos afirmar, em base ao dispositivo político de extermínio, que o racismo se alimenta de algo mais além do narcisismo das pequenas diferenças: ele emerge do lugar onde vigora a eliminação de qualquer diferença, do mundo "ilimitado" que é a principal das ilusões do totalitarismo.
O horror ao não-familiar tornou-se, na modernidade, uma arma política com a qual se comete o assassinato da alteridade, conforme a expressão de Emanuel Levinas. Para este filósofo o Shoah (em hebraico catástrofe, termo usado para se referir ao Holocausto) foi totalmente orquestrado pelo Estado que, alérgico ao Outro, recusa violentamente os múltiplos rostos deste.
No contexto desta interpretação, uma passagem de Mal-estar na cultura adquire um peso maior. "Perguntamo-nos o que farão os sovietes, depois de exterminarem todos os seus burgueses?" 9. Nesta indagação, estava contido o futuro que a humanidade iria viver: no empenho de alcançar a unidade almejada - todos iguais a Um - a soberania moderna caminhou da segregação ao extermínio. A vontade de uniformização dos indivíduos manifesta pelo nazismo, pelo fascismo e pelo stalinismo, se inscreve para além da tendência de apagar a diferença no interior do grupo e passá-la para fora. Ela propõe o pior: a eliminação de qualquer diferença, mesmo quando fora do conjunto.
Os argumentos de Freud sobre a segregação constitutiva do outro passam por uma profunda reflexão em "Moisés e o monoteísmo". Trilhando, pelo avesso, os passos da barbárie política que se anunciava no horizonte, Freud recorre à figura paradigmática do judeu, o ancestral unheimlich das massas, para refletir sobre o ódio à diferença. A situação histórica da diáspora, a vivência contínua de deslocamentos geográficos e de renúncias do povo judeu era uma espécie de sinal negativo para o que insistiam em projetos totalitários. A errância e o nomadismo milenar ameaçavam o sonho de um império nacional-socialista (lembremos que a Solução Final envolveu também os ciganos). Disse Freud que, não por acaso, o Partido Nacional-Socialista precisou de seu complemento - o anti-semitismo - para a construção progressiva de uma alteridade demonizada. Sabemos que o discurso médico e social, largamente usado pelos nazistas na cultura austríaca fim-de-século, anunciava o corpo do judeu em termos absolutamente depreciativos e paranóicos. Ao mesmo tempo, era construído o ideal de raça pura para o povo alemão e traçadas as metas básicas do totalitarismo que procurariam eliminar, para sempre, os "objetos" fora da norma.
Se a análise freudiana sobre o mal-estar da política de seu tempo parece verossímil, podemos, então, buscar uma ajuda estrangeira em outros campos do conhecimento, onde existe uma preocupação mais sistemática em pensar a contemporaneidade e suas estruturas político-estatais. Trata-se de encontrar metáforas e exemplos conclusivos que explicitem de forma contundente a transfiguração, que a psicanálise acusa, do horror ao estrangeiro no mundo contemporâneo. Atravessar a fronteira entre o psicanalítico e os estudos filosóficos-políticos representa uma possibilidade fértil de apreender melhor as pulsões presentes nos processos de destruição e construção da cultura.
Giorgio Agamben é um desses pensadores-escritores que traz uma contribuição de peso à crítica ao poder soberano. Resgatando uma figura do direito arcaico romano - Homo Sacer - Agamben circunscreve, no coração da sociedade moderna e contemporânea, nas quais milhões de seres humanos são transformados em objetos de aniquilamento, o homem sacro, a vida exterminável ou vida nua, a vida que não merece ser vivida. O Homo Sacer ocupa uma zona de indiferenciação, fora do espaço jurídico-político, e, ao mesmo tempo funda a possibilidade da cidade dos homens. Condenado por algum delito, ele não pode ser sacrificado, mas quem o matar, a rigor, não pode ser acusado de homicídio.
A análise magistral de Agamben da política ocidental moderna inclui as metamorfoses da vida sacra e os mecanismos que a criam e recriam incessantemente. Discípulo de Foucault, o filósofo italiano afirma que a biopolítica - o processo de inclusão da vida natural na política de Estado -, tornou-se uma verdadeira tanatologia, e que o campo de extermínio não pode ser considerado apenas um fato histórico do passado, mas sim a matriz escondida do espaço político em que vivemos. Na contemporaneidade, os campos de concentração e refugiados traduzem a vontade coletiva de desumanizar o outro, transformá-lo, conforme anunciara Hitler, em piolho. Por isso mesmo, o novo paradigma da modernidade será esses campos que se inserem no limiar de indiferenciação, ao mesmo tempo de exclusão e inclusão no espaço político-jurídico. Em todos eles, o que prevalece é a impossibilidade do recurso à Lei que impede a redução do homem à vida nua, à vida eliminável e descartável.
Entre os inúmeros exemplos de vida nua que se pode encontrar no mundo atual, os judeus, o "povo que se recusa a ser integrado no corpo político nacional, são, para Agamben, os representantes, por excelência, e quase símbolo vivo daquela vida nua que a modernidade cria, necessariamente, no seu interior, mas cuja presença não mais consegue tolerar" 10. Depreende-se da análise agambeniana que o nazismo, na tentativa de produzir o Um, procurava com a sistematização do extermínio, libertar-se de uma sombra intolerável.
O que é bastante instigante e fascinante no pensamento deste filósofo italiano, é que ele considera que o processo de inclusão da vida nua na política, não é uma exclusividade dos regimes totalitários de exceção, mas está inscrito, também, no conteúdo dos direitos do homem, que incluem até mesmo o nascimento como a categoria que deve ser absorvida pelo espaço político. Em um estudo bastante elucidativo, Ricardo Forster mostra que Agamben descortina a cumplicidade profunda que existe entre Estados modernos, supostamente democráticos do Ocidente, e a lógica da exclusão capaz de converter em vida nua um grande segmento da população (por exemplo: eliminando os doentes mentais e os portadores de doenças hereditárias) 11. Nesse sentido, diríamos que Agamben é bastante freudiano: uma organização, qualquer que seja, possui um potencial virtual de violência contra o outro.
Como Freud, Agamben também assinala que o dispositivo moderno de negação da morte gera o colapso de qualquer tentativa de simbolizá-la, o que impede a civilização de produzir novos bens simbólicos e outras modalidades de laços sociais. O filósofo mostra, com muita propriedade, como na sociedade contemporânea, a presença massiva e contínua dos extermínios reduziu a morte a uma simples estatística numérica que tomou o lugar da antiga presença sagrada da morte nas sociedades primitivas. Este ponto de analogia entre o gesto filosófico de Agamben e a análise freudiana sobre a guerra e morte, merece ser destacado: incide diretamente na comporta que se abriu à destrutividade desembestada que marcou a ferro e fogo o rosto do Século XX.
Pacifismo, responsabilidade e ética
Voltando a Freud, resta pensar de que modo ele afirmou sua oposição às explosões de barbárie que a guerra carreia e quais foram as estratégias que procurou delinear, para minorar a compulsão de matar e destruir que habita o fundo do homem.
A bússola mais precisa para abordar esse tema, está no debate que Freud travou com Einstein em "Por que a guerra?". Aqui, ele endereça ao físico a seguinte questão: "Por que nos revoltamos tanto contra a guerra, o senhor e eu, e tantos outros, por que não a aceitamos como uma entre outras tantas necessidades penosas da vida?" Com seu estilo de escrita inconfundível, responde à pergunta de modo inteiramente inusitado. Longe de considerar, como era de se esperar, que a recusa à barbárie é conseqüência imediata da lógica da razão, afirma que, para alguns homens, o horror à guerra, a expulsão das sementes de barbárie de dentro de si mesmo, resulta, provavelmente, de um determinismo quase orgânico.
De que forma isto teria ocorrido? Expondo sua última posição sobre a guerra, Freud considera que ao longo do processo civilizatório, determinados gozos incomensuráveis que o homem um dia experimentou foram sendo reprimidos, a ponto de determinar "fundamentos orgânicos nas modificações de cânones estéticos e éticos" da humanidade. Ou seja, do ponto de vista da psicanálise, no curso da História, as repressões sobre as satisfações agressivas mais primitivas adquiriram uma característica transmissível. Isto é o que determina que o gozo obtido pelo bárbaro seja indiferente ou mesmo insuportável, para alguns homens. Ainda que poucos, por razões de "degradações estéticas" que a destruição inflige, estes homens tornaram-se pacifistas de modo absolutamente singular.
Freud não nutre ilusões: quando o homem experimenta o horror da guerra diante das crueldades perpetradas, isto se dá porque, no lugar da vítima, imagina um de seus familiares ou amigos. Seu narcisismo fica ferido no momento em que se identifica com a vítima. Por outro lado, qualquer comoção de ordem caridosa despida da responsabilidade que cada um deve abrigar em si mesmo, é igualmente inócua e perigosa: pode se tornar um álibi aos próprios assassinos que, rápida e cinicamente, transformam-se em arautos da paz e assim se desculpabilizam. Apenas a aversão estética e ética, experimentada por poucos, situada mais além do ideal de erradicar o mal, ou da ilusão da construção de um mundo sem violência e sem ódio, é capaz de minorar a experiência da barbárie no plano político. É assim que devemos entender a resposta a Einsten: indignar-se contra a guerra, significa simplesmente que "para nós pacifistas, trata-se de uma intolerância constitucional, de uma idiossincrasia".
Talvez o uso da expressão "intolerância constitucional" tenha sido apenas um recurso da retórica freudiana, para falar sobre uma estratégia de combate que só pode emergir no campo da ética do outro. Nesse campo foi categórico: o antídoto contra o traço compulsivo e indestrutível de assimilar, humilhar, destruir e infligir dores ao outro que a humanidade carrega, é manter a chama do desejo de construir a vida permanentemente acesa. Para melhor compreender essa posição, nada melhor do que evocar a recomendação de velhos intérpretes do Antigo Testamento, de ler o Mandamento bíblico - "Não matarás" - pelo avesso, sob o signo do desejo: "Farás tudo para que o outro viva". É esta postura de compromisso com a vida que liga o freudismo ao pacifismo. Se houver um lugar específico para a psicanálise na cultura, será o de convocar a responsabilidade do sujeito pelo outro e pelo Outro.
Ainda que no plano do coletivo o analista seja impedido de exercer a clínica sob transferência (como ocorre no desenrolar da análise do sujeito), por razões éticas não pode deixar de escutar e denunciar a impunidade requerida pelos movimentos a favor da guerra, da segregação, do racismo etc.. Esta posição que impede a psicanálise de ficar neutra na luta entre o obscurantismo da barbárie e a cultura, liga-se à sua responsabilidade cívica, de modo inexorável. Espera-se de um analista que, em nenhuma circunstância, por ele distinguir as forças mais enigmáticas da natureza humana, justifique condutas que venham a colocar em risco o laço social entre os homens. Estas são questões que provocam o desejo no analista de preservar os fundamentos de sua prática: convocar a alteridade a desfazer os jogos de espelhos, direcionando o sujeito apropriar-se de sua história no reconhecimento da existência do outro.
Sem pessimismo nem tampouco otimismo - dois lados de uma mesma moeda, que se contentam em enxergar apenas uma face dos problemas - Freud, que já havia muito cedo reconhecido a impossibilidade de uma humanidade pacificada com o bem, não deixa de reconhecer que "tudo aquilo que trabalha pelo desenvolvimento da cultura, trabalha também contra a guerra" 12. Aposta concentrada na luta imbatível entre dois gigantes: o amor e a morte. Os ecos do poema bíblico, "O cântico dos cânticos" - o amor é forte, é como a morte - ressoam na convicção freudiana de que Eros é forte, é como Tanatos. Até mesmo porque, que espécie de futuro nos aguardará "se não aprendermos a distrair as nossas pulsões do ato de destruir a nossa própria espécie, se continuarmos a odiar um ao outro por pequenas disputas e matar um ao outro por um ganho mesquinho?" 13
Na realidade, Freud demonstra com a própria vida o que diz. Em 1934, quando os nazistas jogaram nas fogueiras de Berlim seus livros e escritos, não se deixou intimidar pelo arbítrio do tirano: se lhe queimavam os livros, restava-lhe recolher as letras das fogueiras e escrever outros. É de certo modo nessa lógica e nessa ética que continuou produzindo, sem temor e sem horror, quando o corpo do judeu se tornou objeto privilegiado da política de extermínio. Apesar de sua avançada idade e da morte que o espreitava de perto, não deixou de abrir caminho com a escrita ao devir da psicanálise.
Por conta de seu ofício, nenhum analista pode, a rigor, alimentar o sonho de um futuro messiânico que possa vencer a tendência do homem ao estado inanimado. Tampouco deve regar o pessimismo desenfreado de que Tanatos conduzirá à extinção da raça humana. Segundo Freud, estes são falsos dilemas que implicam na tendência a apagar todas as diferenças no interior das reflexões e críticas sobre os destinos da cultura e o futuro da psicanálise.
Quanto aos destinos atuais da cultura, cento e tantos anos depois do nascimento da psicanálise, ninguém pode ignorar que nos dias atuais ressurge a dimensão catastrófica do psiquismo. Suas origens são anteriores à elaboração e à libertação do pai da horda. Essa mesma dimensão catastrófica abre uma brecha no centro de novas formas do mal-estar na civilização: a passagem ao ato violento na delinqüência, a toxicomania, o totalitarismo que se coloca acima da lei, o fundamentalismo como instrumento da lei divina etc. Importa salientar que a existência desses novos sintomas põe à prova o devir da psicanálise. Sem dúvidas, o futuro da psicanálise depende da responsabilidade do analista em manter seu trabalho voltado à dinâmica psíquica do sujeito, individual ou coletivo, sem abrir mão do rigor dos conceitos freudianos.
Convém sempre lembrar Freud: na ocasião em que foi preciso fugir da Áustria anexada pelo Reich alemão, Freud, propôs aos analistas presentes à última reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena que, no exílio, procurassem pedir licença para continuar o trabalho analítico e a transmissão da psicanálise na "diáspora". Nesse momento difícil, apesar das decepções, dores e exílio forçado, o mestre de Viena enuncia um novo discurso sobre o pacifismo, afirmando que o homem também abriga, em si mesmo, uma resistência absoluta e inabalável ao extermínio. Deixa, assim, transparecer uma esperança: para que a psicanálise se faça mais forte do que a destruição e se sobreponha ao terror da história, seus avanços só poderão ficar garantidos na cultura pelo escutar da inesgotável melodia da pulsão.
Notas
* Este trabalho foi apresentado no II Encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, realizado em 2003 na cidade do Rio de Janeiro. Dado a importância do tema na atualidade, penso ser oportuno dirigi-lo, também, a um público diferente. Sob este aspecto, ampliar a possibilidade de leitura e debate do texto, indica, pois, o desejo de que os analistas, cada vez mais, se comprometam em atualizar a leitura freudiana da civilização e contribuir, assim, a minorar a destruição e a violência de nosso tempo
3 S. Freud, "El malestar em la cultura", Obras Completas, Amorrortu, B. Aires, 1979, p. 116
4 Idem, p. 108
5 Idem, p. 111
6 Jacques Lacan, Proposition du 9 octobre, Sclicet, 1. Paris, Seuil, 1969, p. 29
7 Jacques Hassoun, citado por Catarina Koltai, Psicanálise e política. O Estrangeiro, Escuta, 2000, p. 77.
8 Piralian, H - "Genocide et transmission: sauve la mort", in Le Père, De Noel, Paris, 1989
9 S. Freud, "El mal-estar en la cultura", op. Cit., p. 111
10 G. Agamben, Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua I, B. Horizonte, UFMG, 2002, p.185.
11 R. Foster, "La política como barbarie: una lectura de homo sacer de Giorge Agamben", mimeo.
12 S, Freud, "Carta a Romain Rolland", Correspondência de amor e outras cartas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p. 398.
13 Pergunta de Freud a Roman Rolland, retirada de Correspondência de amor e outras cartas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p. 398