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Introdução
Lacan teorizou sobre o vínculo existente entre o sistema educacional de um pai e o delírio de um filho no caso de Schreber. Ali o significante foracluído retornou no Real sob a forma de um delírio contra Deus que encarnou a imagem maldita da paternidade. As lembranças desse pai como homem erudito, assim como a aprendizagem religiosa, foram recordadas por Schreber somente nos seus delírios.
Joyce, ao contrario, descreveu um pai extraordinário, a quem admirou até as faltas. Em sua correspondência falou dele como tendo sido o inspirador da maior parte de seu talento e de personagens de seus livros, como a herança de uma boa voz de tenor.
Jacques Aubert em sua intervenção no seminario "O Sinthoma", pontuou na escrita de Joyce, no Ulisses, Circe, o aparecimento de uma mãe problemática, associada ao riso e à pantomima, o que sugeria uma situação de personação passando alguma coisa através da melodia, e concluiu: "talvez na arte da voz, na arte da fonação, passou-se o suficiente entre James Joyce e seu pai Jonh Joyce.
Entretanto, para Lacan os escritos de Joyce foram inspirados e representaram uma compensação à destituição paterna, fazendo entrar o próprio nome, no que diz respeito ao nome comum, além do que seu pai nunca foi Um - pai para ele, não lhe ensinou nada e negligenciou quase tudo.
Pretendo destacar neste trabalho, o que no delírio de Schreber e na escrita de Joyce no Ulisses, pode ser lido como efeito da relação de ambos com aqueles pais imaginários, no que diz respeito à musicalidade, a saber: na escrita de Joyce, e no piano de Schreber - que ao tocá-lo impedia os raios divinos de se afastarem dele..
Neste sentido, uma primeira pergunta: o que é uma melodia na leitura psicanalítica, quando o som começa a ser percebido?
A musicalidade da voz materna antecede o sentido dos fonemas, e o significante originário é transmitido ao infans por intermédio desse outro imaginário primordial. Este é o universo sonoro primitivo.
O mito de Narciso pode ilustrar esse universo, com as respostas especulares da ninfa Eco, e o poder de fascinação da primeira voz em que o sujeito no estagio de infans pode ficar suspenso - a repetir os sons, quando falha a entrada do pai simbólico. A voz é um dos cinco objetos separáveis definidos por Lacan (o seio, as fezes, o pênis, o olhar e a voz) que participa do processo de desenvolvimento do "eu".
Schreber, Os Pássaros e seu Piano
Os pássaros voaram velozmente e acompanharam os delírios de Schreber. Grandes ou pequenos e numerosos, todos eram falantes e miraculosos, e não entendiam o sentido das palavras que falavam, esqueciam sempre o resto das frases e confundiam-se com o próprio Schreber. Paravam de falar quando ouviam um som que rimasse com suas palavras.Tinham uma sensibilidade especial para a assonância (210). . "Sons humanos, eram as únicas palavras de que ainda eram capazes os nervos para exprimir um sentimento autêntico (208).
Em alguns momentos aqueles passaros o acompanharam nas óperas que tocava ao piano (235).
Na poesia antiga, como nos mitos pagãos, os pássaros representam a metamorfose.
Em Schreber também se transformavam conforme as estações do ano: eram andorinhas, pardais ou gralhas.Também foram seu "amiguinho. Dizia que a voz inculcada neles com seus timbres confirmavam suas identidades. Ás vezes eram senhoritas: jovens mortas e almas-pássaro.
Conhecedor da musica erudita relatou que num momento comemorou a desaparição de uma alma, tocando ao piano a marcha fúnebre a Heróica de Beethoven (192).
No verão de 1894, (período em que esteve mais delirante) diz ter se arrependido ao impedir um milagre da alma de von W: deixar que fosse colocado um piano de cauda em seu quarto.
As cordas de seu piano quebravam-se constantemente, e ele despedia dinheiro em repô-las, sob as reprovações de sua mulher, a quem justificava: são os milagres os responsáveis pelas cordas se partirem! (170)
Quando tocava seu piano, obtinha o retorno dos raios divinos, sempre que tentavam retirar-se dele.
Costumava sentar-se em um balde em frente ao piano, para executar suas músicas, até conseguir urinar e defecar. A música lhe permitia uma reaproximação dos raios quando procuravam se retirar dele e assim vencer a resistência oposta ao seu esforço para evacuar.(315)
Mas havia uma música que não podia tocar: a ária de A Flauta Encantada de Mozart, pois a vingança do inferno fervia em seu coração e ouvia vozes que pressupunham estar perdida sua felicidade. Nesta ópera, os personagens simbolizam as relações de pares, como sejam: o flertar superficial e frívolo, o par burguês-honesto e sem ideais, e o par perfeito. Este último representado pelo homem que integrou sua feminilidade e a mulher sua masculinidade.
Schreber dizia que suas músicas eram acompanhadas com imagens numa representação integral, espécie de milagre que realizava para enganar os raios, atraí-los ou zombar deles. "Sons humanos, eram as únicas palavras de que ainda eram capazes os nervos para exprimir um sentimento autêntico (208).
Segundo Robert B. White em O caso Schreber, o pai de Schreber foi "patologicamente" ambivalente e se apropriou do papel da mãe de modo invasivo. As imagens fundidas desses pais reaparecem nos delírios como um Deus composto de domínios anteriores maternos e posteriores paternos. Em seus delírios os pássaros são usados em sua assonância por esses domínios, e colocados uns contra os outros.(211)
Quase nada se sabe sobre a mãe de Schreber. Entretanto, em suas Memórias, encontram-se duas referências a passagens pela casa de sua mãe, quando relatou que piorava da excitação nervosa (43)
Alain Didier Weill traz uma hipótese interessante sobre a foraclusão em Os Três Tempos da Lei: "no caso da mãe não poder transmitir à criança o significante do Nome-do-Pai, ela não é a única em causa, pois na palavra deste intercessor necessário, que é o Um-pai, pode haver uma foraclusão que impede a ele, de fazer caso do significante do Nome-do-Pai. Neste caso, o infans não acede ao recalcamento originário pelo efeito de uma foraclusão induzida na mãe por aquela mesma que fura o discurso."
No Seminário As Relações de Objeto, lição de 13/03/57, Lacan teorizou como se origina o futuro paranóico: quando a criança fica inteiramente sujeita àquilo que a mãe lhe indica, e as manifestações maternas tornam-se para ela sanções de sua suficiência ou insuficiência, a saber: fica entregue ao olho e ao olhar do Outro, falta o termo do pai simbólico, devido à foraclusão que o deixa fora.
O pai de Schreber, como sabemos, foi um "reformador fanático dedicado às áreas da cultura física, da saúde e era "religiosamente inspirado para todas as coisas superiores
Katan, um dos estudiosos de Schreber faz referência ao esplendor dos jogos de poder no seio da família durante a infância de Schreber, como ainda a trechos de livros do pai de Schreber repassados nas suas Memórias.
Joyce e a Escrita
A música em Joyce vem nas palavras que ele vai decompor até não haver mais identidade fonatória Lacan chamou essa escrita de exilada, vem no lugar dos delírios.
Lemos em Ulisses:
"Os sons são imposturas, disse Stephen, após uma pausa de um certo pequeno tempo. Como os nomes, Cícero, Podmore, Napoleão, senhor Goodbody, Jesus, senhor Doyle.
Shskespeares eram tão comuns quanto Murphies. Que é um nome?
Nomes? Que é que há dentro de um nome?"Palavras? Música? Não: é o que está por trás. Bloom enlaçava, deslaçava, num nuto, num não nuto.(cap X- As Sereias)"
Da biografia de Joyce a informação: o desejo do pai que James Joyce fosse um tenor e o talento musical da mãe. Para Lacan, a melodia do pai reaparece nas palavras impostas e as falas que se impõem a ele são quebradas, cortadas e transformadas em novas num jogo homofônico.
Voltando ao Ulisses
"A paternidade em termos de geração consciente, é desconhecida ao homem. É uma propriedade mística, uma sucessão apostólica, do só gerador ao só gerado... Amor matris, genitivo, subjetivo e objetivo, pode ser só a coisa verdadeira na vida.
A paternidade pode ser uma ficção legal. Quem é o pai de filho qualquer que filho qualquer devesse amar ou ele a filho qualquer?
Um pai...é um mal necessário.
O filho nascituro desfigura a beleza: nascido, traz pena, divide afeto, aumenta cuidados. É um varão: seu crescimento é o declínio do pai, sua juventude é inveja do pai, seu amigo é inimigo do pai."
Sem Concluir
Schreber escreveu sua Memórias, mas se sua escrita pode ser vista como tentativa de reconstrução, o seu êxito, foi temporário. Ao contrario de Joyce que com suas letras fez suplência à carência paterna.Como entender tudo isso?
Benjamim Domb teorizou sobre esse assunto numa correspondência do Fórum Virtual sobre As Psicoses,cito: "Joyce nos mostra que um sujeito pode construir seu própio sinthome, fazer uma suplência do Nome do Pai que anode a estrutura, este sinthome vem então no lugar do Nome do Padre.
Lacan falou dos Nomes do Pai. A mulher é tambem um nome do pai, ela faz em alguns casos sinthome para um homem. De fato Joyce esteve anodado a Nora, sua mulher.
Pode-se dizer tambem que a maternidade para uma mulher pode em certas ocasiões funcionar como um sinthome, quer dizer suprir o Nome doPai.
A escritura e o desejo do analista constituem tambem um sinthome.
Para construir seu sinthome Joyce precisou a confluencia de múltiplas circunstancias como por exemplo o fato de que seu pai delegou sua educação aos mestres jesuítas, os amigos que o ajudaram, a sua cidade Dublin, seu exilio etc.Quer dizer: na construção de seu sinthome confluíram varias questões, e fundamentalmente a escritura de sua propia vida, a que se entregou para decifrar seu própio enigma."Notas
(*) Trabalho apresentado na IX Jornada Freud--Lacaniana de Recife em Novembro de 2003
1-Lacan,Jacques - O Avesso da Psicanálise-Livro 17 - Ed.Jorge Zahar 1992
2-Lacan, Jacques - Shakespeare,Duras,Wdekind,Joyce - Ed Assírio & Alvin-Lisboa
3-Lacan, Jacques - O seminário-livro 4 - A relação de objeto
4-Lacan, Jacques - Escritos-1981
5-Seminário 3 As psicoses - Ed Jorge Zahar
6-Seminário 23 O Sinthoma
7-Laia, Sergio - Os Escritos fora de si -Joyce Lacan e a loucura - Belo Horizonte: Autentica? Fumec 2001
8-Harari, Roberto. Como se chama James Joyce? -Ed. Agalma e Companhia de Freud. 2003
9-B. This O Pai : ato de nascimento - Ed.Artes medicas Porto Alegre 1987
10-Porge, Erik - Os nomes do pai - Ed Companhia de Freud-1998
11-Niederland, G. William - O caso Schreber - Campus Editora- Rio de Janeiro 1974
12-Weill,Alain Didier - Os Três Tempos da Lei - Ed. Jorge Zahar- Rio de Janeiro 1995
13- Freud Y Schreber - Luiz Eduardo Prado de Oliveira - Ed Nueva Vision-Buenos Aires-Argentina
14-Schreber,Daniel Paul - Edições Graal 1984 Rio de Janeiro