Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Linguagem: Ato poético-político
José Marcus de Castro Mattos

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A linguagem é a habitação da essência do homem.
MARTIN HEIDEGGER, Carta sobre o "humanismo" (1947)

Se nós fôssemos verdadeiramente "revolucionários" (à maneira russa),
ousaríamos tocar nas convenções da linguagem.
PAUL VALÉRY, Cahiers (1974)

INTRODUÇÃO

Nas páginas seguintes objetivo refletir sobre o fenômeno linguagem – e, pois, sobre o fenômeno Kultur – enquanto, um e outro, ato poético-político expressivo de uma singularidade-univer sal (2).

Especificamente, objetivo refletir sobre o fenômeno linguagem (Kultur) enquanto ato poético-político radicalmente contraposto à emergência histórica da barbárie, a saber, à emergência histórica de determinadas concepções político-ideológicas ancoradas exclusivamente em dogmas ou verdades absolutas. Ver-se-á o porquê, tais concepções são visceralmente impeditivas do florescimento de atos locucionários cuja singularidade é, não obstante, a expressão concreta do que há de mais próprio e decisivo no fenômeno da linguagem (Kultur): a afirmação de uma subjetividade ao mesmo tempo ímpar e universal.

Para realizar este objetivo, escudado na rigorosa meditação de Heidegger sobre a linguagem, analiso a inesperada resposta que Saint-John Perse (3) profere quando de seu ingresso nos Estados Unidos – na condição de exilado de guerra, em 1940 –. Imediatamente, ao oficial de imigração que pede que lhe declarem o sobrenome, o nome, a proveniência, o domicílio e a qualificação profissional, a resposta do poeta é a seguinte: Habito meu nome, sou de minha língua, não tenho outra verdadeira pátria a não ser a de minhas idéias e só me reencontro verdadeiramente nas famílias de espírito que escolhi (4) .

Desenvolvo a análise desta resposta em três seções complementares:

(A) Na primeira seção – intitulada Uma resposta surpreendente –, contextualizo o momento histórico em que tal resposta é pronunciada – o da poderosa e violenta emergência do nazi-fascismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945) –, bem como delimito os objetivos básicos que a análise, em seu transcorrer, busca equacionar.

(B) Na segunda seção – intitulada Uma resposta subversiva –, em função do que objetivo demonstrar – o fenômeno linguagem enquanto ato poético-político expressivo de uma singularidade-universal –, procuro apreender o conjunto de sentidos possível de ser extraído da frase de Perse. Em síntese, este conjunto de sentidos reserva à linguagem – e, pois, à Kultur – o cuidar da humanitas, a saber, a guarda ou a preservação da dignidade dos homens.

(C) Na terceira seção – intitulada Uma resposta simples –, correlaciono a frase de Perse com a vigorosa meditação heideggeriana sobre a linguagem, extraindo por fim a íntima e involuntária consonância entre as palavras do poeta e as do pensador. Para ambos, frente à renovada (infelizmente) ameaça da barbárie, tal consonância reside no cuidar da linguagem – no cuidar da Kultur –, e, pois, na decisão pela continuidade histórico-política dos homens.

 

Primeira seção – Uma resposta surpreendente

Nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial e durante o seu transcorrer, muitos intelectuais, cientistas e artistas europeus, criticamente cientes do absoluto descaso do nazi-fascismo para com a democracia e a cultura, buscam em países não pertencentes ao Eixo a possibilidade de dar livre curso às suas pesquisas e obras.

Infelizmente, no entanto, nem todos conseguem chegar a bom porto: face a constrangimentos físicos e psicológicos de toda ordem, alguns, no limite de suas forças, vêem por bem responder à infâmia do totalitarismo com o ato extremo do suicídio. Entre outros, isto ocorre com Walter Benjamin – reconhecidamente o maior crítico literário europeu da primeira metade do século -, o que leva o poeta e dramaturgo Bertold Brecht a escrever que a morte de Benjamin, seu amigo pessoal, é o primeiro golpe profundo que Adolf Hitler consegue desfechar contra a cultura alemã (5).

Diante pois da inaudita violência desencadeada pelo nazi-fascismo na Europa, entre os que todavia conseguem exilar-se o poeta Saint-John Perse ilustra à perfeição – quando de seu ingresso em território norte-americano (1940) –, o posicionamento radicalmente crítico daqueles que, por diferentes meios, recusam-se a subjugar-se. Aportando nos Estados Unidos, ao oficial de imigração que pede que lhe declarem o sobrenome, o nome, a proveniência, o domicílio e a qualificação profissional, Perse responde surpreendentemente: Habito meu nome, sou de minha língua, não tenho outra verdadeira pátria a não ser a de minhas idéias e só me reencontro verdadeiramente nas famílias de espírito que escolhi.

Ora, pela análise do caráter extemporâneo da resposta do poeta (6), nas páginas seguintes objetivo refletir sobre o fenômeno linguagem – e, pois, sobre o fenômeno Kultur – enquanto, um e outro, ato poético-político expressivo de uma singularidade -universal. Assim,

abstratamente, nas páginas seguintes reflito sobre o fenômeno linguagem enquanto condição de possibilidade de o homem aculturar-se diferencialmente, a saber, reflito sobre o fenômeno linguagem enquanto condição de possibilidade de os homens estabelecerem entre si relações históricas propriamente humanas, tais como a) relações sócio-econômicas (relativas à produção de bens materiais), b) relações sócio-políticas (relativas ao estabelecimento dos sistemas de governo) e c) relações sócio-culturais (relativas à produção de bens simbólicos); e,

concretamente, nas páginas seguintes reflito sobre o fenômeno linguagem (Kultur) enquanto ato poético-político radicalmente contraposto à emergência histórica da barbárie, a saber, à emergência histórica de determinadas concepções político-ideológicas ancoradas exclusivamente em dogmas ou verdades absolutas. Pois tais concepções, porque apelativas ao que há de mais irracional e imediatista nos homens, propõem-se violentamente contrárias à continuidade daquilo que estes mesmos homens têm procurado – sequiosa e tenazmente – conquistar ao longo dos séculos: a capacidade de gerir suas diferenças pela prática do diálogo crítico, a saber, pelo exercício de uma razão não-imediatamente instrumental ou técnica (objetivante e / ou apropriante do real), e, pois, pela experimentação de uma razão reflexiva, argumentativa, problematizadora (7).

Neste sentido, a Segunda Guerra Mundial se constitui no palco histórico onde esta capacidade de convivência é mais seriamente colocada em perigo. O nacional-socialismo – travestido, rápida e tetricamente, no nazi-fascismo – combate pelo terror homicida toda e qualquer ordem sócio-cultural divergente de seus princípios arrivistas e totalitários. O poeta Saint-John Perse é apenas um dentre os muitos que vivem este combate (8). Sua arma, as palavras. Seu legado, as palavras. Com elas e por elas opõe-se – e nos opõe – à barbárie. Compreender-lhes a radicalidade, no momento em que são ditas, é compreender-lhes a força. Talvez mesmo a única força que pode ainda garantir a sobrevivência dos homens...

Ouçamos.

Segunda seção – Uma resposta subversiva

Saint-John Perse, ao revés do que o senso-comum supõe ser do feitio dos poetas, não é, neste momento, sob nenhuma hipótese, como que o porta-voz passivo e inconsciente de alguma "inspiração" advinda sabe-se lá de que região arcana inacessível ao restante dos mortais. Pois se tal mística houvesse de fato ocorrido – verdadeiramente, isto é impossível (9) –, as palavras do poeta perderiam toda virulência crítica, posto que, então, seriam provenientes de algo situado fora da temporalidade – logo, provenientes de algo não-sujeito a transformações objetivas (histórico-políticas) –.

Assim, o caráter extemporâneo da resposta de Perse está em realidade no fato de a mesma opor-se radicalmente a seu tempo: o poeta, em tal circunstância, toma o presente estado de coisas pela raiz, subvertendo-lhe a ordenação lógica através da produção de um conjunto de significantes não-antecipável no interior daquele contexto sociolingüístico (histórico) (10), possibilitando, desse modo, a quem souber ouvir, transcendê-lo.

Como então apreender a absoluta radicalidade desta resposta?

Sim, absoluta radicalidade porque, diante de uma requisição aparentemente banal, Perse não hesita em lembrar ao burocrata que o questiona e aos homens que o circundam (homens, pode-se supor, também eles vilipendiados pela Guerra) aquilo mesmo que é a garantia da real dignidade psicológica, social e histórica de todos os homens, a saber, desde sempre, a linguagem – e, pois, a Kultur – . Porque evidentemente não é a requisição ela mesma que o leva a responder desta especial e inusitada maneira. Desde que então bastar-lhe-ía, se apenas desejasse obter o visto de entrada o mais rapidamente possível (no que sem dúvida todos ali estão interessados e dele esperam o mesmo e imediato interesse), declinar àquele funcionário, objetivamente, os dados pessoais que lhe são exigidos.

Não. Perse não quer cumprir os constrangimentos lógicos aparentemente insuperáveis desta situação (as respostas a serem dadas devem restringir-se à pura denotação de fatos), e, com sua breve sentença, recorda a todos os presentes o óbvio (e apenas o óbvio, acentua Roland Barthes (11), pode nos estupefazer): o absurdo inominável que está a ocorrer em solo europeu, por maiores que sejam o terror e a destruição dele provenientes, não consegue violentar em alguns homens – bastam alguns (12) – o cerne mesmo daquilo que lhes confere dignidade. E, leais a este limite, tais indivíduos são aqueles que – não raro sob situações as mais adversas – guardam singular e desapegadamente o futuro da cultura, ou, o que seria dizer o mesmo, a continuidade sócio-histórica dos próprios homens.

A absoluta radicalidade da resposta de Perse encontra-se portanto no fato de o poeta arregimentar criticamente, numa única frase, com extraordinário poder de síntese, elementos determinantes da inextirpável independência do falante diante dos que intentam, despoticamente, sob ideologias as mais diversas, deslegitimar-lhe os pressupostos éticos. Posto que os totalitarismos recentes – o nazi-fascismo, o estalinismo, o maoísmo, o komeinismo, o kadafismo, o husseinismo, o binladenismo, etc – primaram ou primam igualmente pela ignóbil tentativa de submeter as línguas faladas pelos povos ou grupos sob seu acicate à monologia (admitamos: à monocordia, à monotonia) de uma linguagem pautada exclusivamente por dogmas ou verdades absolutas. No bárbaro contexto do discurso totalitário, tais dogmas ou verdades absolutas seriam "revelados" quer por algum "Deus" (no komeinismo, no kadafismo, no husseinismo, no binladenismo), quer por alguns "gênios", "líderes" ou "homens superiores", tipos estes cujas elucubrações teóricas – por definição, questionáveis – são transformadas, a serviço de escusos e mórbidos interesses ideológicos, em artigos de fé (no estalinismo, no nazi-fascismo, no maoísmo).

Quando então Saint-John Perse responde ao oficial de imigração que o nome dá-lhe abrigo e que a língua materna possibilita-lhe o ser (habito meu nome, sou de minha língua), o poeta está, voluntária e corajosamente, reafirmando que a linguagem – e, pois, a Kultursão os sítios últimos de salvaguarda da dignidade dos homens frente aos poderes históricos do momento, quer totalitários, quer democráticos.

Aqui, mais atenção.

Primeiro, trata-se da linguagem (Kultur) enquanto ela mesma, a saber, do fenômeno que – própria e decisivamente – determina e caracteriza a irrupção do humano nos homens (13). Desse modo, como as poucas e precisas palavras do poeta enunciam, trata-se de apreender tal fenômeno e dele cuidar como o sítio privilegiado para a consecução da dignidade de um homem vis-à-vis outros homens – dignidade, pois, em termos rigorosos, inarredavelmente trans-linguística e trans-cultural, ou, se se preferir, em expressão caríssima a Sócrates e a Kant, cosmopolita –.

Contra este sítio – afirma-o Perse – todo e qualquer despotismo arremeter-se-á inutilmente. Posto que habitar o nome e ser da língua materna revelam e relevam o intrínseco e necessário pertencimento dos homens à linguagem – e, pois, à Kultur –. Ora, tal pertencimento é o que lhes confere – própria e decisivamente – a humanitas, a saber, o posicionamento ético-dialogante com outros homens (14). Contudo, este posicionamento – que implica e exige pois tolerância para com as diferenças sócio-culturais e políticas – é sistematicamente lançado no opróbrio pelos totalitarismos dos mais diversos matizes ideológicos. Os despotismos, infelizmente sob "argumentos" que não vacilam em recorrer à força das armas – o que em verdade apenas lhes expõe a fragilidade –, desse modo pretextam uma visão unilateral, preconceituosa, provinciana e belicista dos homens (15).

Segundo, a resposta de Perse vale também para os países democráticos – e talvez mesmo principalmente para estes... Porque, cabe lembrar, o poeta responde desta maneira quando – na condição de exilado – é recebido nos Estados Unidos, a saber, é albergado exatamente no país que, dentre todos os demais, propaga aos quatro cantos a necessidade de defesa conjunta dos "valores da democracia" diante do brutalismo nazi-fascista. O fato tem, pois, especial importância.

Sim, porque a resposta de Perse parece-nos então contraditória: afinal ela deveria ter sido proferida se, por exemplo, o poeta estivesse sendo interrogado por membros de alguma polícia secreta nazi-fascista para, em seguida, pouco importando o que houvesse dito, ser comboiado para algum campo de extermínio (o que de fato aconteceu com muitos outros). Porém, não. A resposta de Perse é, a seu modo, absolutamente coerente com o momento histórico. O poeta, voluntariamente provocativo, chama a si a atenção reflexiva e crítica dos homens : posto que os países aliados, por princípio e no contexto da Guerra, propõem-se os guardiães da democracia – da tolerância para com as diferenças sócio-culturais e políticas (tolerância esta inexistente no nazi-fascismo) –, sua resposta objetiva legitimar lógica e ontologicamente a concepção mesma de liberdade (16).

 

Ouçamos novamente a resposta de Saint-John Perse: Habito meu nome, sou de minha língua, não tenho outra verdadeira pátria a não ser a de minhas idéias e só me reencontro verdadeiramente nas famílias de espírito que escolhi.

O poeta encontra-se, portanto, naquele momento histórico, frente aos poderes em litígio, afirmando politicamente – e poeticamente – sua real liberdade, e, pois, poeticamente – e politicamente –, a real liberdade de todos os homens. Todavia, ao contrário do que se esperaria de um político profissional, de um ideólogo ou de um militante imaturo, afirma-a sem nenhuma arrogância, empáfia ou grandiloqüência. Suas palavras, simples e seguras, sem dúvida proferidas em voz pausada e tranqüila, desnudam-no, libertam-no:

¬ sim, porque habito meu nome e porque sou de minha língua, minha dignidade – meu co-existir no seio da comunidade humana – devo à língua materna (à linguagem ou à Kultur, em sentido amplo);

¬ sim, porque não tenho outra verdadeira pátria a não ser a de minhas idéias, minhas "fronteiras" são demarcadas pelo que penso – e o que penso não tem, a priori e necessariamente, limites espaço-temporais determinados –;

¬ sim, porque só me reencontro verdadeiramente nas famílias de espírito que escolhi, minha fidelidade sócio-cultural devo às classes de espírito por mim voluntariamente escolhidas... (17)

Sim – espantosa subversão de valores realizada numa única frase por Perse!

Certo, ele não é proprietário de nenhum dos bens econômicos, políticos e ideológicos violenta e mortalmente disputados pelo comum dos homens; certo, sua identidade (seu reencontro consigo mesmo) é-lhe consignada apenas no convívio com uma estranha " família espiritual" dispersa pelos quatro cantos do orbe; certo, reduzido, materialmente, à condição de exilado, sua pobreza é pois evidente.

Porém, atenção.

Ao afirmar serena, corajosa, radical e explicitamente tais elementos, Perse mantém inexpugnável a sua dignidade humana – e, pois, a dignidade humana de todos os homens –. Por quê? – Porque Saint-John Perse se faz, naquela circunstância, exemplarmente, o mais político – e poético – dentre todos os presentes: num contexto histórico de todo adverso, o poeta recorre ao máximo valor ético – e estético – pelo qual se devem pautar as relações entre os homens (18), a saber, em uma frase aparentemente exógena, recorre à percepção insofismável de que a dignidade dos homens – sua sobrevivência psicológica, social e histórica – é-lhes auferida própria e decisivamente pela linguagem – e, pois, pela Kultur –.

Isto significa que Perse, como talvez poucos homens já o tenham feito (19), exprime-se livremente, a saber, exprime-se – para defendê-la – desde a instância mesma que determina e configura os homens enquanto tais – logo, desde a instância mesma que possibilita aos homens re-criarem continuamente a si mesmos –. Repito-o propositalmente: esta instância é a própria linguagem – e, pois, a própria Kultur –, ou, se se quiser – e deve-se querer –, a própria liberdade (20). E sem dúvida que esta linguagem, esta Kultur ou esta liberdade reivindicadas pelo poeta não são jamais a "linguagem", a "Kultur" ou a "liberdade" sub-reptícia ou declaradamente impostas aos homens, quer, no primeiro caso, pelos regimes ditos democráticos, quer, no segundo caso, pelos regimes totalitários.

Pois a liberdade expressa e requerida por Perse não se situa apenas num plano formal – como efetivamente acontece ou via de regra tem acontecido nos regimes democráticos-capitalistas ou nos socialistas não-democráticos –. Perse absolutamente não responde, como talvez um celerado o houvesse feito, "qualquer coisa" ao aduaneiro, e também não o faz do modo e com o conteúdo que este espera. Não. A liberdade que sua resposta surpreendente e subversiva exige, se soubermos ouvi-la intensa e extensamente, provém do mais alto espírito de humildade ou de desprendimento: realmente livre é o homem que se sabe transcendido pela linguagem (Kultur), ou, o que seria dizer o mesmo, realmente livre é o homem ciente de seu pertencimento próprio e decisivo a um campo estrutural e organicamente pluralista (a linguagem ou a Kultur). E – importa observar –, é este campo que lhe confere, sob qualquer contexto e em um lugar qualquer do orbe, sua irrefreável destinação à cidadania (21).

Assim, radicalmente ao contrário da imediata instrumentalização técnica da linguagem ou da Kultur realizada pelas pseudo-democracias e pelos despotismos transformando-as, baixamente, em serviçais das ideologias –, em meio à mais violenta, terrível e obscurantista das guerras o poeta Saint-John Perse deixa-se desnudar pela linguagem – habito meu nome, sou de minha língua –, e ao fim de sua luminosa frase ei-lo apenas pertencente à Kulturnão tenho outra verdadeira pátria a não ser a de minhas idéias –, ei-lo apenas dignamente humano – só me reencontro verdadeiramente nas famílias de espírito que escolhi –, ei-lo apenas livre...

Terceira seção – Uma resposta simples

No contexto da tradição filosófica ocidental o fenômeno linguagem quase sempre está sob a análise rigorosa dos pensadores, pois raros são aqueles que, de uma maneira ou de outra, não fazem de tal fenômeno o tema de suas reflexões (22).

Portanto, há cerca de vinte e cinco séculos o fato de o homem falar e pensar – de obrigatoriamente expressar o pensamento por meio de palavras (23) – ocupa a atenção reflexiva e crítica dos filósofos. Em função, todavia, das diferentes perspectivas de interpretação adotadas, claro está que cada um deles extrai conseqüências próprias sobre o real estatuto deste fenômeno, chegando-se inclusive ao caso de um mesmo filósofo criar duas concepções teóricas sobre a linguagem inteiramente diversas uma da outra (24).

Nesta terceira e última parte meu objetivo não é descrever pari passu como que a problemática da linguagem foi, sob múltiplas formas, equacionada no transcurso histórico da filosofia. Mesmo porque não sou historiador. Aqui, sou (a expressão é de Gaston Bachelard) um "filosofante", a saber, os sentidos que nas partes precedentes procuro extrair da resposta de Saint-John Perse resultam de uma determinada "preocupação teórica": decido pensar a resposta do poeta a partir de uma peculiar meditação sobre a linguagem, a qual, declaradamente, não pertence ao transcurso histórico da filosofia (25).

Assim, a epígrafe (de Heidegger) que abre estas páginas – "a linguagem é a habitação da essência do homem" – quer manter com as mesmas um "diálogo hermenêutico", a saber, ambas (epígrafe e páginas) "percorrem o mesmo caminho": o caminho que procura apreender a inteligibilidade da resposta de Perse pelo reenvio constante das páginas do texto à epígrafe e vice-versa... Com efeito, dois textos de Heidegger bastam-me aqui como instrumental teórico a partir do qual o fenômeno linguagem e a resposta de Saint-John Perse são correlacionados (26), compondo e expondo, nas páginas que o leitor tem em mãos, o objeto que estou a analisar, a saber, o fenômeno linguagem (Kultur) enquanto ato poético-político expressivo de uma singularidade-universal.

Para Heidegger, desde uma perspectiva teórica ontológico-historial, "a linguagem é a casa do Ser" (27). Isto porque, em sentido próprio, a linguagem é o campo – lógico e ontológico – onde os homens estão irrecorrivelmente situados, ou, noutros termos, a linguagem é o campo – lógico e ontológico – no interior e a partir do qual os homens podem apreender a si mesmos enquanto homens, e, por extensão, inclusivamente, apreender o mundo (28).

O ser – de homens e mundo – é portanto aberto ou possibilitado pela linguagem, e nela, enquanto pois "casa do Ser", conclui Heidegger, "mora o homem" (29). Ainda mais, "os pensadores e os poetas são os guardiães desta habitação" (30), a saber, cabe a uns e a outros manter atenção permanente sobre o próprio do habitar, cuidando do que é estrutural e organicamente decisivo: a linguagem – e, pois, a Kultur –, ambas compreendidas em sentido universalista – logo, frise-se, em sentido democrático e pluralista –, constituem-se – declara-o igualmente Perse – na garantia da possibilidade de convivência tolerante das diferenças.

Ora, ser os guardiães da linguagem – e, pois, os guardiães da Kultur (linguagem e Kultur nas quais, propriamente, reside a dignidade dos homens) – consiste em atentar para o fato de que "o esvaziamento [a perda de sentido lógico e ontológico] da linguagem, que se dissemina em toda parte e rapidamente, não destrói apenas a responsabilidade estética e moral em qualquer uso da palavra", mas, sobretudo, "provém de uma ameaça à essência do homem" (31).

Que ameaça?

– A ameaça da barbárie, a saber, a emergência e / ou ressurgimento de concepções político-ideológicas obtusamente ancoradas em dogmas ou verdades absolutas, e, pois, em termos práticos, autoritárias ou totalitárias. No caso que estou analisando – a resposta do poeta Saint-John Perse, emitida quando de seu exílio em território norte-americano, durante a Segunda Guerra Mundial –, trata-se do mais sério empreendimento totalitário jamais antes assestado contra a possibilidade de os homens ordenarem democrática e solidariamente suas diferenças – por extensão, trata-se da mais séria ameaça à sobrevivência da Kultur –. Este empreendimento totalitário – lembramo-nos consternados – chamou-se nazi-fascismo.

Fazer frente à barbárie, em suas diferentes formas, é portanto cuidar permanentemente do sítio próprio em que residem os homens – a linguagem ou a Kulur –, e isto significa incansavelmente trabalhar com ferramentas-palavras para que "o homem (homo) se torne humano (humanus)" (32). Realizado via de regra madura e serenamente, este trabalho constitui-se na guarda ou cuidado da humanitas, " pois humanismo é isto: meditar, e cuidar para que o homem seja humano e não des-humano, isto é, situado fora de sua essência [habitar a linguagem ou a Kultur]" (33). Aquele que assim trabalha em realidade luta com armas-palavras para que o homem "se torne livre para a sua humanidade, para nela encontrar a sua dignidade" (34) – ou, nas belíssimas palavras de Nietzsche, "trabalha e inventa para construir a casa para o além-do-homem e prepara para ele terra, animal e planta" (35) –.

Abro um breve parêntese.

Em querela com os sofistas de seu tempo, no diálogo Teeteto (notação 155 d), Platão considera a capacidade de os homens se espantarem (em grego, thaumadzein) como o elemento determinante do filosofar verdadeiro (36). Para Heidegger esta capacidade se constitui no "poder de se espantar diante do Simples", e, o que é mais, "deve-se aceitar esse espanto como morada" (37).

Isto significa que os homens hão de permanecer o mais próximo possível deste espanto, para, dele cuidando, então ascenderem e acederem àquilo que neles mesmos é próprio e decisivo, a saber, ascenderem e acederem ao dom que desde sempre lhes foi exclusivamente outorgado: porque falantes (em grego, zóon lógon éckon) os homens são os entes que – na e pela linguagem – podem des-velar (em grego, a-létheia) o Ser (38).

Legado misteriosamente aos homens este dom é, assim, em primeira instância, a linguagem ela mesma – e, pois, a Kultur ela mesma –. O envio deste dom se constitui, no entanto, como esplendidamente observa Hölderlin, no "mais perigoso dos bens" (39), pois encontram-se os homens suficientemente amadurecidos para acatar o envio da linguagem (Kultur) como o elemento que os sobredetermina, possibilitando-lhes o ser e o existir? Noutros termos, aquilo que Heidegger caracteriza como o "arrazoamento impensado do planeta" (40) não seria a expressão prática – infelizmente, talvez terminal – de que não estávamos experimentados o bastante para ascender e aceder ao que nos transcende?

Fecho parêntese e retomo minha exposição.

A resposta de Saint-John Perse – se ouvida atentamente – é pois a expressão poético-política de uma singularidade-universal. Nela e por ela trata-se da preservação da humanitas, a saber, trata-se do cuidado para com o irrecorrível fato de os homens habitarem lógica e ontologicamente a linguagem (Kultur). E – prova-o Perse –, despotismo algum, por violentos que sejam seus subterfúgios e mecanismos, consegue solapar os alicerces desta Casa milenarmente soerguida pelas mãos dos homens...

Ouvir intensa e extensamente a resposta do poeta exige então "que nos tornemos amigos do não-costumeiro do Simples", para que desse modo possamos ser tomados "imediatamente por uma outra ordem de preocupações" (41). Ao contrário pois do que comumente se acredita, o que é propriamente Simples – e neste sentido justifica-se grafá-lo substantivamente (como o faz Heidegger) – não são o comum e o esperado, mas sim o incomum e o inesperado... (42)

Próximos então do Simples, ouvimos de repente o apelo para a guarda do que nos determina ou nos caracteriza como homens : a guarda da linguagem – e, pois, a guarda da Kultur –. Historicamente, não poucas vezes os homens afastaram-se – infelizmente, não poucos continuam afastados – deste comprometimento ético e estético basilar (43). E a Segunda Guerra Mundial sem dúvida se constitui no momento em que este afastamento alcança – quase a ponto de romper-se – os seus limites extremos.

Assim, a resposta de Saint-John Perse contribui a seu modo (e quase anonimamente) para que estes limites – limites no interior dos quais a convivência entre homens é possível – não sejam definitivamente vilipendiados e esquecidos. Apenas um homem extremamente sensível e radicalmente ciente de sua dignidade humana – por extensão, da dignidade humana de todos os homens – poderia, naquela circunstância, ter proferido tal resposta. A sutilíssima sensibilidade e a percepção crítica nela presentes, certamente foram adquiridas, trabalhadas e sedimentadas no espírito do poeta ao longo de um processo de contínua atenção ao Simples. Quando se fez necessário esta atenção resultou no fruto amadurecido de uma frase serenamente provocante, precisa, insubstituível.

Cabe-me por fim refletir brevemente sobre a segunda epígrafe com que abro estas páginas ("Se nós fôssemos verdadeiramente ‘revolucionários’ (à maneira russa), ousaríamos tocar nas convenções da linguagem" – Valéry, Cahiers).

Aparentemente a mesma talvez não apresente relação alguma com o que acabo de expor. Não obstante ela conflui intimamente para a resposta de Saint-John Perse. Sim, porque o poeta, naquela circunstância, ousa "tocar nas convenções da linguagem", a saber, com o inusitado de sua resposta ele possibilita que o estado de coisas ao qual todos ali parecem estar penosamente subjugados possa ser apreendido de maneira totalmente diversa – logo, transformado (44) –. Outro poeta, Stéphane Mallarmé, certa vez escreve que quando se muda a linguagem – quando se altera a previsibilidade da comunicação usual entre os homens –, e se se o faz "à maneira russa" (radicalmente), muda-se o mundo...

Claro que esta mudança – volto a afirmá-lo – só é possível a partir da proximidade dos homens em relação ao Simples. Contudo, escreve Heidegger, "o número dos que ainda sabem o Simples como um bem que conquistaram diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos serão, no entanto, em toda parte, os que permanecem" (45).

O poeta Saint-John Perse, com a limpidez de sua frase – proferida em momentos de extrema solidão e perigo –, convida-nos à permanência: nela o Simples torna-se ainda mais Simples, pois o ato extraordinário de falar aos homens transcende, aos homens liberta .

 

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Psicanalista. Membro Colegiado-Fundador do OBSERVATÓRIO DA PSICANÁLISE (Colegiado Psicanalítico de Orientação Lacaniana – COPOL –, Rio de Janeiro, Brasil). Tels. (21) 2205 58 56 / (21) 2265 43 03 / (21) 9888 41 85. E-mail.: jmcastromattos@uol.com.br & jmcmattos@globo.com

(2) BADIOU, A. Alain Badiou no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. A questão de uma singularidade -universal é amplamente exposta e problematizada nas conferências O que é pensar filosoficamente a política? (: 89 - 96) e São Paulo: um contemporâneo (: 97 - 110). – Valho-me aqui do termo alemão Kultur tal como Freud o faz em Das Unbehagen in der Kultur (1930) [O mal-estar na civilização], não obrigando-me pois a demarcar as diferenças entre cultura e civilização.

(3) SAINT-JOHN PERSE (1887 - 1975). Descendente de colonos franceses estabelecidos nas Antilhas após o Século XVII, nasce em Guadalupe, recebendo o nome de Alexis Léger. Toda a sua obra de poeta é marcada pelos anos de juventude passados nas Antilhas. Em 1899, em seguida a um terremoto, sua família é reunida e retira-se de Guadalupe. Perse decidirá jamais voltar à sua terra natal. Todavia, sua memória e suas emoções são definitivamente marcadas pela fauna e flora das Antilhas. O exílio fará parte integrante de sua obra, a qual será impregnada de uma língua rica em vocábulos raros e por metáforas estranhas e preciosas. Em Éloges (1911) o poeta relata sua infância nos trópicos e toda uma época da burguesia colonial francesa é descrita. Em 1960 é laureado com o Prêmio Nobel de Li teratura. Por sua vez, Alexis Léger será um dos artífices da diplomacia da Terceira República. Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores, ele participará com Aristide Briand da política de détente européia vis-à-vis o nazi-fascismo. Destituído pelo regime de Vichy, ele se estabelecerá nos Estados Unidos em 1940, retornando à França apenas em 1957. Filósofo e historiador, mas também geólogo, naturalista e etnólogo, Saint-John Perse é um espírito ávido de música tanto quanto de arqueologia. Homem do Atlântico, Perse concluirá seus dias em Giens, à beira do Mediterrâneo.

(4) Frase citada em Elogio dos intelectuais, de Bernard-Henri Lévy (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1988). Obra comentada por José Castello no artigo "O arauto da solidão", in: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19 de Julho de 1988: 08. (5) "Folhetim" (nº 412), in: Folha de São Paulo. São Paulo, 09 de Dezembro de 1984: 02.

À MORTE VOLUNTÁRIA DO FUGITIVO WALTER BENJAMIN

BERTOLD BRECHT (1941)

Tradução de Haroldo de Campos

Ouvi dizer que levantaste a mão contra ti mesmo,
Antecipando o carniceiro.

Oito anos banido, o olho no triunfo do inimigo,
Impelido afinal a uma fronteira intranspassável,
Passaste, como se diz, o passo transpassável.

Ruem os reinos. Chefes de quadrilha
Acodem em compasso de estadistas. Os povos
Somem da vista, toldados pelas armas.

O futuro no escuro. Frágeis
Os poderes benignos. E vias tudo isso
Quando destruíste o corpo torturável.

(6) No prólogo de seu belo ensaio sobre Nietzsche, Scarlet Marton define esplendidamente esta expressão: "Extemporaneidade não significa anacronismos (...) nem dons proféticos, mas apenas uma certa maneira de se relacionar com o presente. (O extemporâneo) endereça ao mundo uma crítica radical (grifos meus, JMCM). Extemporaneidade implica radicalidade. (O extemporâneo) é ‘um homem em luta contra seu tempo’. Radicalidade implica diferença." – MARTON, S. Friedrich Nietzsche, uma filosofia a marteladas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984: 07 - 08.

(7) No contexto de minha exposição remeto o leitor ao texto A pretensão de universalidade da hermenêutica, de Jürgen Habermas. – HABERMAS, J. "A pretensão de universalidade da hermenêutica", in: Dialética e hermenêutica (para a crítica da hermenêutica de Gadamer). Porto Alegre: L&PM, 1987: 26 -72.

(8) Entre tantos outros lembro-me aqui de Antonio Gramsci (1891 - 1937), talvez o mais importante pensador marxista do Século XX. Prisioneiro político durante os dez últimos anos de sua vida (sob a vigilância direta de Benito Mussolini), nos anos de prisão Gramsci escreveu, apesar de todas as dificuldades que lhe eram impostas pelo fascismo, a maior e mais importante parte de sua obra – publicada postumamente sob o título geral de Cadernos do cárcere –.

(9) João Cabral de Mel o Neto (1920 - 1999) fornece um brilhante testemunho do que estou afirmando: "(...) eu não entrei na Literatura pela porta aberta por onde em geral as pessoas entram, a ignorância e a bossa. Eu tinha uma grande curiosidade intelectual, nunca fui um improvisador, nunca acreditei em inspiração ou em bossa. (...). A verdade é que em matéria de criação eu acredito mais no trabalho do que na espontaneidade. Eu não creio que a espontaneidade seja critério para nada. Nem critério moral. Existe certo tipo de autor, certo tipo de leitor que erige a espontaneidade como valor. O que eu faço espontaneamente não presta, me dá a impressão que é eco de alguma coisa que eu li de outra pessoa. Eu acho que a pessoa é autêntica quando trabalha demais para eliminar, daquilo que ela faz, tudo que não é ela mesma, tudo que é estranho. Eu acho o trabalho essencial na criação artística, e é através do trabalho que a pessoa chega a uma expressão autêntica. (...). Eu não creio que alguém escreva com emoção. Com emoção um sujeito comete um crime, pratica atos irracionais. E escrever é um ato racional. Mas você pode escrever friamente uma coisa que contenha emoção para o leitor. Com emoção não se escreve uma obra de arte. Você imaginou um arquiteto fazer uma casa com emoção? O arquiteto senta calmamente diante de sua prancheta e desenha uma casa. Assim com o músico, com o pintor. (...). A obra de arte é um objeto que provoca uma emoção. Para fazer um objeto assim você precisa de um trabalho minucioso, consciente e demorado." – MELO NETO, J. C. "Com emoção não se escreve uma obra de arte", in: Leia livros. São Paulo: s. e., Fevereiro de 1986: 07 - 09.

(10) Atendo-me aqui a Ferdinand de Saussure (1857 - 1913), fundador da Lingüística, a frase de Saint-John Perse é um conjunto de signos verbais (palavras). Para Saussure o signo verbal é formado pela união de um significante (constitui o plano de expressão do signo) e de um significado (constitui o plano de conteúdo do signo). Resumidamente, o significante verbal corresponde à "materialidade do som da palavra" e o significado corresponde ao(s) "sentido(s)" da palavra. – BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1979.

(11) BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980: 46.

(12) Sim, bastam alguns. Um dos textos tardios de Heidegger, O caminho do campo (1948), retoma com precisão o tema central de Ser e Tempo (1927): a guarda da questão do sentido do Ser no horizonte do Tempo Finito é responsabilidade de pensadores e poetas.

(13) Esta "irrupção do humano nos homens" é, portanto, a própria linguagem – e, pois, a própria Kultur –. Percebe-se imediatamente: em minhas páginas humano e humanidade sã o termos substantivos. Mantenho-me assim à letra de Heidegger: tais expressões não têm nada a ver com quaisquer "humanismos". – HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

(14) ANDRADE, C. D. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1979: 783 - 784. Transcrevo a seguir um dos poemas de Drummond:

O CONSTANTE DIÁLOGO

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
O semelhante
O diferente
O indiferente
O oposto
O adversário
O surdo-mudo
O possesso
O irracional
O vegetal
O mineral
O inominado

Diálogo consigo mesmo
Com a noite
Os astros
Os mortos
As idéias
O sonho
O passado
O mais que futuro

Escolhe teu diálogo
&
Tua melhor palavra
Ou teu melhor silêncio
Mesmo no silêncio e com o silêncio
Dialogamos.

(15) Por exemplo (um dentre tantos outros), a violenta e covarde repressão aos estudantes chineses ocorrida em Pequim (Maio - Junho de 1989).

(16) Com sua resposta Saint-John Perse objetiva determinar o estatuto lógico e ontológico do conceito corrente de liberdade, inscrevendo-o – desde a singularidade de seu ato – em um âmbito universal. Desse modo, Perse procura desvencilhá-lo de qualquer adjetivação ou manipulação ideológica.

(17) Esta expressão ("classes de espírito") encontra-se em Proust: "As classes de espírito não correspondem às classes sociais". – CANÇADO, J. M. O. Marcel Proust, as intermitências do coração. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1983: 10.

(18) Proposição 6.421 do Tractatus logico-philosophicus (1921), de Wittgenstein: "(Ética e estética são uma só)". – WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: EDUSP, 1993: 277.

(19) Recordo a exemplar defesa que Sócrates faz de si mesmo diante de seus estúpidos acusadores. A leitura do A defesa de Sócrates, de Platão, é decisiva para que possamos compreender que ser livre é, em primeira instância, corresponder (co-responder) à própria dignidade... – PLATÃO, "A defesa de Sócrates", in: Sócrates. São Paulo: Editora Abril, 1972: 11 - 33.

(20) Ao longo de minha argumentação suponho não ser difícil ao leitor deduzir que a universalidade de tais elementos – linguagem e Kultur e liberdade – exige a singularidade do ato locucionário que os institui deste modo, a saber, idênticos. Ora, a singularidade de tal ato é o próprio deve-se querer a identidade entre linguagem e Kultur e liberdade... (Nota bene: isto não tem nada a ver com quaisquer voluntarismos.)

(21) A linguagem – e, pois, a Kultur – enquanto um campo estrutural e organicamente pluralista é, em si mesma, a própria cidadania. E este termo – cidadania – é inteiramente apropriado para expressar a exigência de uma singularidade-universal contraposta à barbárie: por um lado, refere-se à pólis (universalidade), e, por outro, à inscrição diferencial dos indivíduos no interior desta mesma pólis (singularidade). Não por acaso, Sócrates e Kant diziam-se cidadãos do mundo...

(22) Segundo Heidegger a filosofia (metafísica) inicia-se com Platão (428-7 – 348-7 a.C.) e conclui-se com Nietzsche (1844 - 1900). Neste percurso – desde pois o Crátilo (de Platão) aos aforismos de Nietzsche –, o tema linguagem recebe dos filósofos, explícita ou implicitamente, atenção constante e criteriosa.

(23) Tal fato conduz Octávio Paz (Prêmio Nobel de Literatura de 1990) a observar muito justamente que os homens não falam porque pensam, mas sim pensam porque falam...

(24) Refiro-me a Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951). Em sua obra Investigações filosóficas (escrita em 1948 e publicada postumamente) o filósofo propõe uma concepção teórica sobre a linguagem basicamente distinta da que havia proposto no Tractatus logico-philosophicus (publicado em 1921). – WITTGENSTEIN, L. "Investigações filosóficas", in: Wittgenstein. São Paulo: Abril Cultural, 1975.

(25) Os textos de Heidegger, como em várias ocasiões foi afirmado pelo próprio pensador, não se constituem em um "sistema filosófico-metafísico". Isto porque Heidegger objetiva pensar o que tal sistema não pensa, a saber, objetiva pensar continuamente a diferença ontológica – diferença de sentido ou de compreensibilidade entre Ser e ser-do-ente no horizonte da temporalidade finita –. Tal projeto ancora-se em (e desenvolve-se a partir de) Ser e Tempo (1927). – HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.

(26) 1) HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

2) HEIDEGGER, M. O caminho do campo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969.

(27) O Dasein é ontológico-historial. Isto significa que o Ser – com mais propriedade: a questão do sentido do Ser – foi-lhe destinado – enviado a ele como um dom (que lhe cabe, pois, cuidar) – em um horizonte temporal finito – na clareira ( em alemão: Lichtung) em que vige uma temporalidade originariamente finita –. Ora, a linguagem – enquanto "casa do Ser" – é a estrutura que faculta ao Dasein a práxis deste dom. Neste sentido, o Dasein é ser-no-mundo.

(28) "‘Mundo’, na expressão ‘ser-no-mundo’, não significa, de forma alguma, o ente terreno em oposição ao celeste, nem o ‘mundano’ em oposição ao ‘espiritual’. ‘Mundo’ não significa nenhum ente ou domínio de entes, mas a Abertura do Ser. O homem é – e é homem – na medida em que é o ex-sistente. O homem está ex-posto à Abertura do Ser – que é como Abertura –. Sendo o lance (em alemão, Wurf), o Ser lançou para si a essência do homem no ‘cuidado’. Lançado desse modo, o homem está ‘na’ Abertura do Ser. ‘Mundo’ é a Clareira do Ser à qual o homem se ex-põe por sua essência lançada." – HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995: 79.

(29) HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995: 24.

(30) HEIDEGGER, M. Op. cit.: 24 - 25.

(31) HEIDEGGER, M. Op. cit.: 32.

(32) HEIDEGGER, M. Op. cit.: 34.

(33) HEIDEGGER, M. Op. cit.: 34.

(34) HEIDEGGER, M. Op. cit.: 36. (Notas 28 a 34: tradução com pequenas modificações realizadas por mim, JMCM.)

(35) NIETZSCHE, F. "Assim falou Zaratustra", in: Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1974: 235.

(36) Para Platão os sofistas são seres "incapazes de se espantar"... Isto porque compreendem a linguagem apenas como um conjunto de sinais (signos) arbitrariamente criado pelos homens, logo, um conjunto de sinais (signos) que não possui fundamentação ontológica alguma. Ora, diz-nos Platão, é possível aos homens se espantarem diante do Ser a partir da arbitrariedade e da previsibilidade da linguagem tal como a entendem os sofistas? Como determinar que algo é – que é pois verdadeiro (ontológica, singular e universalmente) – a partir da não-correspondência (sofística) entre linguagem e Ser? Se a linguagem, como querem os sofistas, não possui relação alguma com o Ser – ela mesma não possui "ser" algum, muito simplesmente porque não há Ser –, como que a verdade ontológica (singular e universal) seria possível?

(37) ARENDT, H. "Martin Heidegger faz oitenta anos ", in Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras, 1987: 227.

(38) "Suponhamos que não houvesse esta significação indeterminada e que não entendêssemos o que ‘Ser’ significa. Em tal caso, o que aconteceria? Um nome ou um verbo a menos em nossa linguagem? De modo algum. Já não haveria simplesmente nenhuma linguagem. Não seria possível o dar-se do ente para nós, de maneira a ser nomeado e falado. Pois se remeter ao ente enquanto tal implica compreendê-lo a princípio como ente, isto é, em seu ser. Se simplesmente não compreendêssemos o Ser, se a palavra ‘Ser’ não apresentasse sequer aquela significação imprecisa, então toda e qualquer palavra seria impossível. Não poderíamos jamais ser aqueles que falam. Não poderíamos ser o que somos. Pois ser homem significa ser um falante." – HEIDEGGER, M. Einführung in die Metaphysik. Tubingen: Max Niemeyer, 1935: 62. Cf. NUNES, B. Passagem para o poético (filosofia e poesia em Heidegger). São Paulo: Editora Ática, 1986: 197.

(39) HEIDEGGER, M. "Hölderlin y la esencia de la poesia", in: Arte y poesia. México: Fondo de Cultura Económica, 1985: 126 ss.

(40) A saber, o "pré-domínio do discurso científico-tecnológico" .

(41) HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995: 97.

(42) HERÁCLITO (540 - 470 a.C.) – Fragmento 18, em minha (JMCM) tradução: Na espera, a con-juntura do inesperado.

(43) A proposição 6.421 do Tractatus logico-philosophicus (1921) ainda espera que as suas conseqüências sejam devidamente exploradas. Como se sabe, significativamente entre parênteses, Wittgenstein conclui: "(Ética e estética são uma só.)" (WITTGENSTEIN, L. Op. cit.: 277.) Ora, esta mesma articulação entre ética e estética encontra-se também em Heidegger: "O esvaziamento da linguagem, que prolifera rápido por toda parte, não destrói apenas a responsabilidade estética e moral vigente em todo emprego da linguagem. Provém de uma ameaça à essência do homem." (HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Op. cit.: 32, grifos meus, JMCM). Não menos importante é a articulação entre ética e estética na leitura que Lacan realiza do legado freudiano (o "estilo", o "bem-dizer", a "escritura", a "monstração topológica", etc).

(44) "Outra questão é saber como se pode falar de uma transformação da sociedade, o que nos remete a uma passagem muito citada das Teses sobre Feuerbach, de Karl Marx: ‘Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo. §. Citando-se esta frase e aplicando-a, perde-se de vista que uma transformação do mundo pressupõe uma mudança da representação do mundo e que uma representação do mundo não pode ser obtida senão através de uma interpretação adequada do mundo. Isto significa que Marx baseia-se em uma interpretação bem determinada de mundo para exigir sua transformação, o que demonstra que aquela frase é uma frase não fundamentada. Ela dá a impressão de ser pronunciada contra a filosofia, enquanto que na segunda parte da frase a exigência de uma filosofia é tacitamente pressuposta." – HEIDEGGER, M. "Martin Heidegger aos oitenta anos (entrevista com Richard Wisser em 1969)", in : Cahier de L´Herne. Paris: Éditions de L´Herne, 1983: 382 - 383.

(45) HEIDEGGER, M. O caminho do campo. O p. cit.: 70.

Nota suplementar. Claro que o "complô dos medíocres em nome da mediocridade" (a expressão é de Jean Beaufret) continuará entregando Nietzsche e Heidegger aos nazi-fascistas... Portanto, ter-me valido destes pensadores – sobretudo de Heidegger – para ler a frase de Saint-John Perse parecerá, aos olhos daqueles militantes da inibição intelectual, um " ato contraditório e irresponsável" (sic). Ora, sem ilusão de convencê-los – visto que a mediocridade e a canalhice são incuráveis (Freud e Lacan recusaram energicamente a psicanálise a estes "traços de caráter") –, cito Heidegger: "O ‘alemão’ (na obra de Hölderlin) não é dito ao mundo para o mundo se restabelecer ao modo de ser alemão. É dito aos alemães para que eles, em virtude do destino que os faz pertencer aos outros povos, integrem juntamente com eles a história do mundo. A Pátria dessa morada histórica é a proximidade ao Ser." – HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Op. cit.: 62 - 63, grifos meus, JMCM. Cf. também o definitivo artigo Ainda Heidegger e o nazismo, de Pierre Aubenque – AUBENQUE, P. "Ainda Heidegger e o nazismo", in: Revista Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, Outubro de 1988: 87 - 99.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
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