Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A mulher não ex-siste
(Breves anotações sobre a inexistencia da relação sexual: apud acta Lacan, 1973)
José Marcus de Castro Mattos

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A Mulher não ex-siste, o que não exclui – bem ao contrário – que se faça Dela o objeto do desejo.
JACQUES LACAN, Tele visão (1973)

(...) um dos temas de meditação nos monastérios budistas da China e do Japão é duvidar da existência de Buda. Trata-se de uma das dúvidas necessárias para se chegar à verdade.
JORGE LUIS BORGES, Sete noites (1980)

Escrevi um texto. Recordo pois o poeta Murilo Mendes: – "Os textos devem ser tão importantes quanto os testículos..." (2)

Assim, espero que este texto seja "tão importante quanto os (meus) testículos" – escrevo "(meus) testículos" porque, como o leitor sabe (ou deveria saber), Fre ud nos ensina & Lacan nos confirma: o gozo é sempre singular ("de cada um") e nunca universal ("de todos").

(O Gozo Universal – A MULHER (3) – prometem-no as religiões e as utopias econômico-políticas, entre as quais – é preciso citá-las? – o Capitalismo & o Comunismo.)

Então o que escrevo são algumas pro-vocações (4). De minha parte, espero que as mesmas excitem no leitor o pensamento e (por que não?) o riso – o riso libertino do Divino, do Divino Marquês, Marquês de Sade...

 

1

Começo com um poema (5), epígrafe orientadora das próximas linhas:

A VERDADEIRA DIALÉTICA

Aí os caçadores chegaram
Mataram o lobo e abriram a barriga
E encontraram a vovozinha
Toda mastigadinha

Quanto a Chapeuzinho Vermelho
Eles comeram

Certo, sexualidade é crise – a nossa crise –. Sim, nossa crise mais íntima e causa de nossas crises mais públicas: a crise econômica, a política, a cultural, a social.

A sexualidade é a nossa crise muito simplesmente porque não temos sexo – convido-o neste momento, leitor, a olhar entre as próprias pernas: contra todas as evidências, nada encontrará aí...

Afirmar que não temos sexo significa dizer que o penduricalho (6) – o "pênis" – que um homem carrega (coitado) entre as próprias pernas e que o buraco – a "vagina" – que uma mulher carrega (coitada) entre as próprias pernas não são determinantes da sexualidade de nenhum deles.

De modo mais simples: ter nascido "dono" de um penduricalho ou "dona" de um buraco não nos torna "donos" de nossa sexualidade – sexualidade esta que a Ordem (a Ordem Capitalista e a Ex-Ordem Comunista) quer porque quer, imperiosamente, Branca, Heterossexual, Burguesa, etc –.

2

Vou ao ponto:

¬ O que é a sexualidade? Respondo: – O desejo.

¬ O que é o desejo? Respondo: – A falta.

¬ O que é a falta? Respondo: – A castração.

¬ O que é a castração? Respondo: – A lâmina (simbólica) que nos recorta de A MULHER, de A Verdade, de O Deus, de – ouso a palavra? – O Gozo, de – uso a palavra? – A Morte.

Chego ao ponto:

¬ Por que estamos vivos? (Bem, estamos?) Respondo: – Estamos vivos não porque nossos corações "batem de fato sessenta e oito vezes por minuto e irrigam nossos corpos de sangue", mas sim porque nossos corações batem em falso um milhão de vezes por segundo e irrigam nossos corpos de sangue, suor e lágrimas – logo, de sexualidade, de desejo.

Eis o ponto:

¬ A sexualidade (o desejo) é a batida em falso do coração... Batida em falso porque o que aí bate já bateu e cortou: porque em cada batida do coração trata-se da ação – nada cordial – da lâmina (simbólica) Nome-do-Pai.

O ponto então é este:

¬ O Nome-do-Pai, a Lei, o Grande Outro, a Estrutura, a Linguagem castrou-nos – e castra-nos a cada instante em que, histéricos, abrimos a boca – de O Gozo Todo De A MULHER. Portanto, este A MULHER não ex-siste (7): não ex-siste para "nós", castrados; não ex-siste para "nós", neuróticos (histéricos ou obsessivos).

Esta Falta faz com que abramos dolorosamente a boca e que, no esgarçamento dos lábios, da língua e dos dentes, reste uma palavra – uma palavra "resto" deste Gozo Todo de A MULHER e que "nós", neuróticos, histericamente ou obsessivamente depositamos aos pés de cada pequeno outro ("eu", "você", "nós", "eles") para convencê-lo (e nos convencermos) de que estamos dizendo A Verdade.

¬ Que Verdade? Respondo: – "Eu te amo", "Eu te odeio", "Eu te amodeio".

Ora, nestes "Eu te amo", "Eu te odeio", "Eu te amodeio", leio isto: o "eu" dirige-se ao "tu" para convencê-lo (e se convencer) de que ambos podem se relacionar sexualmente e de que ambos podem alcançar, no orgasmo, O UM: O Gozo Com E De A MULHER.

Traduzo:

O "eu" dirige-se ao "tu" para convencê-lo (e se convencer) que do "encontro sexual" de seus corpos sexuados (e suados) resultará – no urro de ambos – O UM, O Pai-Não-Castrado (O Pai-Vivo), A MULHER. Todavia, o "eu" e o "tu" – porque castrados – alcançam no orgasmo apenas O Inter-dito: no "Eu te amo", o masoquismo; no "Eu te odeio", o sadismo; no "Eu te amodeio", o sadomasoquismo (8).

Portanto, carregando o seu penduricalho ou o seu buraco cada um é, enquanto neurótico, um sujeito barrado: barrado no baile em que os psicóticos dançam e fornicam com A MULHER – apenas o psicótico (o sujeito "não-castrado"), lembra-nos Lacan, encontra A MULHER (9).

Ora, se para "nós", neuróticos, A MULHER não ex-siste, a relação sexual também não ex-siste. Claro: se o que levamos para a cama é a nossa Falta, o que transamos na cama é esta Falta mesma – o que resta (o que restou) é (foi) o gozo de cada um, a separação.

Neste gozo de cada um – neste, pois, gozinho – nenhuma Completude, nenhuma Totalidade, nenhum Mundo, nenhuma História, nenhuma Verdade, nenhum Deus, nenhuma MULHER, nenhuma Morte. – Felizmente ! Felizmente "nós", neuróticos, erramos de cama ao urrarmos na cama: não estamos na cama de A MULHER mas sim na cama de uma mulher...

(No auge de sua carreira profis sional a cantora Madonna quis – espertamente, sem dúvida – encarnar este A MULHER, e um homem – o ator Sean Penn, seu ex-marido – caiu nessa: "foi pra cama com MADONNA". Coitado: dançou.)

3

Radicalmente freudiano, Lacan diz tudo isto que aqui eu apenas lambo (afinal, diz Paul Valéry, "Eu só mordo o que posso") em duas ou três palavras: "Todo desejo humano está baseado na castração (10)."

Este é o nosso impasse radical:

¬ A MULHER não ex-siste. Isto implica: a relação sexual não ex-siste. Isto implica: O Gozo não ex-siste. Isto implica: o gozo de cada um – o pequeno gozo –, este, ex-siste, e, "o que é gozado nisto tudo", este gozinho quer gozar de novo! Isto implica: no urro, o erro – a errância do sujeito berrado..., não, desculpem, do sujeito barrado (notação lacaniana: $ – sujeito-do-inconsciente –).

Filosofia, Ciência e Política são discursos "perversos": castrados – porque discursos –, "recusam" a castração: para evitá-la, no lugar do impasse o recurso a um fetiche. – Que fetiche? Respondo: – O próprio discurso. Na Filosofia, o chatíssimo discurso do Impessoal; na Ciência, o chatíssimo discurso do Universal; na Política, o chatíssimo discurso do Gozo De E Para Todos – logo, nestas "perversões", o chatíssimo discurso que "forclui" o desejo: o desejo de gozo de cada um e do qual apenas cada um pode falar.

(Em algum lugar de suas garatujas, Nietzsche diz gozozamente: "Eu jamais morreria pelas minhas idéias". Pergunto: – Caro leitor, você morreria pelas suas idéias?)

Filosofia, Ciência e Política nada sabem do desejo (da sexualidade). Tais discursos armam o semblant (a pose) para indicar que sabem do que estão falando. Não sabem. No semblant da Filosofia, da Ciência e da Política há apenas a mascarada para ocultar a fala singular do desejo, ou, melhor, para ocultar a "vergonha" de falar em público de um desejo – na palavra do filósofo, do cientista e do político impera a assexualidade canalha do mundo público, isto é, no lugar da Falta, a Farsa.

Quem sabe do desejo (da sexualidade) é o poeta. Isto porque o poeta é um sem-vergonha, a saber, aquele que traz em sua palavra singular, paradoxalmente, a carne exposta do mundo.

4

Há os que apostam no Pai: querem acreditar que o Pai não está morto e que A MULHER não é castrada. Para estes há o Bem (o Bem platônico, porque não há outro): a apropriação privada dos meios de produção (no Capitalismo) ou a apropriação coletiva dos meios de produção (no Comunismo). Dá no mesmo, não, desculpem, dá no Mesmo.

Já que a Política aqui entrou (11), sustento o seguinte: o Outro do Capitalismo não é necessariamente o Socialismo ou o Comunismo. O Outro do Capitalismo – pelo que estamos vendo – é o próprio Capitalismo... O Capitalismo convive muito bem com o Socialismo ou com o Comunismo – até os ajuda, quando precisam... Isto significa: a Ordem convive com a Ordem. A Ordem, seja ela capitalista ou comunista, só não convive com a Horda, com o Caos. O fim da Ordem só ocorre pela promoção do Caos – a isto Nietzsche denomina niilismo ativo –.

Neste contexto, o revolucionário quer ressuscitar o Pai e não ver a castração de A MULHER – o revolucionário atua na edificação da Ordem e, reacionário, espera o melhor –. O subversivo, ao contrário, quer enterrar de vez o Pai e ver a castração de A MULHER – o subversivo atua na "desedificação" da Ordem e, acionário, opera pelo pior (12).

5

Para concluir, de novo a sexualidade.

Iniciei estas páginas com um poema. Termino-as com outro, de Carlos Drummond de Andrade (13):

A LÍNGUA LAMBE

A língua lambe as pétalas vermelhas
Da rosa pluriaberta; a língua lavra
Certo oculto botão e vai tecendo
Lépidas variações de leves ritmos.

E lambe, lambilonga, lambilenta
A licorina gruta cabeluda,
E, quanto mais lambente, mais ativa,
Atinge o céu do céu, entre gemidos,
Entre gritos, balidos e rugidos
De leões na floresta, enfurecidos.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Psicanalista. Membro Colegiado-Fundador do OBSERVATÓRIO DA PSICANÁLISE (Colegiado Psicanalítico de Orientação Lacaniana – COPOL –, Rio de Janeiro, Brasil). Tels. (021) 2205 58 56 / (021) 2265 43 03 / (021) 9888 41 85 / jmcastromattos@uol.com.br & jmcmattos@globo.com

(2) MENDES, M. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1983.

(3) Deste significante escrito em caixa alta – A MULHER – decorrem dois conjuntos de significantes que têm apenas a letra inicial em caixa alta: a) os que decorrem univocamente – Gozo Universal, Capitalismo, Comunismo, Ordem, Verdade, etc –; e b) os que decorrem dialeticamente – Nome-do-Pai, Lei, Grande Outro, Estrutura, Linguagem, etc –.

(4) Pro-vocações – do latim provocare: causar a fala, convocar ao dizer.

(5) LEITE, S. U. Obra em dobras (1960 - 1988). São Paulo: Claro Enigma, 1989: 73.

(6) "(...) esse falo que certa vez qualifiquei como penduricalho (...)." – LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I (1974 - 1975), inédito, aula de 17 de Dezembro de 1974.

(7) "A MULHER não ex-siste. Mas, Ela não ex-sistir não exclui que Dela se faça o objeto de seu desejo. Justo o contrário, daí o resultado." – LACAN, J. Televisão (1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993: 67. "(...) isto quer dizer que quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É isto o que define a... a o quê? – justamente, a mulher, só que A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A –. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois – já arrisquei o termo, e por que olharia eu para isso duas vezes? – por sua essência ela não-é-toda." – LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972 - 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985: 98.

(8) Lacan assistiu maravilhado ao filme O império dos sentidos (1976), de Nagisa Oshima. Sim, é extraordinário. Os efeitos tragicômicos da in-ex-sistência da relação sexual foram rigorosamente explicitados pelo diretor japonês.

(9) "Eis porque uma mulher – pois de mais de uma não se pode falar –, uma mulher só encontra O homem na psicose." – LACAN, J. Televisão (1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993:70. Ora, mutatis mutandis, também um homem só encontra A mulher na psicose – por exemplo, Schreber –.

(10) LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979: 114 - 115.

(11) Para o poeta Paulo Leminski, a Política "é o sexo dos velhos" . Há uma reflexão muito interessante de Leminski em Forma é poder, artigo publicado no suplemento "Folhetim" do jornal Folha de São Paulo, 04 de Julho de 1982: 05.

(12) Remeto-os à frase final de Lacan em Televisão (1973): "Do que perdura de perda pura ao que só aposta do pai ao pior. " – LACAN, J. Op. cit.: 81.

(13) ANDRADE, C. D. "A língua lambe", in: Folha de São Paulo, 16 de Maio de 1990.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
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