Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A transferencia e sua relação com o inconsciente
Gustavo Capobianco Volaco

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Uma questão princeps marca este trabalho, que se resume no seguinte: Se a transferência é o que movimenta a análise e determina a direção desta, o que é que se transfere? Foi nela que este teve início e numa resposta a ela encontra um ponto a guisa de conclusão. O que se segue parte de uma inevitável articulação entre dois conceitos fundamentais da psicanálise, ou seja, a transferência e o inconsciente, que encontra no aforismo "a transferência é a atualização da realidade do inconsciente" (LACAN, 1964, pg 139) suas razões.

Na sua obra "A Interpretação dos Sonhos", Freud põe em consideração, determinadas características do inconsciente, que insurgem numa logicização bastante distinta do sistema consciente, o qual supomos habitar. Nota que partículas conjuntivas"se", "porque", "como", "embora", " ou... ou" – não comparecem nos pensamentos oníricos e, quando aparecem no relato do sonho, são oriundos das conexões que o eu necessita estabelecer.

Quinze anos mais tarde, reafirma, agora de forma mais enfática que "Não há nesse sistema (inconsciente) lugar para a negação, dúvida ou quaisquer graus de certeza: tudo isso só é introduzido pelo trabalho de censura entre o Incs e o Pcs".(FREUD, 1915, pg. 220) Dito de outra forma, as contradições entre termos encontram expressão desde o inconsciente onde, "Pede-se que você feche os olhos" "Pede-se que você feche um olho" (FREUD, 1900, pg. 304) são inteiramente plausíveis e coabitáveis. O princípio aristotélico da não contradição, onde uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sobre o mesmo aspecto, paradigmaticamente aqui exemplificado por uma frase desse tipo: "Se estou sentado não posso estar de pé", não corresponde ao inconsciente freudiano, que por sua vez está muito mais para o lado da lógica paraconsistente do que da formal.

Contudo, cabe explicitar, que o exemplo onírico de Freud, não é correlato idêntico a aquele sistema, como ele mesmo não cessou de pontuar escrevendo que "um o sonho não é o inconsciente".(FREUD, 1920, pg 95). Este se mostra muito mais pela hiância, pelo buraco entre as duas frases, que se caracterizam por serem antitéticas e não proporem por si unificação. É essencialmente descontinuidade, incongruidade caracterizado por esse saber disjuntivo e textual, onde um significante reenvia sempre a outro não permitindo o fechamento da cadeia.

É isso, que esse emblemático sonho nos mostra, desde que o percorramos com mais apuro, levando em conta alguns outros elementos e conjecturas. Em uma primeira observação, notaremos que, tanto no relato do sonho, como na breve interpretação realizada, algo não cola, manca, e ainda insiste de forma contundente. Quer nos reportemos a primeira versão; na cart 50 a Fliess, e a comparemos com a posteriormente escrita, ou nos detenhamos nesta última que traz mais elementos, Freud nos demonstra em ato o inconsciente nesse movimento de abertura e seu sucessivo fechamento. "Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela... Ali, alguma coisa quer se realizar..."(LACAN, 1964, pg. 30) como disse Lacan.

De início, podemos destacar que este sonho não ocorre em qualquer momento da vida de Freud. Na "Interpretação dos Sonhos", escreve que se trata da noite anterior ao funeral de seu pai. Porque a Fliess, relata que foi na noite posterior? Qual a razão dessa troca noturna? De qualquer modo, a morte permeia as duas sentenças que visualiza num aviso, como ao menos uma delas deixa transparecer de forma clara.

Outra diferença surge entre os escritos, pois estranhamente em 1986 somente a frase, "Pede-se que você feche os olhos" (FREUD, 1986, pg. 323) aparece, numa reconhecida barbearia a qual freqüentava diariamente. Em 1900 elas – agora são duas – estão numa placa "bem semelhante aos avisos proibindo que se fume nas salas de espera das estações de trem". (op. cit.). Sabemos pelos seus biógrafos, qual era a relação de Freud com o fumo e seu posterior falecimento por um câncer na boca. Novamente a morte surge no contexto.

Agora, quando se dispõe a discorrer sobre o conteúdo onírico, enigmaticamente omite no texto de 1900, exatamente a interpretação da sentença que é a única a aparecer naquela correspondência, que na época se relacionava a uma obrigação para com os mortos, um dever filial de fechar os olhos do pai no caixão. E quanto à frase "Pede-se que você feche um olho" (op. cit.) faz referência a fechar os olhos (1) a fazer "vista grossa" ao que poderiam considerar como simples demais o funeral organizado a Jacob por Sigmund, que não poupa explicações sustentadas na pouca importância que o pai dava a esse tipo de preparativos.

Mas o que parece mais curioso é, a afirmação freudiana de que cada uma das versões tinha um sentido próprio e levou a uma direção diferente quando o sonho foi interpretado. Porque isso aparece aqui dessa maneira, quando ele mesmo enfatizou que interpretando um sonho, nas suas mais variegadas apresentações, chegamos a um ponto comum, o umbigo ou nó? Quais direções são essas a que ele chegou que eram tão distintas? O que é que produz tantas lacunas nisso que escreve a respeito desse sonho em particular?

Não é difícil encontrar na sua correspondência com Fliess, o que surge como um desejo de morte ao pai, mesmo que tenhamos que lê-las para além do que ele supõe estar escrevendo. É esse o caso dessa seguinte carta redigida enquanto Jacob estava enfermiço, meses antes de sua morte:

"... não ouso afastar-me, muito menos por dois dias, em nome de um prazer ao qual gostaria de me entregar por completo. Encontrar-me com você em Berlim, ouvi-lo falar por algumas horas sobre a nova magia e, de repente, ter que voltar as pressas, de dia ou de noite, por causa de notícias que poderiam ser um alarme falso, eis aí algo que realmente quero evitar". (2) (FREUD, 1986, pg. 195).

Poderíamos dizer, no enlace dessa carta, que uma possível resposta a essas questões levantadas, seria afirmar que o que resulta insuportável a Freud é reconhecer esse desejo parricida, nunca expressado conscientemente. Porém, imputar tal pusilanimidade àquele que descobriu o Complexo de Édipo e não recuou em postular um assassinato de um pai primevo, é uma distorção que não o designa. A clínica, por sua vez, demonstra que não é, de forma geral, insuportável para o sujeito, evocar seu ódio relacionado a seus pais e o desejo de morte que dele resulta. Alguns mesmo, não tardam em declará-lo, enquanto, para outros um percurso de análise se faz necessário. Portanto, não parece que a problemática resida essencialmente aí, apesar de sua quota contributiva. Devemos então considerar um contraponto.

Um pouco antes, na mesma carta onde Freud escreve pela primeira vez a respeito desse sonho em que nos detivemos, encontramos uma referência que nos lança nessa direção e, nos serve de suporte para avançarmos. O trecho é o seguinte:

"Por um daqueles obscuros caminhos por trás da consciência oficial, a morte de meu velho afetou-me profundamente. Eu o valorizava muito, compreendia-o muito bem e, com sua mescla peculiar de profunda sabedoria e fantástica despreocupação, ele teve um efeito significativo em minha vida". (FREUD, 1986, pg. 203). (3)

Se constatamos em seu devido momento, o ódio como participante nas relações entre filho e pai, esse outro exemplo nos demonstra que o amor também faz a sua aparição.Temos então, dirigidos para o mesmo indivíduo, dois afetos como conseqüência da duplicidade de um saber, que são totalmente contrários. Acontece que, mesmo sendo pólos antagônicos, são inseparáveis, dado que o amor engendra o ódio, isso para qualquer sujeito. Frente ao amor materno o ódio inevitavelmente se seguirá, pela constatação do impossível preenchimento do que lhe é demandado ser. No caso do pai, o amará na medida em interdita o gozo materno, função salvadora, mas mutuamente surgirá o ódio porque isso o faz castrador. Como poderia o sujeito enunciar ao mesmo tempo e sobre o mesmo aspecto essas duas condições? Seriam essas as direções, que as associações levaram Freud a não se deter mais nisso que se evidenciava? Não será também isso que sulca sua escrita a cada linha que produz?

Associação entre termos contrários. É isso que resulta insuportável à consciência, pois segue uma lógica que não é sua. É aí que o recalque impõe sua barra, não sobre um dos termos dessa ambivalência pura e simplesmente, mas sim pelo encadeamento entre eles, que os faz ocupar o mesmo espaço. Um espaço topológico, que a banda de Moebius dá seu modelo e, a utilização por Lacan de seu esquema L esboça brilhantemente. Quando alguém enuncia um "Tu és meu mestre" ignora de imediato que nisso que formula, declara aquilo que ele próprio é, ou seja, "Eu sou teu aluno", ignorância, vale dizer, apenas latente. Mais ainda - infelizmente só na língua francesa fica evidente - o "Tu es", é homófono ao "Tue" (Mate), onde então o que se evidencia é "Mate teu aluno", "Mate meu mestre", o oposto as declarações supracitadas.

Temos então um conceito que difere amplamente de sua tomada pré-freudiana, e porque não dizê-lo neofreudiana. "O inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo (ou a virtude) da consciência".(LACAN, 1960, pg. 844). Não o consideramos como um porão, onde estariam enterrados sei lá quais elementos que se mostrariam por uma desorganização inerente a seu estado, em troca do modo elaborado em que a consciência se demonstraria. Muito pelo contrário, ele funciona como um saber articulado, onde cada uma de suas seqüências contradiz a que a precede. Mas essa contradição não é mera oposição significante, como para fundar o que é forte a referência é o fraco, ou dizer, esta caneta está perto ao contrário daquele papel que está longe, etc. Também não é um significante único onde seu sentido é extraído da palavra ou sinal postos a sua frente. Nesses casos, verificamos uma complementaridade entre termos que, permite explicar a designação de cada um em questão. Essa fraternidade, não a verificamos quando o acento é posto sobre o saber inconsciente. Se alguém pode estabelecer para si, que odeia determinada pessoa porque não a ama, ou mesmo num paroxismo dizer que ama por que odeia ou vice-versa, como fazê-lo nas proposições onde uma partícula conjuntiva de qualquer espécie falta e o que resulta é amo/odeio, odeio/amo?

Trata-se, portanto de um saber essencialmente binário que disjunta a cada vez que é exposto porque o recalque operará sobre um de seus termos pela própria inaceitabilidade deles coexistirem perante a consciência e que o par amor/ódio apenas esboça sem implicar a totalidade de suas formas de apresentação. E na mesma medida, um saber que não se sabe, pois a metade que o complementaria e daria seu sentido lhe falta fundamentalmente.

É exatamente esse saber insabido e extirpado de sua metade pelo recalque que o analista vem a representar na transferência. "Quando o analisante enuncia um termo deste saber disjuntivo, a seqüência que lhe é acoplada no inconsciente se transfere para o lado do analista".(POMMIER, 1998, pg.85). Contrariamente a uma lei da dialética - para evocar mais uma vez a lógica clássica - que prega que quando um dos opostos se manifesta o outro se aniquila, na análise, ao aparecimento dessa bífida quando um surge o outro é transferido. Será então aí, no lugar do Outro do saber, que o sujeito irá buscar isso que desconhece quando fala, na tentativa de que enfim o inconsciente se realize. Daí Freud e Lacan tanto enfatizarem que a essência da transferência reside na resistência. Pois se ela tem a característica de colocar o inconsciente em ato, só o faz pelo viés de seu fechamento.

É o que esse recorte clínico, de uma das primeiras entrevistas de um analisante nos demonstra. Dentre as coisas que fala, queixa-se de não conseguir achar uma mulher para namorar. Sofre de inibições quando se dirige a uma delas e por mais que procure, nunca encontra afinal aquela que ele deseja. A frase que utiliza em seguida é:

- Eu quero encontrar alguém que eu ame de verdade.

Ao que lhe pergunto: Alguém?

Imediatamente ele diz:

- Eu já pensei sobre isso, sobre ser homossexual. Mas não, meus sentimentos são femininos.

- Femininos?

- Quer dizer, voltados para as mulheres.

Encerro a sessão neste ponto.

Num primeiro momento, constatamos que este analisante vem discorrendo, pelo viés diacrônico, a respeito de mulheres e como conseqüência diz de sua posição masculina frente a elas. Eis que, na tentativa de enfatizar o que vinha dizendo, um lapso irrompe na frase. A interpretação incidindo neste ponto de claudicação discursiva faz surgir logo após o oposto do evocado, ou seja, uma posição homossexual. Isto porque ao enunciar "alguém", uma binariedade inconsciente, masculino/feminino é evocada, e um dos termos, passa para o lado do analista, verificado na seqüência seguinte no: "Eu já pensei sobre isso, sobre ser homossexual".

Nessa operação de transferência de um dos termos desse saber inconsciente, a lacuna que o lapso forma no sentido da falta-a-ser do sujeito fica apagada pela própria resistência interna ao saber. Pois quando o analisante intenta dizer que gosta de mulher e surge no lugar desta, "alguém", para ele manter aquela posição e tamponar o buraco que se abre, transfere para o analista a metade contrária, gostar de homem. Com a intervenção produzindo sua aparição, é o gostar de mulher que agora se vetorizará, como os sucessivos equívocos nos demonstram. "Quando algo do material complexivo serve para ser transferido para a figura do médico, essa transferência é realizada, ela produz a associação seguinte e se anuncia por sinais de resistência". (FREUD, 1912, pg 138).

Essas constatações abrem o fenômeno da transferência naquilo que tem de imaginário e estabelecem sua apresentação estrutural simbólica. Isto, todavia, não elimina que as imagos sejam também transferidas, mas sim faz incidir sobre o próprio conflito neurótico sua base fundante.

Notas

(1) olho no plural, seria um lapsus calami?

(2) O grifo é meu.

(3) Notar-se-á que ambas as cartas carregam um grau de ambigüidade marcante.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, RJ. 1976.

FREUD, Sigmund. O Inconsciente. Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, RJ. 1976.

FREUD, Sigmund. O Sentido Antitético das Palavras Primitivas. Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, RJ. 1976.

FREUD, Sigmund. Carta número 50 a Fliess. Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, RJ. 1976.

FREUD, Sigmund. A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher.Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, RJ. 1976.

FREUD, Sigmund.A Dinâmica da Transferência.Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, RJ. 1976.

FREUD, Sigmund.Correspondência de Sigmund Freud - Wilhelm Fliess. Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, RJ. 1986.

KELLER, Vicente, BASTOS, Cleverson L. Aprendendo Lógica. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 1991.

LACAN, Jacques. O seminário – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar Editores. Rio de Janeiro, RJ, 1988.

LACAN, Jacques. O seminário – O Avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editores. Rio de Janeiro, RJ, 1992.

LACAN, Jacques. Escritos. Posição do Inconsciente. Jorge Zahar Editores. Rio de Janeiro, RJ, 1998.

LACAN, Jacques. Escritos. A Direção da Cura e os Princípios de seu Poder. Jorge Zahar Editores. Rio de Janeiro, RJ, 1998.

POMMIER, Gerard. O Amor ao Avesso. Companhia de Freud Editora. Rio de Janeiro, RJ, 1998.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 20 - Diciembre 2004
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