Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Obesidade - Uma das formas do mal-estar contemporâneo
Jorge A. Pimenta Filho

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Introdução

Freud em o Mal-estar na Civilização lembrou-nos do caráter toxizante de determinadas patologias, bem como de uma satisfação irrestrita que elas trazem para os sujeitos. Essa satisfação a mais é o que nomeamos gozo.

Ao listar a obesidade como mal-estar contemporâneo, pensamos que essa patologia segue muito de perto a eclosão dos objetos ofertados de modo invasivo pelo capitalismo moderno.

Para abordar esse tema – a obesidade, privilegiaremos sua incidência sobre os adolescentes, fazendo algumas aproximações e distinções dessa patologia à anorexia e à bulimia (A&B).

O presente artigo está organizado em uma série de pontos, tomados de diversas elaborações realizadas por autores do Campo Freudiano e demos atenção especial às elaborações desenvolvidas por Mássimo Recalcati .

1- Situando a questão

Hoje a função paterna de nomeação simbólica tem pouca consistência, e, diferentemente das sociedades antigas, não observamos de forma nítida determinadas normas sociais.

Nos chamados novos sintomas da clínica psicanalítica: anorexias, bulimias, obesidades, toxicomanias, a função da palavra e do sentido ficam subsumidas diante da presença maciça do corpo.1

Será que podemos pensar a obesidade ou a anorexia/bulimia restritas à noção de transtorno alimentar?

O alimento é considerado como suporte material do verdadeiro objeto em torno do qual essas patologias se organizam – o nada. 2

A Psicanálise, como veremos, situa a obesidade como vicissitude do desejo e do gozo.

E o que chamamos de gozo é aquilo que está para além do prazer, o que está em excesso. Gozo é um excesso por que é uma infração do princípio do prazer. O prazer é homeostático, o gozo é equiparado ao mais além do princípio do prazer, então podemos situá-lo na dimensão da pulsão de morte: o que a tentativa desesperada da recusa anoréxica nos aponta.

2- Globalização, aumento do consumo e declínio do convívio

Vivemos hoje o tempo da globalização. Mas que é a globalização?

A globalização é uma revolução. Mas uma revolução silenciosa porque modifica a relação do sujeito com o outro: com o seu semelhante, com o seu vizinho, com seu próximo. Há uma transformação do tempo e do espaço: houve, por exemplo, uma intensificação, nos últimos anos, do que chamamos comunicação. Ela é agora virtual e instantânea: aquele que está do outro lado do mundo está agora do meu lado. 3

Um outro efeito que nos interessa: a globalização não funda comunidades, mas centros comerciais. N ão produz cidadãos, mas consumidores. E o mercado é como uma máquina que auto-regula, como se fosse a famosa mão invisível descrita em 1776, pelo pai do liberalismo econômico Adam Smith em sua obra clássica: Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. 4

Um dos aspectos antropológicos que caracterizam as relações contemporâneas é o fenômeno do declínio do convívio. Anteriormente tínhamos a marca da relação humana: de que não se ia à mesa sem um ritual simbólico que envolvia relações complexas, como o dito de Apollinaire: "jamais comemos sozinhos". Hoje a pressa, a rapidez da vida faz com que se coma cada vez mais sozinhos: os fast-foods são o protótipo da vida contemporânea: pouco tempo é dedicado à convivência com o Outro. A dimensão coletiva do ritual das refeições é substituída pelo consumo solitário, sem tempo, de um alimento pré-fabricado. 5

A morte do modelo de convívio vai de par com as transformações na indústria alimentícia e o aumento da escolha anoréxico-bulímica e da obesidade. Morte que implica o declínio das funções simbólicas, declínio do Outro: A/. E esse declínio implica em que o sujeito abandona a mesa do Outro: essa é a recusa anoréxica. Ou ofende a mesa do Outro, devastando-a, consumindo o objeto-alimento numa multiplicação infinita sem respeitar uma razão simbólica: essa é a devoração bulímica. O sujeito anoréxico-bulímico escolhe trair o Outro, trair o Outro do significante, trair o Outro simbólico, trair as leis simbólicas do Outro para poder preservar a integridade de seu próprio gozo. Não respeita as leis simbólicas da castração que nos humaniza, que localiza nosso desejo. 6

A obesidade se manifesta como voracidade, um comer que está para além da refeição: algo canibalístico e destrutivo.

Essas mudanças nos hábitos e costumes é o que nos interessa aqui mais de perto. Vamos ver o que isso repercute em um determinado seguimento da nossa população: os adolescentes.

3 – A posição do adolescente na contemporaneidade

Atualmente vemos o adolescente encurralado por um vazio, marcado pela falta de um pai, falta de uma função paterna, no sentido simbólico, que lhe possa transmitir sua experiência.

Comenta-se que nos anos sessenta e os pais lamentavam quando seus filhos saiam de casa e iam viver com outros de sua idade, ou mesmo sozinhos, isso quando tinham em torno de mais ou menos 20 anos. Os pais lhes diziam que saíssem de casa nessa idade, mas já casados. Hoje, nos setores sociais de classe média a coisa muda. Não são poucos os pais que se perguntam quando deixarão suas casas esses filhos dependentes que ali permanecem até os 30 anos, com aparência de adultos e comportamentos de adolescentes.

Sabemos que a adolescência marca dois momentos distintos na vida humana, primeiro o da entrada, diante do qual é mais fácil nos situarmos – trata-se da puberdade. O outro momento, o da saída, não nos é muito fácil determiná-lo, pois implica uma série de questões, históricas, políticas, sociais, mas, sobretudo diz respeito e está intimamente ligada a um sistema simbólico. Portanto a saída se articula ao momento em que o sujeito deve aceder a certos lugares, a certas responsabilidades diante do Outro social. E só podemos verificar isso no caso a caso. Não há uma saída universal, ela é sempre única, singular para cada sujeito.

Há um momento no desenvolvimento humano em que a dependência do Outro, dos cuidados familiares, não é mais necessária. Esse é momento da puberdade, ou seja, do desenvolvimento genital do organismo humano. Quando o sujeito não se contenta mais em estar ligado aos objetos maternos como fazia quando era criança. Na puberdade, a relação com os objetos muda. Os nomes de fantasia, da infância, não valem mais. A proibição do incesto torna-se real e esse é o requisito para que o sujeito se articule bem no mundo da civilização humana. O sujeito adolescente tem agora que se afastar do objeto mãe – aquela que encarnava o grande Outro, r esponsável pelos cuidados mínimos para sua existência.

4 – Ritos de iniciação na adolescência

A certeza de que essa separação aconteceu, o sujeito vai encontrá-la num ponto do seu próprio corpo. Ponto que é sinal dessa passagem. Isso acontecia na tradição dos povos, com os chamados ritos de iniciação. Ritos que eram como um carimbo que se colocava, uma marca, uma cicatriz que testemunhava que o corpo estava habitado por um sujeito.

Qual era o agente da separação no tempo dos ritos? Era o ideal; pois o pai podia ser deixado pelo filho e o filho conservava dentro de si mesmo o ideal paterno, a lei paterna, a lei simbólica. Assim funcionava a transmissão nas diversas culturas humanas.

Os ritos de iniciação que existiam na tradição dos diversos povos guardavam três características fundamentais que se articulavam. Primeira - havia sempre a marca sobre o corpo, as mutilações físicas, mais ou menos destacáveis. Como a conhecida cerimônia da circuncisão ou as escaras ou marcas sobre a pele como era realizado entre aborígines da África, da Polinésia etc. Segunda – nos ritos havia a presença constante do segredo, pois se tratava de cerimônias esotéricas em que não havia nada a ser aprendido. Calava-se diante do que se via ou não se podia dizer tudo, pois na iniciação o que estava em jogo era um ato social e não se tratava de uma educação, termo ou noção que tem conteúdo moderno e racional. Terceira – nos ritos de iniciação considerava-se sempre a estrutura de autoridade, que era única e sancionava a passagem dos indivíduos de uma etapa a outra da vida, para uma situação que significava a vida social, com as atribuições que isso podia representar.7

Havia um ideal que produzia significado. Hoje, na sociedade globalizada, o ideal ou os ideais não estão mais em moda. Falamos em queda dos ideais: I < a. Ou seja, há uma supremacia dos objetos sobre os ideais.

5 – Advento de um gozo irruptivo

Mas ao advir da puberdade o sujeito se encontra diante de um gozo que lhe é ao mesmo tempo absolutamente íntimo e ao mesmo tempo estranho: há uma disjunção daquilo que Freud nomeava corrente terna – o amor, da corrente sensual — o sexual. Essa nova modalidade o púbere é, para o sujeito, por vezes dolorosa ou mesmo ruidosa. O púbere não é da ordem de uma escolha, ele vem para o sujeito como uma irrupção. O sujeito disporá de algo que antes não possuía: mas não sabe o que fazer com esse algo novo. Há a irrupção de um real.8

Podemos pensar que na adolescência o sujeito está bem próximo e permeável à problemática do gozo.Trata-se do momento onde a tarefa não é nada fácil: pode-se escolher uma modalidade de satisfação que encontra prazer no que dá desprazer ou se inventar um saber oportuno como saída ao desligamento dos pais.

Um dado clínico importante: pode-se ler porque a anorexia é uma patologia eletiva da adolescência, essa é um momento significativo para a separação do sujeito do Outro. O Não! da anoréxica indica uma tentativa para esse sujeito de realizar a separação. Separar-se em relação à demanda do Outro, tarefa essencial da adolescência, mas a anorexia revela uma separação patológica, não dialetizável, absoluta marcada por um índice de fatalidade: pode levar à morte.9

6 – Ainda sobre o gozo

Dissemos antes da dificuldade do encontro com algo novo, de um gozo inesperado que é esse real encontrado com o advento da puberdade. Trata-se de uma coisa de que não se conhecia, que não fora ainda encontrada. Lacan nomeará esse encontro contingencial, inesperado de tikê. Algo que o sujeito não organizou antes por sua fantasia e seu significante próprio: $. O real como a não-relação sexual é isso para o qual o sujeito nesse momento da vida é convocado a responder. E ele o responderá a partir do que pode recorrer de seu acervo anterior. Nesse momento ele terá de produzir respostas.

E como as produzirá? Todas as respostas são tentativas de fazer aparecer uma separação do Outro. As respostas são sempre defesas diante do real. E se falamos do acervo do que se pode valer o sujeito, esse acervo é aquele da fantasia construída na infância. Quando essa fantasia confrontada com o real do sexo não opera de forma correta, ocorrendo falhas vamos verificar as chamadas passagens ao ato, respostas clássicas à falha da fantasia. Inscrevem-se nessas respostas, as delinqüências juvenis, as toxicomanias e também as anorexias/bulimias, a obesidade – chamadas então patologias do ato.

Sujeitos postados numa posição de atuar, situações onde se dá uma aposta do sujeito sem o Outro, ou, onde uma subjetividade está em suspensão. Essas impulsões podem ser verificadas nas distintas estruturas clínicas: neuroses, perversões ou psicoses.

7 – Como se apresentam essas patologias do ato?

O que se pode observar nesses pacientes é presença de certa satisfação a qual não podem renunciar — "é mais forte que eu" — dizem. Não há em suas manifestações a convocação de um Outro. O mais-de-gozar se apresenta nessas patologias como um aumento de satisfação, uma satisfação desmedida, que em sua busca não representa, necessariamente, um bem para o sujeito, mas produzem, de fato, um mal.

É um gozo auto-suficiente, masturbatório, auto-erótico, ligado à produção de algo conectado diretamente ao próprio sujeito, sem circular pelo campo do Outro — é um gozo que não tem circularidade social.

Na posição de mais-de-gozar, esses sujeitos se encontram numa posição de idiotas, agarrados a esses produtos que Lacan chamou de gadgets — objetos ofertados pela mercantilização contemporânea, produtos do Discurso do Capitalista. Consumistas solitários, em adesividade ao consumo chamado de massa que se colam a esses objetos descartáveis. Cola e consumo que apagam a sua condição de sujeito. 10

Trata-se de pacientes identificados ao objeto de gozo, que não apresentam uma questão, uma pergunta, não postulam um enigma diante de suas existências. Colocam-se mais do lado das respostas. Respostas que os impedem de se dirigir a um Outro, questionar sua consistência (barrar o Outro, A/), mantendo-o consistente: A. 11

Respostas trazidas por esses pacientes como: "eu sou anoréxico", "eu sou bulímico", "eu sou obeso", etc; podem ser escutadas como se dissessem: "tudo para o Outro", restando para o sujeito "o nada". É esse "nada" que deve ser mobilizado no tratamento analítico.12

Podemos recorrer à noção de evidência para falarmos em anorexia. Temos uma evidência obscena, pois o corpo magro da anoréxica aponta para uma clínica do olhar. Corpo como lugar evidente onde se manifesta uma alteração. Evidência que se mostra, paradoxalmente como adequada ao ideal (social) do cânone estético contemporâneo: o corpo magérrimo das manequins. 13 Voltaremos a esse tema da evidência.

Na obesidade o corpo não produz fala, o corpo sufoca. É o "demasiado cheio" do corpo: uma aparente disjunção: sujeito/corpo.

8 – Obesidade generalizada

A literatura científica confirma a atual difusão epidêmica da obesidade: embora a prevalência de seu surgimento na infância seja verificada, principalmente nos países industrialmente mais avançados.

Na civilização contemporânea observa-se o incremento progressivo do impulso ao consumo que reduz o corpo a um mero receptáculo de objetos.

Frente a um Outro que sufoca, a Obesidade indica uma passividade do sujeito que não está em condições de promover nenhuma forma de desmame dessa oferta ilimitada e asfixiante.

Todos estamos disponíveis para o consumo, mas há setores da população que são mais sensíveis a ele. A exposição das crianças ou dos adolescentes ao risco da obesidade é encorajada pelo discurso social. Como nos diz RECALCATI 14, o discurso social atual sustenta a necessidade de uma saturação do vazio ou, mais exatamente a saturação do vazio é vista como modalidade de supressão da falta e do desejo. A obesidade, como patologia do ato, é um fenômeno psicopatológico que talvez, mais do que todos, ilustra os efeitos devastadores dessa saturação. E isso faz com que o obeso ao identificar literalmente o vazio com o vazio do estômago, cometa um erro vulgar: vê-se reduzido a uma máquina de consumo de gozo.

9 – O tema da evidência

De forma similar ao que se observa na A&B na Obesidade o corpo se mostra inscrito no registro da evidência: o que faz destacar uma clínica do olhar. Mas, paradoxalmente, essa pujança escópica, não instaura, necessariamente o desejo do Outro. Pelo contrário não há apelo a esse desejo, aqui o mostrar-se, o exibir-se nem sempre é para dar prazer, mas para roubar o olhar do Outro, o que lhe causa angústia.

Na Obesidade a evidência causa, muitas vezes, impacto por seu caráter obsceno, pois escancara algo de uma deformação, feiúra e pode causar rejeição.

10- Um corpo sem fala

Prosseguindo as aproximações e distinções entre A&B e Obesidade diremos que a recusa anoréxica se inscreve como recusa do sujeito em se permitir entrar no campo do desejo. Assim, a anoréxica, por exemplo, não fala e não abre a boca para comer, ao passo que o corpo na obesidade não produz fala porque é "demasiado cheio" do gozo que o invade. Na obesidade é como se a fala não incidisse sobre o corpo: percebe-se, muitas vezes, uma estranheza do sujeito em relação a seu próprio corpo, demonstrada, por exemplo nas dificuldades que o sujeito tem para alcançar algumas partes do corpo.

RECALCATI nos diz que a obesidade oferece uma demonstração clínica de que o sujeito não é um corpo, mas tem um corpo, como se vivesse o próprio corpo como o corpo de um outro, como um estranho, como uma massa externa.

11 – Faces de uma mesma moeda?

Para RECALCATI a difusão epidêmica da anorexia e da obesidade revela duas faces da moeda do mal-estar contemporâneo: de um lado a obesidade generalizada que marca o empuxo ao preenchimento do vazio e o assassinato da falta (em si próprio). De outro lado a anorexização do sujeito como única manobra possível para realizar a separação do Outro, tentando de uma forma extremada operar sua castração (instaurar a falta no outro): realizar a castração do outro engulidor do mercado.

12 – Quanto à diferença sexual

A anorexia parece, muitas vezes remeter ao feminino, pois a fantasia feminina se centra no ser e não no ter o falo — e esse deve ser um indicador porque há mais mulheres anoréxicas que rapazes anórexicos. Pode-se notar que a fantasia feminina é uma defesa do próprio ser submetido à vontade do outro.

Por outro lado, observa-se que a fantasia que orienta o obeso parece se aproximar mais da lógica fálica viril de apropriação de objeto. Assim seria mais uma fantasia de possessão, de impulso ao ter, que segue em direção a uma convergência entre Demanda e desejo, ou seja, gozar do outro como objeto fetichizado. 15

13 - Como tratar esses sujeitos? O que nos indica a psicanálise?

Com esses pacientes temos de pensar o tratamento em tempos distintos. Não tempos cronológicos, mas tempos lógicos.

Tempo Lógico I - tempo necessário para se construir um descongelamento da situação antes apresentada: esse é um tempo difícil. Temos os pacientes agarrados às saídas que apresentam. Muitas vezes, diante da gravidade dos casos, se faz necessário uma intervenção mais determinada: uma internação para a contenção do gozo, e também medicações associadas.

Temos muitas vezes de lançarmos mão de dispositivos clínicos essenciais: a internação e medicação (intervenção de mestria) que funcionam como um primeiro vetor de tratamento. Nesse primeiro tempo lógico de trabalho, o fundamental é: conter o gozo e depois permitir um certo jogo. 16 A transferência vai jogar ai um papel fundamental.

Pode ser necessário — o que muitas vezes ocorre, a convocação do trabalho em equipe: a transferência fica pluralizada e pode facilitar um descongelamento do sintoma. Podemos ter a oferta de dispositivos como o trabalho em grupo, oficinas terapêuticas, isso muitas vezes se torna viável, pois esses pacientes convocam essa possibilidade: o trabalho institucional.

Nesse momento, diremos que podemos lançar mão de um Tempo Lógico II.

Nesse Tempo Lógico II, podemos perceber, se o sujeito consente com o jogo, a possibilidade de surgirem efeitos subjetivos. De uma posição anteriormente irredutível — restrito num congelamento do sintoma — podemos chegar a uma posição subjetiva.

Em alguns casos será possível articular um Tempo Lógico III – que será, depois da retomada da subjetividade —, o aparecimento de uma demanda de análise. 17

14 – A clínica feita por muitos

O nosso desafio ético é o de inventar formas e dispositivos que proporcionem situar as questões de determinados sujeitos em suas especificidades. Então, não há um só determinado ‘modelo’ de atendimento que dê conta do tratamento. À luz da experiência clínica, temos de buscar propostas que aliem, numa perspectiva interdisciplinar, saberes que possam trabalhar essa especificidade.

Nos referenciamos aqui na chamada clínica feita por muitos que é uma experiência exitosa realizada, em Belo Horizonte, no âmbito dos Serviços que constituem a Rede de Saúde Mental, onde se pode observar uma conversação em que o psicanalista interage com outras disciplinas e discursos sem lhes obturar uma falha epistêmica. Para o sujeito que tem de inventar saídas para dar conta de seu mal-estar, nós também temos de inventar saídas clínicas e epistêmicas para sustentarmos essas suas saídas. No fundo estamos todos em busca de saídas para o mal-estar.

Quanto ao manejo com esses pacientes, lembremos: desde que o analista esteja alertado através de sua escuta, há possibilidade de vir a ser surpreendido contando com algo advindo do sujeito. Mesmo que esteja mal situado, com queixas vagas, triviais ou mal definidas. Pois, comumente, encontramos entre esses pacientes, aqueles que não querem falar ou que falam em meio-tom. É aí que veremos sobressair à sintonia fina da escuta do analista. Não é que sejam não-analisáveis, que não haja nada neles que possa ser mobilizado. Há um tempo de espera, ou melhor, de escuta precisa.18

Incômodos, embaraços, mal-estar são pequenos indícios, sinais subjetivos que nos dão pistas para seguir escutando, pois muitas vezes não temos como abordar diretamente o sujeito. Colhemos, recentemente, da observação de um colega algo que nos chamou a atenção. Dizia o colega sobre o manejo com esses pacientes: às vezes temos de olhar de través, de esguelha, olhar diretamente pode não focar o ponto que queremos. Se olharmos de lado, talvez cheguemos ao ponto. Isso nos exige paciência, prudência e invenção. Temos de inventar e contar com a invenção também advinda do sujeito, acomodado e escondido, atrás desses pacientes.19

A condição de passagem ao ato relacionada aos transtornos a que fizemos referência se articula a um apagamento da posição subjetiva, a um "eu não penso", posição de um sujeito que se mantém enquanto mudo diante da satisfação da pulsão.

O transtorno pode se produzir enquanto passagem ao ato, como impulso, pois não está associado ao sintoma dirigido a um Outro, não está associado ao desejo, pois deixa o sujeito sem lugar, ele não nos diz nada, ou quase nada, mostra-nos no ato sua curiosa satisfação muda: sujeito identificado ao objeto como dejeto, caído.

Só a escuta vai possibilitar fazermos um diagnóstico de estrutura, esclarecendo-nos de que ordem são os indícios trazidos pelo paciente. É o diagnóstico, logicamente, que vai orientar o caminho a seguir. Na neurose o sujeito se identifica com o objeto do desejo do Outro e a fantasia é construída simbolicamente para mediar sua relação com o Outro: para situar sua posição em relação ao Outro. Quanto ao psicótico, por não dispor de recursos simbólicos, por estar mais confrontado ao real, a condução do tratamento deve privilegiar a possibilidade de uma estabilização ou de uma suplência, que nesse caso pode ser de ordem distintas: suplência química, suplência pela obra etc. 20

A posição ética do psicanalista indica que devemos trabalhar, na condução do tratamento, essa posição do "eu não penso", possibilitando um giro para uma outra posição que nos permite constatar que algo do sujeito foi tocado. Essa outra posição — "eu não sou" — não estará articulada à passagem ao ato, que é muda, mas vai nos permitir perceber que, de fato, uma subjetivação ali ocorreu. 21

A transferência é a alavanca, o motor para que esse giro seja possível. Se o sujeito consente com o manejo transferencial, poderemos, na escuta, detectar indícios que apontem para instantes de perplexidade que podem levá-lo à passagem ao ato. Diremos que algo do sintoma, em sua acepção psicanalítica se instala: o paciente se dirige ao analista, a um sujeito suposto saber (SSS) a quem endereça suas questões em busca de explicação sobre o que o aflige.

Endereçar-se a um SSS é consentir com a perda de gozo. Perda de gozo impossível de ser pensada na situação em que o sujeito faz recurso ao objeto como mais gozar, como apontamos nos sintomas antes descritos. Nas condições de um atendimento psicanalítico, falar para alguém pode produzir, um certo número de efeitos, efeitos de verdade, uma mutação, remanejando o sujeito. Essa é a aposta que se faz. Se há um gozo, gozo inicial que desorganiza o sujeito, esse gozo pode ser esvaziado a partir do trabalho analítico, poderemos ter uma localização do gozo. E assim, na transferência o sujeito poderá construir sua fantasia e, se tiver fôlego e persistência, atravessá-la em busca de uma redução, de um desbastamento. 22

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Notas

(*) O presente artigo foi objeto de discussão em uma apresentação feita pelo autor na Associação Mineira de Medicina Psicossomática em 25 de agosto de 2003.

1 Zuchi, M. Algumas observações sobre a clínica da obesidade em psicanálise, Latusa 7, Rio de Janeiro,
EBP- RJ, outubro, 2002.

2 Idem, ibidem

3 A. Baldassarre, Globalizzazione contro democrazia, Laterza, Roma~Bari 2002, p. 6., apud Antonio Di Ciaccia: La ética en la era de la globalización, EOL, Buenos Aires, 2003, textos on-line: www.eol.org.ar

4 Idem, ibidem

5 O lugar da psicanálise nas Instituições in Primeiro Congresso – Associação Mundial de Psicanálise – Barcelona 1998 – Relatório das Escolas, São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, 1998, p. 260-262

6 Idem, ibidem.

7 PIMENTA FILHO, J. A. - O Adolescente na pós-modernidade, Belo Horizonte, 2003, inédito.

8 PIMENTA FILHO, J. A. - Anorexia e bulimia: patologias do ato - da holófrase à posição subjetiva, Belo Horizonte, 2003, inédito.

9 Idem, ibidem.

10 PIMENTA FILHO – As patologias do ato, Lisboa, Portugal, Site da ACF- Antena do Campo Freudiano – Portugal, : link publicações : http://jmpeneda.tripod.com./acfportugal , abril de 2003.

11 Idem, ibidem

12 Idem, ibidem

13 RECALCATI, M. – O "demasiado cheio" do corpo. Por uma clínica psicanalítica da obesidade, Latusa 7, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, outubro de 2002, 51-74.

14 Idem, ibidem.

15 RECALCATI, conf. op. cit.

16 MATTOS, S. de – A disponibilidade do analista, Agenda – Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais, 1º sem 2003, 52-59.

17 PIMENTA FILHO, J. A. – As patologias do ato, Lisboa, Portugal, Site da ACF- Antena do Campo Freudiano – Portugal, : link publicações : http://jmpeneda.tripod.com/acfportugal, abril de 2003.

18 Idem, ibidem.

19 Idem, ibidem.

20 Idem, ibidem.

21 Idem, ibidem.

22 Idem, ibidem.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
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