Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Que tempos são esses
Denise Costa Hausen

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RESUMO

O presente trabalho enfoca questões acerca do ser homem/ser mulher na contemporaneidade à luz da teoria psicanalítica. Uma breve visão filosófica sobre o conceito de tempo e sua relatividade também é abordada.

Palavras chaves: Tempo, Psicanálise, Masculino / Feminino, Homem / Mulher.

 

ABSTRACT

The present paper focuse on being a man/a woman nowadays. A philosophical aproach of time and its relativity is also discussed.

Key Words: Time, Psychoanalysis, Male/ Female

 

Sou do tempo em que os bebês nasciam da relação sexual entre um homem e uma mulher, relação que pressupunha o reconhecimento de uma diferença, relação que pressupunha o reconhecimento da castração, relação que pressupunha o reconhecimento, do ponto de vista biológico e emocional, do fato de que homens e mulheres se desejassem, se procurassem e se necessitassem, independente de quem fosse o dominante, a matriarca ou o patriarca. Sou desse tempo! Que tempo é esse? O que é mesmo o tempo?

O tempo é um atributo do homem. O tempo é percebido como o tempo que passa, o tempo se expressa do ponto de vista individual ou do ponto de vista da cultura. O tempo pára, o tempo passa, dependendo da vivência psíquica de cada um. Homens e mulheres passam com o tempo. O corpo se modifica com o tempo, a noção de tempo sofre alterações. O que fazíamos, apressados ou lentamente, pode se alterar com a passagem do tempo. São tempos de guerra, são tempos de paz.

Nessa indagação busco na história da cultura ocidental a concepção de tempo dos pensadores2. Inserida no decurso da história, a idéia de tempo passou por diversas epistemologias e formas. Alternou-se entre divisões, podendo ser concebido como absoluto ou concreto, relativo ou subjetivo, finito ou infinito, linear ou circular.

Tudo flui, dizia Heráclito de Éfeso, na Antigüidade, nada dura para sempre. É sua a frase "ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes", expressando com isso que nada no mundo permanece igual de um instante a outro. Interessar-se pelas mudanças é, em última análise, interessar-se pelo tempo.

Com Parmênides, racionalista, contemporâneo e opositor do pensamento de Heráclito, podemos dizer que nada pode surgir do nada, e que nada que existe pode se transformar em nada.

Coerentemente, acreditava na eterna temporalidade do mundo. Sua visão era de um tempo infinito e pontual, dado que sempre existe e nunca se modifica. Por ser estático, pode-se dizer que, para Parmênides, o tempo era uma ilusão.

Demócrito, criador da teoria atômica, em um amálgama de Parmênides e Heráclito, afirma ser o mundo composto de pequenas partículas eternas, infinitas, indivisíveis e diferenciadas, agrupáveis de diversos modos, a fim de formar as coisas que existem. Átomos são eternos, o tempo, também, eterno deve ser.

A concepção platônica de tempo sofre as conseqüências do seu pensamento acerca de um mundo dos sentidos em que tudo flui, nada é eterno, e o das idéias, inafiançável através dos sentidos, onde as formas são eternas e imutáveis. Para Platão, o mundo verdadeiro era o mundo das idéias. O tempo era eterno e pontual.

Aristóteles, seu discípulo, afirma, ao contrário, ser o tempo justamente isto – número de movimento com respeito a antes e a depois.

Com o início da Idade Média, reina absoluta a premissa da eternidade espiritual. Atrela-se a ela a da eternidade temporal. Dois filósofos católicos falam sobre isso. Santo Agostinho imagina Deus como o mundo das idéias eternas e perfeitas. Eternidade que leva a concepção de um tempo infinito. O que é, se questiona, o tempo?

Se ninguém me pergunta, eu sei; se quiser explicar a quem me faz esta pergunta, já não o sei. O que agora claramente transparece é que não há coisas futuras nem pretéritas, o presente possui rememorações do passado e expectativas do vindouro.

Também São Tomás de Aquino tinha Deus como a causa primordial. "Levar embora a causa é levar embora o efeito. Se não existe Deus, não haverá mundo. Como há o mundo, Deus necessariamente existe. É eterno. Eterno, portanto, é o tempo também".

No período histórico que segue à Idade Média, duas modificações dão novo rumo ao pensamento humano: a Reforma e o Renascimento. No Renascimento, há a valorização da ciência, em oposição ao divino, separando-se a fé e a razão. Cria-se uma nova maneira de interpretar o mundo e, conseqüentemente, o tempo. Descartes e Leibniz nos falam: "O primeiro crente da eternidade de Deus, acredita em sua linearidade e infinitude. Se Deus é eterno, o tempo também o é". O segundo apresenta a sua concepção relacional de tempo. É paradigmática sua afirmativa:

Todos os elementos podem assim ser ordenados ou pela relação de contemporaneidade (coexistência) ou pela de anterioridade ou posterioridade temporal (sucessão). O tempo é a ordem das coisas não contemporâneas.

Isaac Newton, seu contemporâneo, diverge radicalmente: "O tempo, absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e por sua própria natureza, flui uniformemente sem relação com nada externo".

O fluxo do tempo absoluto não é sujeito a nenhuma mudança. Já o tempo relativo ou relacional é construído baseado em eventos e em diversas relações existentes entre estes eventos. O tempo é, então, imutável, uma vez que não se relaciona com nada externo. Conclui-se, também, que as mudanças ocorrem no tempo, sem que ele interceda para que tais mudanças ocorram, ou que estas mudanças influenciem a passagem do tempo. O tempo absoluto não é considerado na particularidade de cada coisa ou mudança, mas sim relacionado a todas as coisas.

Para Immanuel Kant é impossível certificar-se de como é a realidade, uma vez que a mente humana a molda de forma a que faça sentido. O tempo seria uma dessas estruturas que compõem a estrutura da mente e que recria ou inventa a realidade. Concebe o tempo como uma forma estabelecida a priori, independentemente da experiência sensitiva. A simultaneidade dos fatos e sua sucessão estariam impossibilitadas de serem percebidas se a representação apriorística não lhe servisse como fundamento. Kant afirma que todas as coisas que formam o tempo podem sumir ou inexistir, mas o próprio tempo não pode desaparecer ou inexistir.

É com Friedrich Nietzsche que podemos ilustrar a concepção de tempo da Idade Moderna. É sua a idéia de tempo, universalmente conhecida como o Eterno Retorno,

O tempo, sim, em que o todo exerce sua força, é infinito, o desenvolvimento deste instante tem de ser uma repetição, e também o que o gerou e o que nasce dele, e assim por diante, para frente e para trás! Tudo esteve aí inúmeras vezes, na medida em que a situação global de todas as forças sempre retorna.

Postulava ser a negação dos padrões cristãos, a única forma correta de se alcançar um conhecimento verdadeiro. "Sede fiéis à Terra", assim falava Zaratustra, abdicando, Nietzsche, das explicações de caráter divino.

De acordo com a visão circular do tempo, tudo o que ocorre torna-se a repetir, formando o tempo um círculo, opondo-se à teoria da linearidade do tempo, quando este flui em um continuum em que fatos que ocorrem nunca mais tornam a ocorrer.

Albert Einstein foi o responsável por uma das grandes mudanças na história do conceito de tempo, ao lançar as bases da Teoria da Relatividade. Externa a idéia da relatividade do simultâneo: a ordem de tempo dos acontecimentos amplamente separados pela distância é arbitrária. Importante abandonar o sentido objetivo dessa simultaneidade. Se ela é subjetiva, o que se subentende é que existem vários tempos, e não somente um tempo fixo, ou, por outra, que o tempo é relativo.

O tempo, para a psicanálise, não é o tempo da cronologia. "Cada experiência possui um estilo singular de devir que não pode se reduzir ao esquema de uma progressão linear, nem uma única fórmula geral de um tempo lógico", diz Sylvie Le Poulichet (1996).

Quem detecta a passagem do tempo é quem pode ter vivido um tempo que já passou, quem pode ter vivido o luto pela perda da onipotência do tudo poder. Presente/passado. Luto pela perda da fantasia de bissexualidade, pela perda da fantasia de que se é homem e mulher. Luto pela perda da onipotência do tudo poder, castração que transcende àquela relacionada à perda anatômica, já que leva ao reconhecimento do outro, sendo a moeda de passagem do narcisismo ao edipiano, gerando, portanto, um novo momento psíquico.

Os tempos são outros, importante se pensar neste início do século, tempos da pós-modernidade, em que há o rompimento de paradigmas que, de forma organizada, davam por determinado o que era ser homem/o que era ser mulher. O novo século traz no seu bojo o enfrentamento com a perda desses critérios.

Progressivamente a mulher/mãe despoja-se de atribuições que a caracterizavam, através da terceirização de suas funções: o pediatra, que prescreve no lugar da mãe que faz o chá, a compressa, a cataplasma; da babá/enfermeira, berçário, escolinha, que cuida do bebê, ensinando-o a comer, banhar-se, falar, sentindo emoções que eram experimentadas tão somente pela mãe; a televisão, o computador, a professora, que ensina as primeiras letras, passam a ocupar o lugar de quem inicia nos filhos um saber; o motorista, o taxista, a Van, que leva e busca da escola, da festa, das atividades extra-classe, que partilha confidências e incertezas, a psicoterapeuta, que escuta, acolhe dores que antes eram acolhidas em casa mesmo. Homem/pai deixa o que lhe era dado como atributo: a autoridade/autoritarismo, o sustento econômico/dependência da mãe dos filhos, o respeito/distância, o provimento de espaços seguros e protegidos, o nome de família. A mãe, a que se sabia mãe, o pai, aquele a quem ela nomeava pai e que devia confiar nela e na sua fidelidade.

Perdidos esses paradigmas, perdidas essas premissas facilitadoras do desempenho de funções que nomeavam o feminino e o masculino, defrontam-se, homens e mulheres, com a possibilidade de se construírem, eles mesmos, na relação com o outro, defrontando-se com uma complexidade de problemas que ensejam uma multiplicidade de soluções. Em muitos momentos seguimos pensando binariamente. Mulheres que, ao chegarem do trabalho, defrontando-se com maridos ocupados nas lidas domésticas, no cuidado com os seus bebês e que, embora convictas de que a pais e mães compete o sustento da família e os cuidados com os filhos, não deixam de indagar-se sobre se é justo abandonar por tanto tempo um bebê, como também de que espécie é seu companheiro que não consegue prover sozinho o lar. Por seu lado, esse mesmo homem, que acredita na multiplicidade de papéis também se questiona acerca de que mãe é aquela envolvida que está com seu fazer profissional, ou que espécie de homem é esse que fica às voltas com fraldas e mamadeiras, com levar e buscar!

As formas de relação entre pais e filhos, nessa nova perspectiva, pode se expressar também através do trato que a justiça dá em casos da guarda e da visitação. A regulamentação tradicional se rompe quando se rompe o sistema de convivência familiar e o papel a ser desempenhado por pai e mãe. Filhos, mesmo pequenos, podem ser escutados e decidir com quem querem ficar. Podem ficar com o pai!

Impõe-se uma nova lógica, um reordenamento intelectual. São novos modos de se dizer homem, de se dizer mulher, de se dizer pai, de se dizer mãe. Mãe que se faz, que se constrói, ao contrário do que muito se teorizou, que mãe se nasce, é inato. Por ser variável, a forma de ser mãe, de ser pai, é muito mais responsável. Cada um tem sua própria forma de desempenhar papéis. É com Simone de Beauvoir, que digo "não se nasce mulher, torna-se mulher". Ou não se nasce homem, torna-se homem. O que se é, é tecido por muitos outros encontros, direcionando a uma infindável forma de ser. A lógica da diferença se faz na forma de produzi-la , afastada da lógica do antes, do que é dado como definido, reprodutível.

Ao mesmo tempo em que enseja o efêmero, a novidade, a moda, o narcisismo, o culto ao corpo, a contemporaneidade nos faz encarar uma multiplicidade de caminhos, em que a lógica anterior não tem mais espaço, em que as opções não se fazem mais frente a duas alternativas, não há mais espaço para uma escolha obrigatoriamente binária, a infinidade dos encontros leva a infindáveis formas de ser. É por isso mesmo que o pensar a si mesmo se torna tão emergente. Como será isso de que os tempos são outros? Da emergência de pensar-se a si mesmo?

A psicanálise é um saber que traz a diferença como marca. Freud fala do Complexo do Semelhante. Semelhante que não é idêntico, não é reprodutivo, pois viabiliza que, junto com seu bebê, a mãe, protagonista do Complexo do Semelhante, regrida, alucine, mas que, por ser portadora de um registro de diferença, seja também denunciadora da diferença entre ela e o outro, o seu bebê. É pelo registro do outro no seu psiquismo que pode promover, além da experiência de satisfação, a experiência de dor, fazendo da diferença a marca estruturante do psiquismo, inaugurando-o.

O masculino e o feminino nascem através de um complexo processo, que se inicia com o reconhecimento de uma diferença. A percepção da diferença vai levar meninos e meninas a buscarem significados diferentes para o enigma da diferença percebida. É a concepção da diferença anatômica entre os sexos e, sobretudo, as conseqüências psíquicas dessa diferença que nos faz retomar o conceito de monismo fálico. Chemama (1995) diz:

A fase fálica é a fase característica do ápice e do declínio do Complexo de Édipo, marcada essencialmente pela angústia de castração. Tanto na menina como no menino, essa fase sucede as fases oral e anal, em uma unificação das pulsões parciais sobre a região genital, representada pelo falo; em ambos os sexos, o que caracteriza essa fase é tê-lo ou não tê-lo.

Essa fase só conhece um único tipo de órgão genital, o masculino. A concepção do mito edípico traz no seu bojo a questão de como lidar com a diferença. Diferença percebida, que se defronta com a dificuldade de nomeação. Teorias sexuais infantis, que buscam dar conta dessa diferença.

O menino norteando seu desenvolvimento psicossexual, pela manutenção do seu primeiro objeto de escolha sexual, precisando modificar seu objeto de identificação, da mãe para o pai; a menina necessitando fazer uma alteração de rota na escolha de seu objeto de amor, da mãe para o pai, permanecendo, com seu primeiro objeto de identificação.

Freud fala do pênis, ter/não ter. Podemos pensar o reconhecimento da castração como única forma de adentrar numa maturidade que tem como marco a atribuição de uma falta, reconhecimento da diferença.

A cultura é falocêntrica não porque os homens comandem e as mulheres se submetam, mas porque o falo comanda, falo que pode estar no homem, no dinheiro, na mulher, no corpo, na maternidade, na droga, no bem de consumo, na família.

Não se trata da idéia de um inconsciente fechado em si mesmo, mas de algo que se constrói e que, portanto, é passível de se desconstruir, é reversível, garantindo o eterno retorno da diferença, sem que seja necessário renegar o princípio da identidade, numa pulverização do tudo pode.

A noção de finitude pode ser pensada como o reconhecimento do que não se pode ser, questionando a máxima de que bom é aquilo que é eterno.

Denise Costa Hausen

Notas

1 Trabalho originalmente apresentado na Jornada da Sociedade de Psicologia do RS/ "Temporalidade: a figura narcisista e a transmissão psíquica entre gerações", realizada de 03 a 05 de maio de 2001, em Porto Alegre.

2 Síntese elaborada tendo por referência Os Pensadores, editora Nova cultural Ltda, 2000.

Agradecimentos
Agradeço a colaboração de   Anna Virginia Williams e Danichi Hausen Mizoguchi,  acadêmicos de Psicologia, respectivamente, pela revisão metodológica e pela pesquisa acerca do conceito de tempo.

Referências Bibliográficas

CHEMAMA, R. (org.) (1995). Dicionário de psicanálise. Porto Alegre, Artes Médicas.

Os Pensadores. (2000). Editora Nova Cultural Ltda.

POULICHET, S.(1996). O tempo na psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
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