Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Freud e a judeidade
A vocação do exilio
Betty Fuks

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(Este texto es el capítulo "Introducción" del libro homónimo)
(Ver también la "
presentación de Marco Antonio Coutinho Jorge")

"O exílio foi, talvez, a primeira questão,
pois o exílio foi primeira palavra – o
antes-do-exílio é o antes-da-palavra."
(Edmond . Jabès)

Meu projeto inicial para tentar responder à espinhosa e recorrente questão sobre as marcas da cultura judaica na psicanálise começou a tomar corpo quando escolhi o curso de doutoramento em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ para concluir meus estudos de pós-graduação. Tal escolha prendeu-se ao fato de que o programa transdisciplinar desta escola tem como norma assegurar uma permanente troca interdisciplinar, fluente e fecunda, entre as várias expressões mais significativas do pensamento clássico e contemporâneo. Minha intuição era de que esta modalidade de ensino enriqueceria os caminhos sempre sinuosos que devemos percorrer quando o desejo nos leva a buscar palavras para falar sobre alguma coisa ainda por demais obscura e confusa.

Comecei por um caminho oblíquo, indireto, e, num primeiro momento, talvez empolgada pelo fascínio especular exercido pela leitura de vários autores que se debruçaram sobre o tema, busquei articular judaísmo e psicanálise pelo método de comparação identitária entre a cultura judaica e a descoberta freudiana. Aos poucos me vi aprisionada e consumida por uma imensa exegese que ia construindo a partir de meus próprios preconceitos e de tudo que já se disse sobre o tema. Para fugir a repetição do mesmo, foi preciso mudar radicalmente o rumo e correr o risco de ficar face à face com o desconhecido: ousar introduzir interrogações admitindo como são mais largas as fronteiras deste objeto multiforme que se chama judaísmo. Dediquei-me, então, a pensar de que forma Freud esteve próximo dele e o que pode isto ter trazido à prática clínica que inventou, onde a alteridade desfaz os jogos de espelhos para que o sujeito aproprie-se de sua própria verdade.

O esforço de conservar-me fiel à radicalidade da psicanálise, de escutar o sujeito e a cultura levou-me, por fim, àquilo que penso ter sido a única via possível de acesso à minha hipótese inicial: uma arqueologia1 da cultura do judaísmo na psicanálise só pode aparecer quando e no que esta cultura tenha sido transformada pelo próprio Freud, ao melhor estilo goethiano, segundo a máxima do poeta citada por Freud em Totem e tabu: "Aquilo que herdastes de teus pais, conquista-o, para fazê-lo teu".2 Assim pus-me a tecer sem tréguas algumas respostas contingênciais ao que, no só depois (nachtraglich), descobri ter sido o cerne de minha hipótese: o devir-judeu de Freud, aquilo que se diferencia radicalmente de sua condição de judeu, pois trata-se menos do acaso passado de seu nascimento do que do futuro daquilo que se esfoçou para moldar, como o escritor e o poeta à espera do livro e do poema, ou seja, a psicanálise enquanto prática do não-idêntico, prática da desidentificação e prática do desejo de diferença. Caso se aceitem como verdadeiras as conclusões desse trabalho, pode-se afirmar que pensar de que modo Freud exerceu sua judeidade3 - categoria que esta presente e é discutida ao longo deste livro -, arranca a psicanálise à mistificação de se lhe atribuir uma origem judaica e demonstra a contingência que levou um judeu sem Deus, como o próprio Freud se designava, a criar a psicanálise e a sustentar o seu porvir.

Todos os capítulos partem rigorosamente dos pronunciamentos de Freud sobre o judaísmo e sobre sua experiência cultural e afetiva como judeu, tanto nos livros e artigos que publicou, como em sua correspondência pessoal. E creio poder dizer que fui instigada a ingressar no estudo e na reflexão que resultaram na escrita deste texto por duas observações de Freud que envolvem significativamente a circunstância de ter sido ele judeu: a afirmação sobre a influência da absorção precoce da história bíblica em sua formação intelectual e o reconhecimento de que o fato de pertencer à minoria judaica e ter apreendido com isso a resistir no isolamento revelou-se extremamente positivo e fortalecedor em sua luta contra as resistências, internas e externas, à psicanálise. De certo modo, acabei podendo ver o vínculo entre estas duas observações de Freud, que serviram de farol para a minha escrita, a qual relê e reinterpreta uma com a ajuda da outra, repetidas vezes nos capítulos a seguir.

É comumente admitido que a psicanálise trouxe uma contribuição decisiva, ainda que tão contestada, para desenvolver o empenho crítico contra toda a forma de preconceito, bem como se reconhece que justamente a marginalidade social, cultural e pesssoalmente sentida por Freud, enquanto judeu vienense da diáspora - que viveu e produziu nas circunstâncias especiais de tempo e espaço da virada do século em Viena -, mostrou-se fundamental para a constituição da prática e da teoria analítica. Mas a experiência cultural inscrita no percurso da vida e da produção do descobridor do método psicanalítico não foi apenas uma marca histórica que ele tenha recebido passivamente. Contam muito a repercussão íntima e a resposta transformadora que facultaram-lhe resolver progressivamente a constituição da própria judeidade e traçar as estratégias de combate e tolerância às resistências à psicanálise.

No discurso da cultura da época de 1900, quando Freud escreveu a obra que considerou inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos, a categoria de judeu era um dos fantasmas da maioria em relação ao outro, o que fazia com que cada judeu acabasse por se sentir como vítima e herói do processo de modernização política que tivera início no Iluminismo e do qual a emancipação dos judeus foi um aspecto. O caminho que encontrei para colher o que depois se transformou no primeiro capítulo desse trabalho, "Estratégias singulares de resistência", foi o de pesquisar de que forma Freud recebeu a transmissão do judaísmo, que fatores de um movimento cultural e social poderiam ter incidido em sua formação, e como Freud foi particularizando, subjetivando esta herança da qual, em tempo algum, quis abrir mão. Essa vivência de judeidade corria paralela à sua experiência para atender e tratar o que é excluído, o que se guarda no recôndito da alma. A invenção de um modo próprio de exercer o judaísmo, que traduz uma novidade até mesmo para os próprios judeus, e de resistir às resistências do Ocidente ao judeu exigiu de Freud as mesmas forças que precisava mobilizar contra a resistência dos pacientes ao tratamento por ele proposto, bem como à resistência da cultura iluminista e da ciência positivista, que recusavam suas descobertas.

Uma revisão bibliográfica, no segundo capítulo, "Lendo Freud, a psicanálise e o judaísmo", foi necessária para buscar uma metodologia de trabalho que me ajudasse a permanecer fiel à letra de Freud e à minha escuta analítica. Os vícios de psicobiografar Freud, de judaizar a psicanálise e de psicanalisar o judaísmo - tão correntes na literatura psicanalítica, nos volumes dedicados à história da psicanálise e nas biografias de Freud - foram talvez a maior tentação por que passei até poder escolher ler Freud com Freud, isto é, procurar apenas ler suas letras e acatar seus silêncios. Alguns autores serviram de guia e referência para um percurso que me obrigava a repensar, a um só tempo, na mesma aventura, minha própria judeidade e meu lugar de analista, que precisa prestar-se a ser reinventado a cada escuta, a cada interrupção abrupta do tratamento, a cada final de análise, vez que a psicanálise enquanto ciência do particular exige o compromisso do analista com a criação e com a singularidade.

Entre os textos que me seguiram nesse percurso, destacam-se os trabalhos de Emmanuel Lévinas, que reúnem um extraordinário equilíbrio entre o universo do discurso da filosofia ocidental e a especificidade da ética judaica de abertura ao Outro. O pensamento desse filósofo orientou-me na leitura dos textos sobre judaísmo através dos quais busquei entender os significantes judaicos que Freud disse que o marcaram, assim como norteou de um modo geral todas as aproximações e separações que construí entre psicanálise e judaísmo. Os trabalhos do historiador Yossef Hayim Yerushalmi influenciaram de maneira decisiva o curso seguido no presente estudo. Além de ter eu me inspirado em suas contribuições sobre a singularidade da historiografia judaica, revelaram-se de grande valia para esta tese a tradução e a análise que ele faz da dedicatória, escrita em hebraico por Jakob Freud para seu filho na Bíblia de sua família - uma vez que qualquer esforço para compreender a experiência cultural judaica de Freud e os possíveis efeitos desta sobre a psicanálise não dispensa recorrer ao Livro dos livros.

Isso fez com que eu acabasse por desembocar forçosamente na relação do judeu com a escrita, o que me moveu em direção ao pensamento do filósofo Jacques Derrida, para o qual os desconfortos hebraicos seculares da repetição do exílio e do nomadismo são o próprio movimento da escrita. Toda a prática de desconstrução de textos pela leitura crítica deste filósofo foi de grande importância para a elaboração das questões aqui levantadas, especialmente quando se tratou de pensar o modo como o povo judeu produz uma memória e a função da memória no processo psicanalítico.

No retorno a Freud proposto por Jacques Lacan - que implicou percorrer criticamente não apenas os desvios que se havia impresso à teoria freudiana, mas também, e principalmente, a revisão radical do lugar do analista -, pude encontrar indicações inestimáveis para a construção deste trabalho. Os diversos apontamentos que Lacan fez em alguns de seus seminários sobre a presença de traços da tradição da leitura e da escritura hebraicas na psicanálise foram alguns dos atalhos que percorri para escutar os ecos da modalidade de interpretação dos textos sagrados dos judeus que ressoam na lógica da interpretação psicanalítica.

Quando Freud reconhece que a leitura precoce da Bíblia o marcara profundamente, decerto abre a possibilidade para que se possa pensar a interveniência de uma outra lógica, que não greco-latina, em seu pensamento. Foi dentro deste contexto e atenta ao fato de que, no Antigo Testamento, está o ponto de partida da ética, da estética, da religião e da política do povo judeu que mergulhei na construção freudiana de Moisés e o monoteísmo (1939). Neste terceiro capítulo, "O exílio e o estranho", atravessei alguns textos bíblicos nos quais a eleição do povo judeu pela estranheza destaca-se pela busca da diferença no que lhe é exterior e pela fé inabalável no Incognoscível. A precedência do nomadismo e da errância sobre a sedentarização na história do povo judeu, a valorização do estrangeiro inscrita no Livro dos livros serviram-me de guia na leitura do Moisés e o monoteísmo. Fazer do profeta maior do judaísmo um estrangeiro, um egípcio e não um hebreu, tema central do texto de 1939, está, na realidade, perfeitamente de acordo com o ethos bíblico: Abraão, o patriarca do povo judeu, a moabita Ruth, matriarca da realeza judaica, e Jacó, o que combate face a face com o Desconhecido, com o anjo de um Deus Estrangeiro, traduzem a exigência de estrangeiridade (étrangeté) e de encontro com a exterioridade dos velhos escribas hebreus. Essa exigência é também a de Freud, quando fala da impossibilidade de definir sua identidade judaica, e de outros, que lêem no judeu um dos nomes do não-idêntico. Depois de atravessar Moisés e o monoteísmo, onde Freud, valendo-se da metáfora bíblica, faz uma reflexão profunda sobre os destinos da psicanálise e as possibilidades de sua sustentação na cultura, parece legítimo pretender que este escrito manifesta a exigência freudiana de que o analista, possa tornar possível, em seu ofício impossível, o exílio necessário que cada paciente experimenta como condição do advento de sua palavra.

O texto bíblico não apenas consigna ao homem estrangeiro uma importância capital, como encerra a singularidade da estranha e assombrosa idéia de um Deus feito de nada, pura ausência: sem nome nem rosto, sem imagem nem essência. A transcendência absoluta de YHVH, designada pela palavra Kadosh - que significa ao mesmo tempo santo e separado - é absolutamente conforme à estranheza do povo judeu, assim como o tempo do homem hebreu, que é sempre o do devir, está também de acordo com um Deus que se apresenta no tempo futuro: "Eu serei o que serei" (Êxodo: 3,13-14). A concepção de Deus no judaísmo é a de uma presença que define-se pela ausência radical e absoluta. A doutrina mosaica é a expressão de um fosso radical que se abriu entre o homem e a divindade, onde a palavra se faz o fio infindável que tece a narrativa sobre o vazio que insiste entre Deus e os homens e entre o homem e o homem. Esta concepção de Deus como ausência é o ponto de partida para se compreender como se dá a formação da alteridade para os judeus. Quais são seus ecos na descoberta freudiana? Foi o que tentei escutar no quarto capítulo, "YHVH, o Estrangeiro dos estrangeiros".

O Cântico dos cânticos, o poema bíblico que encena o paradoxo de um encontro que é já em si mesmo uma separação, foi a grande metáfora cultural que escolhi para pensar o fenômeno da transferência nas análises dos pacientes e as recomendações freudianas sobre o manejo do dom para acolhê-la. O lugar que tem o amor na transferência exige a primazia da linguagem na experiência analítica, como no espaço poético de uma realização sempre por vir.

Por último, a escolha do título do quinto capítulo - "Interpretação: errância e nomadismo da letra" - busca traduzir o fato de que a leitura judaica de um texto, a psicanálise e a própria escrita participam da mesma abertura: abertura para a palavra que cada um é chamado a dizer. Na leitura judaica do texto, é o signo ausente que dá vida ao discurso. O texto hebraico, em sua forma original, não está totalmente dado, e a palavra só pode ser lida por aquele que a reconhece no contexto em que ele, leitor, se encontra situado. Um só versículo bíblico contém uma possibilidade infinita de interpretações, que passam a habitar, mesmo que contraditórias, a mesma página do Talmude. A proibição da idolatria do texto e a necessidade de ateísmo da escritura exigem de seu intérprete - o talmudista - a posição de ateu, isto é, alguém que não impeça o advento da palavra, transformando a Escritura em ídolo, em totem. A escuta do inconsciente também exige o ateísmo do analista, isto é, que ele não se submeta a nenhum saber dogmático sobre o outro para que as letras do infinito dicionário dos homens possam emergir do silêncio, transformando-se em palavra plena de sentido.

Notas

1 O termo "arqueologia" utilizado nesse trabalho inspira-se no conceito introduzido por Foucault: continuidade e descontinuidade simultâneas entre epistemes, quais sejam, estruturas inconscientes que, no campo do conhecimento, determinam os modos como os objetos são percebidos, agrupados e definidos. Cada região histórica da episteme é o lugar de uma reestruturação dirigida (mas não organizada) pelas estruturas elaboradas na época anterior, o que implica dizer que certas cenas primitivas habitam e determinam um desenvolvimento que destruirá uma homogeneidade. Cada tempo epistemológico leva em si uma alteridade, uma diferença. Cf. Michel Foucault, As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas, Lisboa, Portugalia, 1966.

2 Goethe, Fausto, parte I, cena 1, apud S. Freud, Totem y tabu, Obras Completas de Sigmund Freud, Amorrortu Editores, v.13. p. 156.

3 Os termos "judaísmo", "judaicidade" e "judeidade" são empregados neste livro segundo as definições propostas por A. Memmi: "judaísmo" recobre "o conjunto das tradições culturais e religiosas"; "judaicidade" (em francês, judaïcité) designa expressamente o grupo judeu em sua totalidade demográfica na dispersão em várias comunidades através do mundo; "judeidade" (em francês, judéité) diz respeito exclusivamente ao fato de sentir-se judeu, ao "modo como um judeu o é, subjetiva e objetivamente." Memmi forja este último termo para dizer do modo como cada qual vive seu judaísmo (Cf,Albert Memmi, O homem dominado, Lisboa, Seara Nova, 1975, p. 43-4). A judeidade deve ser entendida como algo a ser definido e sempre construido, jamais terminado, mesmo que o judaísmo enquanto religião não conte para o sujeito. Neste contexto, convém considerar a definição de Jacques Derrida sobre a a judeidade como expressão que funda um ato, uma maneira de tornar-se outro. Jacques Derrida, Mal dárchive, une impression freudienne, Paris, Galilée, 1995, p. 115.

* Tetragrama impronunciável que designa o nome de Deus invisível e irrepresentável do povo judeu

* Conjunto de produções literárias da leitura do Texto bíblico

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 14 - Diciembre 2001
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