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Agosto 20, 2001
Participantes:
José Roberto Olmos (JRO) , Maria Lucia Homem (MH), Maria Teresa Martins Ramos Lamberte (TL)
Por Acheronta:
Sara Elena Hassan (SH)SH. Para abrir o fogo: a gente se interessou pelo teu percurso. Sei que você esta trabalhando na interface entre a filosofia e a psicanálise, no Collège Internationale de Philosophie, na Franca. Desde o começo do seu percurso no Brasil, como é que você chegou lá ?
VS.: Meu interesse pela interface entre psicanálise e filosofia começou na Universidade de São Paulo. Para mim, era claro que algumas questões tradicionais da filosofia tinham sido modificadas definitivamente pela psicanálise como, por exemplo: o estatuto do sujeito na sua relação com a consciência, o problema da ação e da determinação da vontade, a estrutura do imaginário, a estrutura da racionalidade, o estatuto das negações no interior do pensamento. Acreditava que alguém que se interessa por questões desta ordem não podia negligenciar o que a psicanálise tinha a dizer. Neste contexto, a experiência intelectual de Lacan era privilegiada, já que ele foi o primeiro psicanalista a demonstrar a relevância filosófica da conceitografia analítica e a não ter medo de recontextualiza-la no interior da história das idéias..
O primeiro problema que trabalhei foi a relação entre Lacan e Hegel que, como vocês sabem, é uma relação a três, já que é sempre mediada por Kojève. Tive sorte de poder contar com alguém como o Paulo Arantes, que muito me ajudou na época. Minha idéia veio através de um livro do Zizek, O mais sublime dos histéricos. A tese do livro é simples: se quisermos encontrar a verdadeira dimensão de diálogo entre Lacan e Hegel devemos procurá-la para além da incidência dos filosofemas hegelianos no discurso lacaniano (o mestre, o escravo, o desejo puro, o reconhecimento intersubjetivo, o conceito como tempo da coisa). A verdadeira questão se coloca na relação entre lógica dialética e racionalidade da praxis analítica. Este é, por sinal, o tema do curso que estou dando este ano no Collège International: mostrar como a lógica da praxis analítica é de natureza dialética, à condição de precisarmos que se trata aqui de uma dialética negativa muito próxima de certos esquemas lógicos que podemos derivar, por exemplo, de Adorno.
Da relação entre Lacan e Hegel eu acabei indo trabalhar o estatuto do conceito de sujeito neste período do Lacan que vai de 1932 até o texto Subversão do sujeito. Este foi o tema do meu mestrado com o Bento Prado. Entender o que aconteceu com a categoria de sujeito e com os modos de subjetivação na trajetória lacaniana após Subversào do sujeito é o tema que trabalho na minha tese de doutorado, com o Alain Badiou. Eu retorno ao problema da racionalidade da psicanálise através da comparação com a dialética e tento mostrar como esta comparação nos ajuda a decifrar o problema do sujeito, dos modos travessia do fantasma e da compreensão do estatuto da ética e da estética nas últimas elaborações de Lacan.
Clínica, estética, política
MH: Quer dizer, sua trajetória não partiu da clínica.
VS: Não, meu interesse primeiro foi a metapsicologia. O que não creio que chega a ser um problema em se tratando de Lacan. Verdade seja dita, a já propalada ausência de casos clínicos em Lacan não é circunstancial mas responde a uma característica própria da experiência lacaniana. Ao contrário de Freud, que utilizava claramente a clínica como espaço para a construção da metapsicologia, ao ponto de negociar claramente os impasses de certos conceitos metapsicológicos a partir da constatação de seu fracasso clínico, em Lacan, o processo de colocar sua clínica como o espaço detalhado de desenvolvimento da metapsicologia não é um eixo central. Ele dá a impressão de muitas vezes pensar como um filósofo. Sei que para certos psicanalistas isso pode ser meio uma ofensa mas, em vários momentos, Lacan parece procurar deduzir a experiência a partir da reelaboração de conceitos. Uma reelaboração apoiada e induzida, é claro, pela sua experiência clínica . Por exemplo, a impossibilidade do desejo do analista ser um desejo puro. Se analisarmos bem, veremos que a primeira vez que Lacan desenvolve este ponto é através de uma crítica perspicaz ao imperativo categórico kantiano, no Seminário VII. Considerações desta ordem, para Freud, seriam diretamente expostas através de casos clínicos.
Peguemos outro exemplo: a maneira como Lacan recontextualiza o conceito de repetição em psicanálise. Ele cria um quadro comparativo onde o encaminhamento freudiano é inserido na história das idéias. Ele primeiro estabelece a distinção entre a repetição em Freud e a reminiscência platónica. Isto a fim de mostra como ela está mais próxima da repetição em Kierkegaard, o que o permite analisar o estatuto da repetição em Kierkegaard.
SH: Aproveitando esta colocação, queria voltar a colocar outra: Como é que você diz que "Lacan não tem casos clínicos"? .Em que sentido não tem? Na realidade, ele tem. A tese dele, o "caso Aimée", outras apresentação de Mr. Primeau, obviamente que não é o eixo da produção dele......
VS: Creio que há algumas balizas a serem colocadas aí. No caso de Aimée, simplesmente não houve tratamento, não há a história da sua cura ou do fracasso da sua cura. Há um diagnóstico: paranoia de auto-punição e uma interpretação do acting out paranóico (a tentativa de assassinato de Huguette Duflos). Mas, como bem nos demonstrou o livro de Jean Allouch sobre o caso Aimée, dificilmente podemos falar aí de um tratamento. De qualquer forma, o caso Aimée é ainda um relato de psiquiatra influenciado pela fenomenologia de Jasper, pela psicologia concreta de Politzer (este sim a referência maior da tese) e muito crítico em relação à concepção freudiana do eu.
Existe um fragmento de caso de neurose obsessiva na "Direção do tratamento" e outro no seminário sobre a Angústia. Sobre as apresentações de casos , o que eu insisto é na ausência de um trabalho de sistematização , de construção de casos clínicos como em Freud, Winnicot, Klein, Kris etc. Em hipótese alguma estou falando que Lacan negligencia a clínica, basta ver a maneira brilhante com que ele interpreta um caso de Lucy Tower no seminário sobre a Angústia, ou a famoso caso da Ella Sharpe no seminário sobre O desejo e sua interpretação. Mas eu digo apenas que ele pensa de maneira diferente da habitual a relação entre metapsicologia e clínica, e creio que deveríamos estar mais atentos a este ponto.
SH: a questão em Lacan é que há um outro tratamento da clínica. Na verdade, ele recoloca a clínica através do problema da formação do analista. é lá principalmente que o problema da clínica aparece.
VS: O que não deixa de ser uma estratégia cheia de consequências. A partir do momento em que você anula a especificadade da análise didática, é verdade que o problema da reflexão sobre a clínica pode tomar uma certa autonomia em relação à construção de casos. Mas valeria a pena perguntarmos sobre as consequências deste procedimento.
MH: Hoje fala-se muito do estatuto do recurso de Lacan a estética.
VS: Esta é uma questão realmente séria na qual podemos ver grandes diferenças de encaminhamento entre Freud e Lacan. Eu particularmente acho que o recurso psicanalítico a estética foi, na maioria dos casos, infeliz. Esta é uma boa crítica feita pelo Derrida e também por Adorno. A psicanálise acabou servindo como chave hermenêutica de interpretação de produções estéticas. O caso de Freud é o mais evidente. Vamos pegar, por exemplo, Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci. Não há nada sobre a articulação interna de uma obra em relação à outra, ou seja, não há a composição da cadeia de significantes feita pelo conjunto das obras de Leonardo. Freud não leva em conta nenhum tipo de análise da forma a partir da racionalidade interna do fenômeno pictórico. Há apenas uma análise de conteúdo através da reconstrução de uma psicobiografia baseada na determinação da cena primitiva. O que não podia ser diferente, já que Freud faz uma "clínica da estética", ou seja, ele utiliza a mesma metodologia para a clínica e para a análise de produções estéticas. Não há consideração metodológica da diferença de material e não há consideração sobre a resistências próprias do material estético aos esquemas interpretativos analíticos. Não creio que esta seja uma boa estratégia. O resultado só pode ser hermenêutica de materiais, como dizia Adorno. O ponto fundamental aqui é que, em Freud, a articulação entre estética e pulsional serve para produzir uma visibilidade i ntegral das obras. Há um belo livro de Rancière (L'inconscient esthétique, Galilée: Paris, 2001) que trabalha muito bem esta questão..
O caso de Lacan é mais complicado e creio que mais interessante. Creio que Lacan nos abre as portas para tentarmos uma operação contrária, ou seja, repensar os modos de subjetivação disponíveis à clínica através da estética. Basta vermos, por exemplo, a maneira como ele desenvolve uma nova conceitografia clínica ( baseada na noção de sinthome) através de uma meditação sobre a estilística de Joyce. Mas não digo que ele faça isto sempre. Se pegarmos o seminário sobre A carta roubada ele parece mais interessado em utilizar o conto como ilustração (o termo, por sinal, é utilizado por Lacan) da distinçào entre Imaginário e Simbólico, assim que da função transcendental do Falo através de uma interpretação do conteúdo do conto que não leva em conta uma análise necessária da forma estilística e dos processos internos de produção da obra. Neste ponto nào posso fazer nada mais do que reenviar ao bom artigo de Derrida sobre este texto: Le facteur de vérité. Outros textos, como a análise de Hamlet no Seminário VI, de O balcão, de Genet, no Seminário V, de O despertar da primavera, de Wedekind seguem esta lógica. Badiou tem uma frase muito ilustrativa neste sentido. Segundo ele: "A relação entre psicanálise e arte sempre foi um serviço servido à psicanálise. Um servição gratuito da arte".
Mas entendo que, em Lacan, há um outro regime de recurso psicanalítico à arte. Ele pode ser encontrado em Lituraterre, nas análises dos Seminários Xi e XIII sobre a visibilidade da imagem estética e nas análises dos Seminário VII e XIV sobre a sublimação. Aqui não se trata mais de modos de ilustração e de legitimação da conceitografia analítica. Há uma verdadeira reflexão estética, isto na medida em que Lacan questiona a "origem radical da arte" (a expressão é dele), ou seja o estatuto do objeto artístico em um contexto histórico que é o nosso. Isto o permite desenvolver um regime estético da arte onde conceitos como simulacro, real, resistência do material, crítica à representação, temporalidade e opacidade desempenham um papel fundamental. Vocês podem ver a aplicação deste regime em trabalhos de críticos de arte como Hal Foster, Rosalind Krauss e Georges Didi-Huberman.
MH: Mas você veria algum problema específico na inexistência de diferença de método entre clínica e análise de obras literárias, pintura etc.
VPS: Na verdade, eu acho que deveríamos tentar inverter a subordinação. Alguns psicanalistas já tentam isto ao operarem um recurso ao conceito de maîtrise de soi de Foucault e pensar o fim de análise através através de uma certa estilística da existência. Ao invés de uma "clínica da estética", há um movimento inverso de 'estetização da clínica'.
Poderíamos propor processos semelhantes em outras interfaces da psicanálise como, por exemplo, a política. Como Freud pensa a política, a autoridade e a relação com o Estado? Sempre através da transposição da lógica própria à estrutura familiar para a esfera do social. O resultado é necessariamente uma espécie de edipianização da política e a necessidade de imaginar a origem do vínculo social através do mito da horda primitiva. Talvez a política seja um campo produtor de verdade, e não um campo à espera de procedimentos exteriores de interpretação.
JRO: Justamente, ai não houve uma deformação quando Lacan pensou a noção de discurso e do agenciamento entre as metas que compõem os discursos produzindo determinados efeitos de cálculo? Isto de tal maneira que dependendo do lugar onde eles se encontram você tem uma produção de um certo laço social. Parece-me que você tem uma alteração significativa de uma concepção que estaria fundada numa estrutura edípica como matricial para uma concepção que você tem uma certa condição de produção de discursos
VS: Você tem razão. O estabelecimento de cinco matrizes diferentes de discurso (a histérica, o universitário-obsessivo, o mestre, o analista e o capitalista) dá a psicanálise um aparato mais articulado de análise do vínculo social. Mas, para mim, há um fato mais interessante neste encaminhamento lacaniano. Ao pensar o fim de análise como tipo de discurso, Lacan coloca a necessidade do estabelecimento de um novo vínculo social como condição para a cura. Creio que este é um passo que nenhum outro psicanalista ousou dar, e nào é por acaso que a questão institucional no lacanismo é um ponto tão sensível. também não é por acaso que o fim de análise, em Lacan, é simétrico ao ato de transformar-se em analista, ou seja, institucionalizar sua posição de sujeito. No meu ponto de vista, através desta estratégia, Lacan acaba aproximando-se de certas considerações da Escola de Frankfurt. A mesma Escola de Frankfurt que, ao pensar a teoria das pulsões como base para uma teoria social renovada, não deixou de estabelecer a necessidade de um novo vínculo social como condição para uma clínica da subjetividade. Talvez o grande mérito de Slavoj Zizek seja o de trabalhar exatamente estas questões. .
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Em direção ao real do corpo
SH.: Eu teria uma pergunta a fazer a respeito do problema do corpo em Lacan, sugerida por una colega de Bs.As .,Norma Ferrari. Como você compreende as várias elaborações da questão do corpo na metapsicologia lacaniana?
VS: Esta é uma questão interessante porque normalmente os comentários sobre a elaboração lacaniana do problema da corporalidade (principalmente aqueles vindos da filosofia) tendem a privilegiar o que poderíamos chamar de corpo especular. Este corpo especular aparece através das reflexões sobre a constituição da imagem do corpo a partir do estádio do espelho. Vocês conhecem bem esta história, a imagem especular do corpo próprio produz o eu como instância de auto-referência e aliena o sujeito em uma construção imaginária que impede toda e qualquer experiência de não-identidade e de descentramento. Como em boa parte da trasdição filosófica de Santo Agostinho, o corpo é lugar de alienação. No fundo, aqui Lacan está discutindo principalmente com o Merleau-Ponty da Fenomenologia da Percepção. O mesmo Merleau-Ponty que via o esquema corporal como perspectiva transcendente de apreensão do mundo e que dizia que ser corpo é estar atado a um certo mundo. O que Lacan faz é admitir este encaminhamento entre corporeidade e capacidade cognitiva, mas isto a fim de acrescentar o tema do narcisismo como chave para a compreensão da constituição imagem do corpo como perspectiva transcendente de apreensão do mundo.
Quando Lacan, já na década de sessenta, fala que o corpo é o lugar do Outro onde se inscreve a marca dos significantes, não creio que há uma grande modificação de perspectiva. Há na verdade um desdobramento de uma certa relação de complementaridade entre Imaginário e Simbólico, entre imagem e sistema significante. A verdadeira torsão virá mais tarde, quando Lacan trabalhar aquilo que há de real no corpo. Não é a toa que em Radiophonie, Lacan fala em dois corpos: um que se deixa inscrever na geografia determinada pelos significantes, corpo que se submete ao primado do significante fálico, e outro corpo que o sujeito perde através da sua constituição como eu. Há uma constelação semântica muito interessante que envolve este real do corpo, ou seja, aquilo do corpo que não se submete à imagem especular e ao sistema simbólico. Para designá-lo, Lacan fala de carne, de resto, de inconsistência, de opacidade às vezes de substância.
Há ainda todo um trabalho a fazer na elucidação do sentido desta constelácão semântica. Mas o que acho interessante salientar é que, ao insistir sobre o real do corpo e sobre o corpo como espaço privilegiado de acesso ao real, Lacan está nos lembrando que só podemos falar em fim de análise lá onde há uma modificação na relação do sujeito com o corpo. Ele deve atravessar uma relação fetichizada e narcísica com o corpo a fim de se reconhecer naquilo que há de irredutivelemente opaco e Unheimlich no corpo..
MH: Este real do corpo seria o corpo pulsional?
VS: Exatamente. Mas talvez seja interessante lembrar como este corpo pulsional, enquanto montagem de objetos parciais que definem-se como sendo aquilo que está fora da imagem fetichizada do corpo responde a uma questão fundamental para a filosofia francesa contemporânea. Por exemplo, uma boa parte das elaborações de Deleuze e do último Merleau-Ponty apontavam para a possibilidade uma experi6encia do corpo que não fosse experiência enquadrada pelo imaginário do corpo próprio. Era uma experiência que ocorria na dimensão do que Deleuze chamava de 'corpo sem órgãos' e que Merleau-Ponty chamada de 'carne'. Não estou falando que os dois conceitos são simétricos, mas eles apontam para problemas convergentes. O que Lacan faz é afirmar que o experiência do real do corpo que procuramos, esta experiência do reconhecimento de uma não-identidade radical no interior do si mesmo nós é dada pelo corpo pulsional; corpo que se desvela a partir do momento em que atravessamos o corpo fantasmático do narcissismo.
Desde há muito, o corpo sempre foi aquilo que há de mais estranho para o pensamento. O corpo é ao mesmo tempo muito próximo e muito distante do pensamento, já que ele tem esta reversibilidade de ser, ao mesmo tempo, sujeito e coisa irreflexiva, um objeto no meio de outras coisas. Lacan é sensível a este estranhamento fundamental entre pensamento e corpo. Sua grande intuição foi talvez ter demonstrado como o reconhecimento da irredutibilidade de tal estranhamento é uma das condição centrais para a cura analítica, já que ele é ruptura com a alienação do sujeito no imaginário e abertura à alteridade.
Eu diria que este reconhecimento do real do corpo nos permite pensarmos melhor o problema da relação sexual. De uma certa forma, o que impede a relação sexual de existir é aquilo que a sustenta como semblante, ou seja, o fantasma. Não há relação sexual sem fantasma já que sujeito vai buscar no corpo do Outro os objetos parciais que constituem a causa do seu desejo. Isto o faz instaurar um universo de identidade que é negação da alteridade. Lacan é claro neste ponto de crítica à escola inglesa a partir de Melanie Klein: não há passagem dos objetos parciais à representações globais de pessoas. O que há é transposição do caráter fantasmático de objetos parciais. Neste sentido, só pode haver um 'para além' da impossibilidade da relação sexual a partir do momento em que há uma relação com o real do corpo. Sartre tem uma passagem muito interessante neste sentido, Em um certo momento do Ser e o Nada, ele fala deste desgaste do uso do corpo do outro, desta impressão de estranhamento que aparece em um 'para-além' da intimidade, quando, depois de termos vários relações sexuais com a mesma pessoa, vemos o corpo do outro não mais como corpo fetichizado, mas como gosto estranho, como carne que se recusa a submeter-se aos nossos fantasmas. Há algo de presença do real do corpo nesta descrição fenomenológica.
Reconhecimento e negação
MH: Mas quais são exatamente as questões que você está trabalhando hoje? Como você pensa este problema da relação entre psicanálise e dialética?
V: Digamos que o meu interesse fundamental não é apenas uma questão interna à história das idéias, embora não há como ignorar um certo encaminhamento historiográfico. Há um desdobramento da tradição dialética que encotra suas raízes no pensamento hegéliano e atinge a psicanálise através da experiência lacaniana. Não se trata de perguntar se Lacan era ou não hegeliano, até porque a resposta já foi inúmeras vezes repetidas, ou seja, "não". Mas a modernidade nos mostrou que há várias formas de não ser hegeliano e uma delas consiste em tentar superar os impasses postos pela conceitografia hegeliana. Trata-se de aceitar o daignóstico hegéliano tentando resolver os problemas engendrados pela estrutura representacional da razão moderna.
Isto nos coloca diante da seguinte alternativa: a praxis e a metapsicologia analítica se movem no interior do horizonte da dialética hegéliana, mas elas produzem uma transformação neste horizonte. Quer dizer, trata-se de não confundir partilha de diagnóstico com aceitação do sistema. Lacan teria aceita o diagnóstico hegeliano a respeito da decomposição da razão moderna, da centralidade da negação na estrutura do pensamento, das dicotomias produzidas pelo princípio de identidade, da irredutibilidade ontológica de um conceito não-substancial de sujeito e da possibilidade de pensar um regime não-fantasmático de identificação entre sujeito e objeto. Ele teria aceitado também o encaminhamento hegeliano: partir do princípio de subjetividade afim de alcançar uma experiência do real que não se submeta mais ao regime de Verdade como adequação. Uma crítica da identidade que não excluiria modalidades possíveis de reconciliação reflexiva entre idêntico e não-idêntico e de reconhecimento entre sujeito e Outro. Mas Lacan teria tomado distância dos dispositivos de totalização sistêmica presentes em Hegel. Tal estratégia pode nos permitir de demonstrar a existência de uma espécie de dialética negativa operado na antecâmara da praxis analítica.
SH: Mas o que a psicanálise ganharia com este retorno à dialética?
V: Principalmente uma maneira de repensar o problema do reconhecimento no interior da clínica. Além do que, graças à dialética nós poderíamos compreender melhor a lógica de negações em operação na clínica.
A meu ver, se há um ponto interessante no diálogo entre psicanálise e lógica, ele encontra-se principalmente na análise do estatuto das negações no pensamento. A psicanálise mostra a existência de várias modalidades distintas de negação, além da sua função na estruturação do sintoma. Uma análise detalhada sobre a estrutura lógica da Verwerfung, da Verleugnung, da Verneinung e da sublimação (que, no fundo, e uma forma de negação, mas uma negação sem recalcamento, uma negação sem resto) ainda está por ser feita. Acho que a Monique David-Ménard é a psicanalista que mais avançou neste ponto procurando, inclusive, pensar a diferença sexual a partir de modos distintos de negação. Vale a pena lembrar que a racionalidade da clínica lacaniana só se fundamenta se aceitarmos a existência de uma modalidade de negação que não é apenas modo de exclusão ou indicação de um não-ser, mas regime de presença de algo da ordem do real. Só há cura lá onde há reconhecimento da irredutibilidade de uma negação que seja modo de presença do real. Nem todas as negações podem ser apagadas ou transformadas em conteúdos rememorados. Há algo de irredutivelemente negativo no sujeito e todo o problema consiste em saber o que fazer com isto.
MH: Quando você fala em repensar o problema do reconhecimento, parece um retorno ao primeiro Lacan, o Lacan da intersubjetividade, anterior ao problema da inconsistência do Outro, do parlêtre etc.
V: Não creio que seja um retorno que ignore tais questões, só não vejo como uma clínica pode funcionar sem fazer apelo a alguma modalidade de reconhecimento. Por outro lado, nem todos os dispositivos de reconhecimento são necessariamente ligados à intersubjetividade. Quando Lacan fala da sublimação como "consciência de ser em um objeto", ele está fornecendo um reconhecimento não-intersubjetivo, um subjetivação que leva em conta aquilo que há de real no objeto.Na verdade, o abandono da tematização do problema do reconhecimento só pode produzir ume hipostase do inefável e da irreflexividade no interior da clínica. A partir do momento que a psicanálise de orientação lacaniana se absteve de tematizar os regimes de reconhecimento disponíveis ao sujeito, ela se viu diante de duas perspectivas.
A primeira consiste em transformar a clínica em uma retórica da perpetuação da falta e da incompletude. Retórica fortemente criticada por pensadores como Lyotard e deleuze. Na verdade, Lacan sempre sublinhou a necessidade de desvelar a inadequação fundamental que exisitia entre o desejo e seus objetos empíricos. De onde se segue, por exemplo, a elevação do complexo de castração à condição de dispositivo central da interpretação analítica, no lugar de um complexo de ëdipo reduzido à condição de mito. Mas tal estratégia poderia bloquear toda possibilidade de uma experiência de gozo e do Real. Como se tudo que pudéssemos esperar de uma análise fosse a prudência de uma certa distância no que concerne às ilusões imaginárias do desejo.
Lacan estava mutio consciente desta deriva, principalemente a partir dos anos 60. Isto o levou a defender a existência de uma modalidade possível de gozo e de sublimação legitimada pelo fim de análise. Bem, como ele progressivamente deixou de lado sua reflexão sobre os dispositivos de reconhecimento, o fim de análise acabou sendo compreendido como uma forma de retorno à imanência pre-reflexiva do ser (daí o aparecimento da noção de parlêtre). Uma imanência que se conjugava no particular e que só adimitia um gozo mudo (vale a pena lembrar como o gozo feminino era caracterisado exatamente pelo mutismo vindo de uma posição fora do Simbólico), monológico e que não escondia sua proximidade com a psicose.
Eu creio que o problema maior desta concepção é que ela pensa o fim de análise, mesmo sem admitir, como assentimento a algo que se coloca como experiência do real, e não como um reconhecimento reflexivo. É por isto que ela tem a tendência a descartar o conceito de sujeito e a admitir a idéia da destituição subjetiva como index privilegiado da cura analítica.
TL: E onde você vê problema nisto?
V: Há uma série de questões em aberto. Primeiro, a partir do momento em que a psicanálise descarta a reflexividade própria a um conceito de sujeito marcado pelo desejo de se fazer reconhecer, como é o caso do sujeito lacaniano, ela perde todo critério para estabelecer a verdade daquilo que se coloca como experiência do real. A não ser que voltemos, de uma maneira subterrânea, a uma noção não-problematizada de certeza subjetiva que não tem necessidade da mediação do Outro para se legitimar. Nós voltamos assim a uma pensamento do fim de análise como retorno à incomunicabilidade da certeza. Do meu lado, eu prefiro pensar que a racionalidade da praxis lacaniana é indissociável de um movimento de subjetivação que é necessariamente auto-objetivação do sujeito - o que nos mostra a impossibilidade de pensarmos uma racionalidade clínica desprovida de algum procedimento de reconhecimento.