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Capítulo V del
libro
"Psicoanálisis y Educación: Nuevos Operadores de
Lectura",
Ed. Pioneira, 1999 Sao Paulo, Brasil
Tradicionalmente acredita-se que há um vínculo direto e imediato entre a criança, o brinquedo e o brincar. Parte-se da idéia de que a criança, na história da humanidade, sempre teve brinquedos e brincou. Não havendo nada mais natural que a associação criança, brincadeira e jogos infantis.
Para a Psicanálise tais colocações são altamente questionáveis, revelando formas prévias de conceber a criança, o brinquedo e o brincar.
Anos de trabalho terapêutica e da elaboração teórica levaram à redefinição do próprio trabalho terapêutica com crianças. Assim, uma Psicanálise de crianças; vai se tornando, cada vez mais, uma psicanálise com crianças.
" Para a Psicanálise com crianças não é somente com o discurso da criança que lidamos, mas também com o discurso dos pais" (1) .
1. A CRIANÇA DAS TEORIAS X A CRIANÇA REAL
Um dos problemas mais sérios da chamada Psicanálise com crianças é resgatar a criança através da sua fala, sua palavra. Geralmente ela se encontra misturada às concepções que pais, professores e especialistas fazem dela.
A Psicanálise revela o quanto a palavra da criança pode ser encoberta, através de conteúdos transferenciais, pela fala dos adultos.
"Transferência de palavra foi o primeiro termo que Freud utilizou para falar de transferência. Em seguida o termo transformou-se em transferência de pessoas, transferência de objetos, até chegar, como vocês sabem, à transferência de sentimentos" (2).
A criança, ao longo da história da humanidade, tem sido depósito de processos transferenciais dos adultos, em termos de conteúdos e formas.
"A história ajuda-nos a compreender esse fenômeno de espelhos que intervém entre o adulto e a criança; eles refletem-se como dois espelhos colocados indefinidamente um diante do outro. A criança é o que acreditamos que ela seja, o reflexo do que queremos que ela seja. Só a história pode fazer-nos sentir até que ponto somos os criadores da "mentalidade infantil" Em parte alguma a tomada de consciência é tão difícil quanto quando se trata de nós, e o fenômeno nos escapa quase sempre quando estamos diretamente implicados na situação. Através da história e da etnografia compreendemos a pressão que fazemos pesar sobre a criança" (3).
Para a Psicanálise é fundamental que a palavra e o brincar da criança sejam resgatados em toda da sua autenticidade. Para isto é necessário que os adultos fiquem atentos à alguns esclarecimentos básicos.
O primeiro deles se refere à especificidade da noção de infantil. Geralmente a criança tem sido confundida com, uma concepção de infância ou do infantil apresentada pelos pesquisadores. Philippe Ariès revela que o infantil, enquanto faixa etária, ainda é bastante recente na história da humanidade. Ele data praticamente do século XVII para cá. Anteriormente a criança era vista como um adulto em miniatura.
O infantil, como substantivo e não adjetivo, perde o impacto de conteúdo específico, ficando reduzido à mera concepção que se tenha da infância, de um determinado autor, de uma determinada teoria, de uma determinada época.
A abordagem psicanalítica com crianças vai além da concepção cronológica, objetiva revelar o que há de específico no infantil e na criança.
Em segundo lugar, o infantil tem sido reduzido a uma mera etapa do desenvolvimento humano, com o privilegiamento sobretudo do desenvolvimento físico. Como se bastasse saber as etapas de desenvolvimento, para saber como se dá o processo de construção do infantil. Contudo, a criança é muito maior do que as etapas de desenvolvimento estabelecidas para capturá-la.
Em terceiro lugar, a Psicanálise critica a existência do processo de desenvolvimento linear e único, tido como comum a todas crianças e culturas, O corpo humano, em toda a sua complexidade, ainda não foi suficientemente simbolizado em relação aos referenciais individuais e sociais. A Psicossomática revela estes impasses. A asma, a enxaqueca, a úlcera gástrica, etc. são quadros clínicos que demonstram a complexidade das reações do corpo humano, denunciando o quanto ainda é necessário investigar.
Em quarto lugar, a sexualidade humana tem sido reduzida a um processo de desenvolvimento físico, tomado como natural e predeterminado. A Psicanálise revelou que a diferença sexual não é uma diferença meramente anatômica. Ela trouxe à tona as dificuldades do sujeito em assumir seu sexo. Para Freud a diferenciação sexual não decorre apenas de conteúdos sociais e individuais; mas, de um longo processo de elaboração. Nos Três Ensaios de 1915, Freud assinalava que haveria uma bissexualidade inicial, que se manteria ao longo do processo de constituição do sujeito, levando-o a nunca se constituir plenamente em homem ou mulher.
Lacan leva o processo às últimas conseqüências, com o conceito de sexuação ou opções de identificação sexuada. Este processo apresentaria três tempos: no primeiro há a captura da diferença sexual na família -- isto é, como a família concebe a diferença entre os sexos e o sexo apresentado pela criança; na segunda etapa, a criança aparece no discurso sexual apresentado pela família e, apenas, na terceira etapa, é que ela faz a eleição sexual propriamente dita.
Para Freud e Lacan, a eleição sexual não é um produto que já dado a partir do sexo biológico da criança, mas um processo a ser construído.
A partir desses pressupostos, a Psicanálise passou a criticar as formas prévias de conceber a criança, tecidas a partir das chamadas teorias de desenvolvimento estabelecidas pelos adultos. Isto porque os processos de erotização que ocorrem com a criança, não coincidem necessariamente com as construções teóricas. Daí, ser preciso dar a palavra à própria criança.
Em quinto lugar, quando a palavra é passada à criança há ainda a emergência de um outro tipo de preconceito. Os adultos acreditam que ela não sabe se explicar muito bem, porque lhe faltam palavras, lhe faltam argumentos. Em decorrência, eles acabam por colocar a criança no lugar daquela que não sabe, e de novo passam a tentar deduzir como ela pensa e age.
A Psicanálise enfatiza a importância de se passar a palavra à criança, para que ela nos diga quem ela é e como pensa.
Em sexto lugar, isto acabou por levar a Psicanálise a privilegiar a noção de estrutura em vez da noção de desenvolvimento. Esta opção é um marco estratégico. Isto porque não há um desenvolvimento igual ao outro, seja físico, social, emocional, etc. Os processos maturacionais de cada criança são discrepantes em relação às demais. Sua estrutura é sempre singular, seguindo os processos específicos, vinculados à história de cada sujeito.
Para a Psicanálise a noção de estrutura, possibilitará captar a criança de uma maneira mais precisa, sem transformá-la em uma peça dos jogos de encaixe das teorias.
Em suma, para a Psicanálise, não se trata de demonstrar que a teoria captou corretamente o sujeito; mas, que em todos os casos, se ultrapassa sempre o plano da teoria. As crianças não podem ser reduzidas ao enfoque teórico.
2. A CRIANÇA INTERPRETADA PELOS ADULTOS
Poderíamos pensar que, após termos esclarecido a questão dos referenciais teóricos, seria possível nos voltarmos apenas para a criança em toda a sua singularidade. Na verdade, as coisas não são tão simples assim. A criança internaliza a palavra dos adultos que convivem com ela. Ela acaba por acreditar na imagem que eles fazem dela. Assim, como os adultos costumam acreditar que a sua imagem a respeito da criança é a própria criança. Por exemplo, é bastante comum os professores confundirem as imagens que as teorias psicológicas e pedagógicas trazem, como sendo a criança. Eles acreditam que basta ter um bom conhecimento teórico para saber como a criança é, pensa e age. Há a confusão das imagens de desenvolvimento do infantil ou das teorias com as próprias crianças. "Esta criança é pré-silábica!" "Ela está na etapa das operações concretas." Eles acabam por confundir a imagem da criança universal trazida pelas teorias com a criança particular.
Um outro aspecto a ser assinalado é que eles acreditam que são os referênciais mais importantes para as ações da criança. Por exemplo, é bastante comum os professores acreditarem que as ações das crianças foram feitas para chamar a atenção deles. Ou seja, eles tomam as ações da crianças como tendo um só direcionamento, um só sentido, uma só intencionalidade: aquelas que eles atribuem.
Freud havia chamado a atenção, desde o século passado, para um modelo de atuação narcísica, onde o sujeito se coloca como o centro de todas as coisas. Os adultos desejam ser o centro de atenção da vida da criança. Como Narciso, ficam cegos e fascinados pela própria imagem, que acreditam ver nas ações das crianças.
Com isso, não é de se espantar que a criança não tenha ainda sido percebida em toda a sua singularidade, pois o que emerge em seu lugar são imagens das teorias psicológicas, médicas, etc. e/ou as imagens sociais e individuais que os adultos fazem dela.
A mesma coisa acontece com os brinquedos e o brincar da criança. Os adultos costumam atribuir a eles sentidos e significações prévias, que concebem como sendo o verdadeiro sentido e significado das brincadeiras e jogos infantis.
Para a Psicanálise, a palavra da criança precisa ser resgatada. Para que ela deixe de ser objeto dos desejos e necessidades dos adultos, para se investigar como ela pensa, sente, percebe o mundo à sua volta. Para a Psicanálise a criança, o brincar e os brinquedos são processos que precisam ser ainda investigados.
Por que estamos iniciando esta discussão através da crítica das teorias de estágios de desenvolvimento? Porque elas fundamentalmente pré-concebem como deverá ser o processo de desenvolvimento da atividade lúdica na criança. Ou seja, elas fazem o professor acreditar, e esperar, que todas as crianças, em determinadas etapas, tenham o mesmo processo de desenvolvimento.
Onde o professor deveria estar descobrindo como cada criança brinca, que tipo de brinquedos e jogos que gosta, etc., emergem em seu lugar, as respostas prévias que as diferentes teorias apresentam como sendo o brincar da criança ou as elaborações que os adultos propuseram a respeito dela.
Em decorrência, é fundamental que o professor perceba que cada criança frente ao lúdico apresenta a sua própria especificidade. Assim, embora na mesma família, dois irmãos apresentem processos de constituição parecidos, quando se dá a palavra a cada uma das crianças se constata que elas são diferentes.
Um outro aspecto a ser assinalado é que o brincar da criança não é apenas um ato espontâneo de um determinado momento. Ele traz a história de cada criança, revelando quais foram os efeitos de linguagem e da fala em cada sujeito, sob a forma de um circuito transferencial específico.
"A transferência é a atualização da realidade do inconsciente. O inconsciente, são os efeitos da fala sobre o sujeito, é a dimensão que o sujeito se determina no desenvolvimento dos efeitos da fala, em conseqüência do que o inconsciente é estruturado como urna linguagem" (4).
O processo de desenvolvimento de cada criança necessita de desencadeadores através da linguagem e da fala. Isto quer dizer que, sem a linguagem e a fala, os chamados processos de desenvolvimento não serão acionados.
O uso da atividade lúdica como uma das formas de revelar os conflitos interiores das crianças foi, sem dúvida, uma das maiores descobertas da Psicanálise. É brincando que a criança revela seus conflitos. De uma forma muito parecida como os adultos revelariam falando. No entanto, o brincar e as brincadeiras infantis não podem ser tomados como processos iguais à linguagem e à fala. Eles apresentam uma singularidade típica.
A extrema diversidade dos objetos, tanto instrumentais quanto fantasiosos, que intervém no desenvolvimento do campo do desejo humano, é impensável numa tal dialética, no momento em que se encarne em dois atores reais, a mãe e a criança. Em segundo lugar, é um fato de experiência que, mesmo na criança mais nova, vemos aparecer esses objetos que Winnicott chama de objetos transicionais porque não podemos dizer de que lado eles se situam na dialética reduzida, e encarnada, da alucinação e do objeto real.
" Todos os objetos de jogos da criança são objetos transicionais. Os brinquedos, falando propriamente, a criança não precisa que lhe sejam dados, já que os cria a partir de tudo o que lhe cai nas mãos. São objetos transicionais.
A propósito destes, não é preciso perguntar se são mais subjetivos ou mais objetivos -- eles são de outra natureza. Mesmo que o Sr. Winnicott não ultrapasse os limites chamando-os assim., nós vamos chamá-los, simplesmente, de imaginários" (5).
Para a Psicanálise, não se deve confundir os objetos concretos (brinquedos e jogos), com as suas simbolizações e imagens. Há a distinção entre a realidade psíquica da criança e a realidade concreta. Para que possamos saber como a criança pensa, o que sente, deseja, etc., é preciso que nós nos orientemos pela sua realidade psíquica, e não pela chamada realidade concreta ou por nossa realidade psíquica.
Freud e Lacan lembram que os seres humanos se orientam pela linguagem e pela fala, sem perceber os efeitos que elas acarretam. Sem se dar conta de que elas tecem a realidade psíquica dos sujeitos. A realidade psíquica da criança não pode ser reduzida à realidade psíquica dos seus pais ou professores. Quando o professor ou os pais tentam capturá-la a partir das suas próprias representações, o que fazem é perdê-la irremediavelmente, para uma máscara que eles compuseram acreditando que fosse ela.
3. A CRIANÇA NA CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA FREUDIANA
As crianças não chegam isentas à escola. Elas trazem no pensamento, nas emoções ou na forma de brincar a maneira como foram olhadas e percebidas pelos outros.
Ao brincar, a criança não se situa apenas no momento presente; mas, também, no seu passado e no seu futuro. O brincar, como atividade terapêutica, possibilita que a criança supere a situação traumática. É simbolizando, falando e representando os conteúdos que a perturbaram que ela pode nomear e conhecer melhor as situações, idéias, pessoas e coisas.
O brinquedo -- da mesma forma que o brincar -- não é um objeto neutro, pois condensa a história da criança com outros objetos.
Para Freud o brinquedo e o brincar são os melhores representantes psíquicos dos processos interiores da criança. Eles estão em significação, na busca do sentido dos atos da criança,
A transferência revela o tipo de laço social que se teceu no ambiente familiar da criança. Através dela acredita-se que ela reviveria os principais conteúdos emocionais que a marcaram. Na verdade, esta forma de conceber a transferência capturaria apenas uma parte do circuito transferencial: a da linha dos afetos; excluindo outra -- a da transferência enquanto um circuito do saber.
Pode-se dividir a história da transferência com crianças em dois grandes períodos estruturais: a transferência concebida enquanto conteúdo afetivo e a transferência enquanto uma forma de saber.
No primeiro caso, a transferência, na Psicanálise Clínica com Crianças, tem sido concebida tradicionalmente como se fosse uma relação dual, onde as emoções entre os sujeitos seriam recíprocas.
A transferência revela o ponto onde o circuito emocional se paralisa.
"Se a transferência é apenas repetição, ela será apenas repetição, da mesma rata. Se a transferência pretende, através da repetição restituir a continuidade de uma história, ela só o fará fazendo ressurgir uma relação" (6).
A transferência, como Freud a concebeu inicialmente revela a existência de formas repetitivas de atuação dos sujeitos a determinados objetos, pessoas e conteúdos. Há a constante repetição do repetido. Por exemplo, a criança que atira pela vigésima vez no chão o mesmo objeto, chamado a professora: "Oi, Tia (e joga o objeto no chão)".
Muitos psicanalistas, assim como os professores entendem esta situação como uma ação feita propositalmente para irritá-los. Como se a criança fizesse aquilo para chamar a sua atenção.
Segundo a perspectiva freudiana clássica é uma relação contratransferencial, onde o professor só aparentemente se dá conta do que acontece com o aluno. Ele transfere o seu conteúdo para a criança, tomando a sua forma de ver as coisas, como sendo a forma de ver da criança. Para Freud o professor confundiu o seu eu, com o eu da criança.
Por trás das emoções como formas repetitivas de atuação nos brinquedos e jogos da criança, encontram-se outros conteúdos além daqueles que o adulto supõe.
Freud chamava este processo de Mais Além do Princípio do Prazer, ao assinalar que a criança não repete apenas ações prazerosas, mas as complicadas e difíceis.
Freud acabou por se dar conta que os símbolos, as imagens, os objetos não são neutros; mas se apresentam sempre erotizados. Esta erotização instaura os circuitos libidinais de repetição. Sejam as repetições prazerosas ou aquelas desprazerosas.
Para Freud foi se tornando cada vez mais importante perceber qual era o sentido, o significado destes circuitos repetitivos. É por tudo isto que os psicanalistas se voltaram inicialmente para a busca do significado das ações, dos sintomas da criança.
A sua realidade psíquica era diferente da realidade do adulto, tornando-se necessário investigar como ela se apresentava, quais sentidos e significações trazia.
Um dos conceitos fundamentais da Psicanálise, na captura da realidade psíquica da criança, é o Complexo de Édipo ou Fantasma. Ele revela como a criança se constitui, quais foram sentidos foram dados às suas ações.
Por fantasma, tradicionalmente, a Psicanálise entende:
"Um roteiro imaginário em que o sujeito está presente, e que figura, de maneira mais ou menos deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo inconsciente. O fantasma se constitui a partir das coisas vistas e ouvidas" (7).
O fantasma da criança é produto do que ela viu, viveu e ouviu em suas relações com os adultos. Ela ocupa, geralmente, o lugar do objeto, sendo depósito para o desejo dos adultos.
Dentro de uma concepção mais direcionada para a transferência imaginária, certos psicanalistas (René Spitz, Margaret Malher e Maud Mannoni, por exemplo) passaram a fazer uma leitura fantasmática referida apenas às relações entre a mãe e a criança. Acreditava-se na importância de uma boa relação materna para que a criança não caísse sob o impacto da neurose, da psicose ou da perversão. A boa mãe seria aquela que propiciasse à criança um ambiente afetivo bem estruturado, reconhecendo-a como sujeito, retirando-a da posição de objeto, isto é, de depósito dos sonhos, das expectativas e desejo dos adultos.
A ludoterapia passou a ser o meio pelo qual as relações ruins da criança seriam recriadas, "consertadas". Através dos jogos e brincadeiras infantis, a criança poderia simbolizar seus problemas, resolvendo-os em um outro contexto.
O conceito de transferência passou a se direcionar para os aspectos afetivos (imaginários). A relação mãe e filho foi tomada como uma relação de amor necessária, para que as crianças pudessem crescer saudáveis.
O chamado fenômeno do afeto ou emoções adquire no contexto escolar importância fundamental. Pois, é no chamado plano do imaginário, isto é, no âmbito das relações duais, que as emoções desempenham papel essencial. Freud vai dizer que as emoções são recíprocas. Ao imputar ao outro sentimentos que são nossos, nós também os fazemos reagir perante as nossas emoções.
Para Melanie Klein não se tratava apenas de resgatar a relação de amor que a criança não teve. Há outras emoções em jogo: ódio, inveja, agressividade, sexualidade, etc. Constatou-se, então, que a criança havia perdido a inocência. As suas brincadeiras e jogos apresentavam conteúdos sexuais.
Através do caso Dick, Melanie Klein representa este processo, fazendo a criança simbolizar a relação familiar através do uso de três brinquedos: o trenzinho pequeno será Dick, o trenzinho maior será o papai e o túnel será a mamãe.
A autora considera que os brinquedos e jogos da criança tornam-se processos simbólicos, com sentidos e significações específicas para cada criança.
Winnicott acrescenta que além das significações e sentidos, os brinquedos são também objetos transicionais, isto é, eles se encontram no meio do caminho entre a chamada realidade concreta e a realidade psíquica da criança.
Não basta apenas saber como as imagens, os sentidos, as significações são construídas, é preciso saber como a criança constrói os objetos interiormente, como vai tecendo símbolos e imagens, ao mesmo tempo, em que é tecida pela linguagem e a fala:
"Esse jogo (o Fort-Da para Freud, isto é, a criança que brinca em fazer aparecer e desaparecer o carretel dado pela mãe para brincar) mediante o qual a criança se exercita em fazer desaparecer de sua visão, um objeto, por mais indiferente que seja enquanto a natureza, por sua vez modula essa alternância com sílabas distintivas -- esse jogo, diremos, manifesta em seus traços radicais a determinação que o animal humano recebe da ordem simbólica" (8).
É a matriz simbólica estabelecida através da linguagem e da fala que irá constituir o sujeito. Ela estabelecerá a presença e ausência dos objetos.
" É um dos traços mais fulgurantes da intuição de Freud na ordem do mundo psíquico que haja captado o valor revelador dos jogos de ocultação, que são os primeiros jogos da criança (Mais além do princípio do prazer). São estes jogos de ocultação que Freud, em uma intuição genial, apresentou aos nossos olhos, para que nas reconhecêssemos neles o momento em que o desejo se humaniza é também o momento em que a criança nasce para a linguagem" (9).
4. A CRIANÇA NA CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA LACANIANA
A abordagem lacaniana trouxe novas contribuições ao pensamento psicanalítico, a partir de um novo conceito: o de gozo.
O gozo, para Lacan, está articulado a aquilo que está além do principio do prazer. A criança não repete situações passadas apenas porque elas tem determinados sentidos e significações. Ela repete porque elas passam a se constituir em formas de gozar.
"A realidade é abordada com os aparelhos de gozo. E aparelho de gozo não há outro senão a linguagem. É assim que no ser falante o gozo é aparelhado. É o que diz Freud" (10).
A criança não repete certas ações desagradáveis apenas para chamar a atenção do professor. Ela faz porque aquilo tem um determinado sentido, porque se encontra presa em cadeias de gozo das quais não consegue sair.
Quando a criança se aproxima de um brinquedo, para brincar, já está aparelhada com formas estruturadas de pensar e de saber.
Durante muito tempo os psicanalistas acreditaram que bastava o sujeito saber o sentido e os significados das suas ações para mudar. O problema é muito maior: estamos presos às cadeias de gozo -- formas de gozar padronizadas -- das quais não conseguimos nos desvencilhar, nem saber o sentido.
Para Lacan, a linguagem e a fala não dá conta de dizer os sujeitos, as crianças, suas vidas, suas histórias, de delinear o que acontece com elas. O saber tem limites, não é um saber Integral como pensam a Pedagogia e a Psicologia.
Lacan elabora uma concepção de saber como "não-todo", Isto é, sempre irá faltar um pedaço. Ele será incompleto. Este saber do sujeito, de cada criança não pode ser reduzido, como acredita a Psicologia e a Pedagogia a um saber universal, a um saber completo e total..
Cada paciente, cada criança, cada professor terá que tecer o saber, a partir da linguagem e da fala. Um saber que tecerá a verdade do sujeito.
O saber universal não traz em seu bojo a verdade do sujeito. Ou seja, porque ele agiu de determinada forma, porque ele se encontra preso às cadeias de gozo. Assim, como a palavra, as significações e sentidos das ações das crianças elaboradas pelos adultos não dão conta de dizer o que ela pensa, sente e repete determinada ação.
A criança precisa saber porque ela age de determinada forma, porque se encontra presa a determinadas cadeias de gozo.
É devido às cadeias de gozo, e não ao sentido ou significado de um determinado jogo ou brincadeira infantil, que a criança repete. Ou seja, ela repete algo que ainda não conseguiu elaborar.
É a isto que a criança está presa, e não àquilo que o professor acha que seria o sentido e as significações de suas ações. A criança não age de determinada forma para chamar a atenção do professor. Ela age porque não está conseguindo sair deste processo, porque não consegue encontrar outra forma de gozar.
Muitos são aqueles que acreditam que a Psicanálise apresenta um saber universal -- o do mito do Édipo.
Lacan vai reformular este conceito introduzindo a noção de complexos familiares ao afirmar:
" O que define o complexo é o fato de que ele reproduz uma certa realidade do ambiente (ambiência), e o faz de uma forma dupla:
1º. Sua forma representa esta realidade no que ela tem de distinto de uma dada etapa de desenvolvimento psíquico; esta etapa especifica a sua gênese;
2º. Sua atividade repete no vivido a realidade assim fixada em toda oportunidade em que se produziria algumas experiências de objetivação superior, especificam o condicionamento do complexo" (11).
Os complexos familiares são o ambiente familiar, tecido através das palavras, imagens e símbolos que acompanham a criança em todos os lugares. Isto quer dizer que, quando a criança age, ela não o faz. ao acaso, mas apresenta as formas de gozar que aprendeu em sua família. São elas que estabelecem a gênese do processo da criança, isto é, que iniciam o seu processo de constituição de sujeito e não as chamadas etapas de desenvolvimento gerais.
Desde o começo, é necessário dizer que há uma diferença entre Freud e Lacan; o que leva Jacques Allain-Miller a dizer que "Lacan corrige, nisto, a Freud".
A indicação de Lacan é, enquanto a questão de desenvolvimento, revisar o tratamento que se dá ao imaginário pelo simbólico, cuidando de não cair na tentação (tão a miúdo presente) de abandonar o fundamento da palavra.
Enquanto as teorias chamadas de desenvolvimento, é preciso assinalar que tanto os seus impasses como as contradições que entre elas se colocam, dão mostras da insistência de algo indomável, de algo impossível de dizer, que ainda que se trate de cercá-lo através de vários métodos ou técnicas de investigação, só se consegue alcançar as suas bordas.
" Esse real, inabordável através de qualquer psicologia, é o que permite conceber os vãos esforços por constituir uma " verdadeira" teoria do desenvolvimento".. (12)
É exatamente o real da criança que as teorias de desenvolvimento não conseguem apreender. Elas não capturam o específico de cada criança em suas cadeias de gozo. Suas repetições são o produto destas cadeias, e não de etapas prefixadas do desenvolvimento humano. A Psicanálise revela as armadilhas deste empreendimento.
Toma-se como sendo da criança, construções de linguagem que foram feitas para falar dela. Confunde-se os sentidos, as significações elaborados através da linguagem como o próprio pensamento da criança.
Para Lacan é importante que nós percebamos que há na linguagem e na fala sempre algo que vaza, algo que não se atinge, a não ser aproximativamente: a própria criança a brincar. É nesta região que Lacan assinala a existência do registro do real. Algo que nós tentamos apreender, mas só identificamos através dos símbolos, das imagens, das significações e sentidos da nossa cultura.
É pela repetição dos circuitos de gozo que a criança revela a sua discordância em relação às nossas teorias de desenvolvimento. Ela revela o quanto singular é sua ação e seu brincar.
A importância da concepção psicanalítica encontra-se em que ela revela os limites dos pesquisadores a respeito das teorias sobre o brincar, o brinquedo e a criança. Ainda falta muito para nos aproximarmos de uma visão mais precisa do que são estes elos na vida da criança. É preciso que, primeiro, nós possamos nos desfazer de nossos próprios preconceitos teóricos, para capturá-la da forma mais próxima possível.
O que não quer dizer que nós tenhamos a verdadeira idéia de quem é a criança, o brincar e o brinquedo. Como revelou Lacan, esta ainda nos falta e vai faltar sempre.
Lacan assinala que a Psicologia costuma entificar o que é percebido através da linguagem. É preciso que nós percebamos que o sujeito, a criança está em outro lugar, distinto de tudo que escrevemos e falamos sobre ela.
Por que esta abordagem é importante para se lidar com a criança, os brinquedos e os jogos infantis? Porque ela revela que o adulto apresenta sempre estereótipos em relação à sua percepção da criança, dos brinquedos e jogos infantis.
5. ALÉM DO SIGNIFICADO E DAS SIGNIFICAÇÕES: O REAL DA CRIANÇA, DOS JOGOS E DAS BRINCADEIRAS INFANTIS
Costuma-se dar como naturais os conteúdos referentes às ligações entre a criança, os brinquedos, as brincadeiras e os jogos infantis.
Ao longo deste trabalho fomos revelando que estas idéias não se apresentam juntas. Elas se estruturam tanto a partir de concepções sociais quanto individuais.
É preciso que nós saiamos destas concepções preestabelecidas para realmente possamos identificar como a criança pensa, brinca e joga. Como ela concebe os brinquedos, jogos e brincadeiras.
As teorias de desenvolvimento psicológico revelam-se, segundo Marie-Jean Sauret, um sintoma:
" Podemos chamar, com Freud, de "infantil" o que da criança não se desenvolve, e o que não se desenvolve tem a ver com o gozo." (13)
Fracionar fenomenicamente as brincadeiras, jogos e o contato da criança com os brinquedos, não resolve a questão. O brincar não se reduz às diferentes etapas e tipos de brincadeiras infantis. O brincar ultrapassa estes processos e se institui como uma categoria nova para cada criança.
Ao apreender a criança através das etapas de desenvolvimento, nós não nos damos conta de que estamos agindo de uma forma redutora, fazendo a criança se encaixar na linguagem que conhecemos.
Há um novo no brincar, nos brinquedos e jogos infantis que precisa ser resgatado pelos educadores e pesquisadores infantis. Um novo que sempre existiu. Um novo que pertence ao registro do real, mas que por nossas construções de linguagem, sempre tentamos apreender à nossa moda, perdendo muitas vezes, irremediavelmente a criança, o brincar e o brinquedo.
Notas
(1) Maria Cristina Lutterbach Silva, Reflexões sobre um retorno, in: FORT-DA -- Ceppac. Rio de janeiro: Editora Revinter, 1995, p.7.
(2) Antonio Di Caccia, A transferência -- A Escola de Lacan, hoje. Salvador: Editora Fator, 1992, p. 26
(3) Maurice Merleau-Ponty, Merleau-.Ponty na Sorbonne - Resumo de cursos de Filosofia e Linguagem. Campinas: Papirus, 1990, p.97.
(4) Jaques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979, p. 142.
(5) Jaques Lacan - A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 34.
(6) Jaques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, op. cit, p. 137.
(7) Pierre Kaufmann, Dicionário enciclopédico de Psicanálise -- O legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 196.
(8) Leserre, Anibal - Un Niño no es un Hombre. Buenos Aires, Atuel, 1994, p. 85.
(9) Leserre, Anibal - Un Niño no es un Hombre. Buenos Aires, Atuel, 1994, p. 87.
(10) Jacques Lacan, Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p.75.
(11) Jacques Lacan, La família. Buenos Aires: Homo Sapiens, 1977, p. 56
(12) Vários Autores, Perspectiva del Psicoanálisis . Buenos Aires: Anáfora, 1993, p. 101 e 102.
(13) Sauret, Marie - Jean - O Infantil & A Estrutura. São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, 1998, p. 27.