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Resumo:
Segundo o autor, o Moisés e a religião monoteísta de S Freud, foi elaborado a partir da conjunção de quatro tipos de saberes diversos: a psicanálise clínica, o evolucionismo darwiniano, a história do povo judeu e a egiptologia. Porém, entre os teóricos e comentadores da psicanálise, a utilização, por parte de Freud, dos dados provenientes da egiptologia foram pouco estudados.
A importância deste tema reside no fato de que Freud, a partir dos dados fornecidos pelos egiptólogos da sua época, pode lançar a hipótese de que Moisés era um egípcio, partidário do credo monoteísta de Amenófis IV e que, quando da morte deste Faraó e da proscrição da sua religião - que negava, segundo Freud, tanto o politeísmo quanto a existência de vida após a morte - adotou o povo judeu como seu povo e lhes transmitiu sua religião, uma religião egípcia.
Para avaliar a utilização dos dados referentes à história do monoteísmo egípcio de Amenófis IV, o autor consultou apenas os egiptólogos citados por Freud no seu livro Moisés e a religião monoteísta.
Os resultados desta pesquisa informam que todos os egiptólogos citados por Freud afirmam que a crença na vida após a morte era um dos elementos fundamentais da religião de Amenófis IV. Desta forma, o culto ao deus solar Aton era mediado pela figura divina de Akhenaton, que se revistia, enquanto deus vivo, de características andróginas ou bissexuais. Assim, o autor conclui que a investigação realizada por Freud no campo da egiptologia foi auto-contraditória, uma vez que ela distorce suas fontes primárias de referência.
O autor concluí que, a partir dos equívocos de Freud na redação de Moisés e a religião monoteísta, pode-se afirmar que este livro a tema central seja uma exposição metafórica do alcançe da metáfora paterna. Desta forma, o livro não se destinaria a um público leigo em psicanálise, mas apenas a uma minoria de leitores habituados com a psicanálise.
I. Introdução
Este trabalho tem por objetivo realizar uma breve genealogia de um determinado conjunto de hipóteses e de teses extra-psicanalíticas às quais Freud lançou mão para realizar sua investigação acerca das origens da religião monoteísta no seu livro Moisés e a religião monoteísta. Particularmente, o conjunto de hipóteses e teses aos quais ele recorreu, segundo Jones (1) e Gay (2), centra-se ao redor de três tipos de saberes: o evolucionismo darwiniano do fim do século XIX e início do XX; hipóteses acerca da história do povo judaico; e dados referentes à história da religião egípcia que encontram como fontes principais os trabalhos dos egiptólogos Breasted (3), Erman (4) e Weigall (5).
A correlação entre o evolucionismo darwiniano e a construção histórica das origens do monoteísmo - que tem no conceito da recapitulação onto-filogenética de Ernst Haeckel, o seu principal articulador teórico - já foram estudados profundamente por pesquisadores como Sulloway (6) e Ritvo (7); os dados referentes à interpretação freudiana à história do povo judeu foram objeto de estudo de vários pesquisadores como Yerushalmi (8), por exemplo.
No entanto, a utilização freudiana dos dados referentes à história do Egito, e, principalmente, aqueles que dizem respeito à história do monoteísmo egípcio de Amenófis IV, não foram objeto de qualquer pesquisa independente. Apesar dos comentários tecidos por Jones (9) e Ricoeur (10), que afirmam que há certas divergências entre a interpretação clássica dos egiptólogos e a de Freud acerca do episódio monoteísmo egípcio - que fornece, aliás, o fundamento principal para construção das hipóteses freudianas acerca da proveniência egípcia de Moisés - não encontramos qualquer exame detido acerca da profundidade desta divergência e do seu possível alcance quer na aceitação das hipóteses freudianas quer na sua rejeição.
Esta divergência é ainda mais significativa se evocarmos a posição e o caráter singular do Moisés e a religião monoteísta no conjunto da obra freudiana: iniciado como um romance histórico (11), está obra foi logo se transformando em um vasto exercício de psicanálise aplicada e veio a se converter, por fim, em um paradigma exemplar da reflexão psicanalítica acerca da cultura e da civilização (12)ACHERON3.M__020. Ou seja, o Moisés e a religião monoteísta é, segundo estes comentadores, a principal obra de Freud no campo da psicanálise aplicada à cultura e à sociedade, seguindo e aprofundando suas hipóteses expostas em Totem e tabu de 1912.
Desta forma, devido à posição que o Moisés e a religião monoteísta ocupa no conjunto da obra de Freud, torna-se necessário um exame detalhado dos problemas que ainda se encontram em aberto segundo os comentadores da obra freudiana. A divergência, já citada, entre Freud e os egiptólogos acerca do monoteísmo de Amenófis IV é, devido à inexistência de trabalhos nesta área específica, tomada como problemática. Cabe a indagação, portanto, do alcance e da profundidade desta divergência e das suas implicações teóricas quanto à estabilidade das hipóteses apresentadas por Freud quanto a possível ascendência egípcia de Moisés.
A fim de oferecer um resposta satisfatória a essas questões, apresentaremos, antes de mais nada, uma visão geral da reconstrução freudiana acerca do episódio monoteísta no Egito de Amenófis IV, a seguir, enfocaremos os pesquisadores aos quais Freud faz referência como fonte bibliográfica para sua reconstrução. Este procedimento se justifica medida em que os comentadores da obra freudiana, ao mencionarem a divergência entre Freud e os egiptólogos, não citam quais são os pesquisadores que discordam de Freud e em quais pontos específicos.
Realizada esta tarefa preliminar, confrontaremos a reconstituição freudiana do episódio monoteísta egípcio e dos pontos que ela encara como mais significativos com as fontes às quais ela recorreu, no caso, os trabalhos de Breasted, Erman e Weigall.
Por fim, destacaremos as possíveis divergências que possam haver entre Freud e os egiptólogos da sua época e que lhe subsidiaram com os dados essenciais referentes à história do Egito para a elaboração do Moisés e a religião monoteísta.
Este trabalho, talvez, possa soar como extremamente acadêmico, como motivado por uma cinzenta paixão pelo detalhe e por tudo aquilo que foi esquecido e colocado à parte pelos pesquisadores atuais, mas, é essa paixão pelo detalhe, pelo olvidado que constituiu o fundamento do pensamento clínico psicanalítico. Como se refere Ricoeur, a psicanálise é uma escola da suspeita. Desta forma, ao ousarmos conduzir essa pesquisa praticamente nos terrenos que vinculam o saber psicanalítico à egiptologia do início do século XX, talvez, possamos descobrir conexões até hoje insuspeitas que possam lançar uma nova luz quanto à validade ou não da reflexão freudiana acerca da origem da religião monoteísta.
II. A reconstrução freudiana do reinado de Amenófis IV
O livro Moisés e a religião monoteísta de Freud apóia-se na hipótese de que Moisés tenha sido um egípcio que fora sacerdote, militar ou alto funcionário da corte de Amenófis IV e, quando da morte deste faraó e da proscrição da sua religião monoteísta no Egito, tomou um tribo primitiva que habitava as margens deste Império como seu povo e lhes impôs o credo monoteísta que havia perdido na sua terra natal. No entanto, segundo Freud, devido ao temperamento aristocrático de Moisés e às características particulares da nova religião - a total descrença em práticas mágicas, na vida após a morte e o culto a um único deus - o povo judeu rebelou-se contra Moisés e o assassinou. Anos mais tarde, motivados pelo sentimento de culpa derivado da recapitulação onto-filogenética à nível psíquico dos acontecimentos da horda primordial, este povo voltou ao monoteísmo mosaico e elegeu Moisés como seu patrono. Deste ato nasceu a religião monoteísta mosaica que se tornaria a religião do povo judeu. Ou seja, para Freud, a religião judaica não seria o produto original e particular deste povo, mas sim, uma espécie de continuação do credo monoteísta egípcio (13)
A fim de sustentar esta hipótese, Freud recorreu, principalmente, aos trabalhos dos seguintes egiptólogos: Breasted, Erman e Weigall. Detendo-se particularmente nos dados sobre a história de Amenófis IV e seu reinado.
Seguindo estes egiptólogos, Freud recolheu o material para o segundo capítulo do seu livro Moisés e a religião monoteísta intitulado Se Moisés fosse egípcio, no qual tenta demonstrar a possível proveniência egípcia de Moisés. Ora, partindo da hipótese de que Moisés fosse egípcio pela possível origem do seu nome, ele colocou em tela o seguinte problema: "Se Moisés foi egípcio, nosso primeiro proveito dessa hipótese é um novo enigma [...] não é fácil de imaginar o que poderia ter induzido um egípcio aristocrata - um príncipe, talvez, ou então um sacerdote ou alto funcionário - a colocar-se à testa de uma multidão de
estrangeiros imigrantes, culturalmente atrasados, e abandonar seu país com eles. O bem conhecido desprezo que os egípcios sentiam pelos estrangeiros torna particularmente improvável tal procedimento" ( AE, XXIII, p. 18 - será utilizada, como fonte de referência para os trabalhos de Freud, a tradução Amorrortu editores, Buenos Aires, 1986 ).
Porém, este problema é imediatamente seguindo de um outro: "Não devemos esquecer que Moisés foi não apenas o líder político dos judeus estabelecidos no Egito, mas também seu legislador e educador. forçando-os a se porem a serviço de uma nova religião, que ate o dia de hoje é conhecida, por sua causa, como a religião mosáica. Mas, é tão fácil a um homem isolado criar uma nova religião ( sublinhado meu )? E se alguém quisesse influenciar a religião de outra pessoa, mais naturalmente não a converteria ele à sua própria? Decerto, de uma forma ou de outra, não faltava ao povo judeu no Egito uma religião, e se Moisés, que lhes forneceu uma nova, era egípcio, não se pode colocar de lado a suposição de que essa nova religião era a egípcia" ( idem ). Ou seja, Freud coloca como problemático o fato de um egípcio adotar os judeus como povo e de ter fundado, por si mesmo, uma nova religião. A resposta à primeira através da vinculação entre as condições históricas que propiciaram o declínio do credo monoteísta no Egito e o possível caráter aristocrático e irascível de Moisés, mas a segunda resposta já se encontra presente: Moisés não fundou uma nova religião, mas transmitiu aos judeus a sua própria, a religião egípcia.
Porém, Freud enumera da seguinte maneira as dificuldades que se opõe a hipótese de que Moisés tenha transmitido a religião egípcia ao povo judeu: "Há algo que se coloca no caminho dessa possibilidade: o fato de haver o mais violento contraste entre a religião judaica atribuída à Moisés e a religião do Egito. A primeira é um monoteísmo rígido em grande escala: há apenas um só Deus, ele é o único Deus, onipotente, inaproximável; seu aspecto é mais do que os olhos humanos podem tolerar, nenhuma imagem dele deve ser feita, mesmo o seu nome não pode ser pronunciado. Na religião egípcia há uma quantidade quase inumerável de divindades de dignidade e origem variável [...]. Atos, encantamentos e amuletos mágicos e cerimoniais dominavam o serviço desses deuses, assim como governavam a vida cotidiana dos egípcios" ( AE, XXIII, p. 19 ).
É, entretanto, na crença egípcia em uma vida após a morte, face a total descrença do monoteísmo mosaico quanto à ela, que Freud situa o principal contraste entre a religião egípcia e a mosaica: "Mas ainda existe outro contraste entre as duas religiões que não é atendido pelas explicações que tentamos. Nenhum outro povo da Antiguidade fez tanto [ como os egípcios ] para negar a morte, ou se deu a tais trabalhos para tornar possível a existência no próximo mundo [...]. Por outro lado, a antiga religião judaica renunciou inteiramente à imortalidade; a possibilidade de a existência continuar após a morte em parte alguma jamais é mencionada. E isso é ainda mais notável por experiências posteriores terem demonstrado que a crença num após--vida é perfeitamente compatível com uma religião monoteísta" ( idem ).
Dessa forma, ele concluí que : "Era nossa esperança que a possibilidade de Moisés ser egípcio se mostrasse frutífera e esclarecedora em diversas direções, mas a primeira conclusão que tiramos dessa hipótese - que a nova religião que ele deu aos judeus era a sua, egípcia - foi invalidada por nossa compreensão do caráter diferente e, em verdade, contraditório das duas religiões" ( AE, XXIII, p. 20 ). Ou seja, o politeísmo e a crença na vida após a morte da religião egípcia chocam-se frontalmente contra o monoteísmo e a indiferença face à vida após a morte da religião judaica, o que torna impossível fazer derivar a religião judaica da egípcia, para Freud.
No entanto, ele acreditava que o episódio monoteísta ocorrido durante o reinado de Amenófis IV pudesse fornecer novos subsídios que possibilitariam sustentar a hipótese de que Moisés deu ao povo judeu, não a religião egípcia, mas uma religião egípcia especial e totalmente particular, que seria aquela de Amenófis IV. Para ele: "É possível que a religião dada por Moisés a seu povo judeu fosse a sua própria, uma religião egípcia, ainda que não a egípcia" ( AE, XXIII, p. 20 ).
Freud descreve, nos seguintes termos, o reinado e a de Amenófis IV: "Na gloriosa décima oitava dinastia [...] chegou ao trono, aproximadamente em 1375 a.C., um faraó jovem, que como seu pai, se chamou primeiramente Amenófis IV [...] Este rei se propôs a impor a seus egípcios uma religião nova que contrariava suas tradições milenares e todos os seus hábitos de vida. Era um monoteísmo rigoroso, o primeiro ensaio deste tipo na história universal até onde nosso conhecimento alcança; e com a fé em um único deus nasceu, inevitavelmente, a intolerância religiosa [...] Porém, o governo de Amenófis durou apenas 17 anos; pouco tempo depois de sua morte, ocorrida em 1358, a sua nova religião havia sido eliminada e proscrita a memória do rei herege" ( AE, XXIII, p. 21 ). Cabe lembrar que Amenófis IV no curso da sua reforma religiosa monoteísta passou adorar exclusivamente a Aton - o deus sol - e, julgando-se seu filho direto, alterou seu nome para Akhenaton. Mudou a capital do Império de Tebas para Tell-el-Armana. Aboliu o culto aos outros deuses e entrou em conflito direto com a classe sacerdotal, principalmente com os sacerdotes de Amon. Suas preocupações de ordem religiosa colocaram o Egíto em total desordem politico-administrativa. O Império viu-se abalado e ameaçado de total desagrecação. Após a sua morte, sua religião monoteísta foi proscrita.
Após esta breve descrição, ele ressalta as características da religião monoteísta de Amenófis IV: "Em primeiro lugar, dela se excluía tudo aquilo que era mítico, mágico e relativo a práticas de feitiçaria [...] Ademais, o modo de figurar o deus solar, já não era mais como no período anterior, mediante uma pequena pirâmide e um falcão, mas sim através de um modo mais sóbrio, mediante um disco redondo do qual partiam raios rematados em mãos humanas" ( AE, XXIII, p. 23 ).
Enfatizando fortemente a descrença de Amenófis IV quanto a existência de uma vida após a morte, Freud refere que: "E, por último, o total silêncio sobre Osíris, o deus da morte e de seu reino dos mortos. Nem os hinos, nem as inscrições funerais, nada de quem acaso era o mais próximo ao coração dos egípcios. Não se poderia ilustrar melhor a oposição a respeito da religião popular" ( AE, XXIII, p. 24 ).
Ou seja, para Freud, a religião monoteísta de Amenófis IV teria varrido todas as características místicas da antiga religião egípcia e teria abolido totalmente a crença em uma vida após a morte. Até mesmo a figuração desse deus se limitava a representação do disco solar e qualquer outra representação estava proibida.
Assim, ele levanta a seguinte hipótese: "Arriscaremos agora a inferência: se Moisés era egípcio e se transmitiu aos judeus sua própria religião, foi a de Akhenaton, a religião de Aton" ( AE, XXIII, p. 24 ).
Para sustentar esta hipótese, Freud apresentou uma comparação entre a religião de Amenófis IV e a judaica: "Comparamos, antes, a religião judaica com a religião popular egípcia e estabelecemos uma relação de oposição entre ambas. Devemos empreender, agora, uma comparação da religião judaica com a de Aton [...] Tanto as diferenças como as semelhanças entre ambas as religiões se podem ver bem de perto, porém, não nos dão maior esclarecimento. As duas são formas de um monoteísmo rigoroso e, de antemão, alguém poderá se inclinar a reconduzir este traço fundamental às coincidências entre ambas. [...] Com direito, nos assombramos em ver que a religião judaica não quer saber nada a respeito acerca de uma vida após a morte, pois - dizíamos - esta doutrina havia sido conciliada ainda com um monoteísmo mais rigoroso. Tal assombro se dissipa se da religião judaica remontarmos à de Atón e supormos que essa desautorização procedia desta última ( sublinhado meu ); com efeito, para Akhenaton, isso era uma necessidade em seu combate contra a religião popular, na qual o deus da morte, Osíris, desempenha um papel, talvez, maior que qualquer outro dos deuses do mundo superior. A coincidência da religião judaica com a de Atón neste importante ponto é o primeiro argumento em favor da nossa tese. Veremos que não é o único"( AE, XXIII, p. 26 ). Desta forma, Freud acreditava que a incredulidade da religião mosáica face a uma vida após a morte era procedente da descrença da religião do credo monoteísta de Amenófis IV, o texto não nos oferece qualquer outro tipo de interpretação.
Com relação à segunda questão levantada por Freud no seu ensaio - ou seja, qual teria sido a motivação que teria levado um egípcio a adotar o povo judeu como seu povo - ele a responda da seguinte maneira, tendo como base os dados históricos acerca da religião de Amenófis IV: "Já indiquei que minha hipótese de que Moisés não era judeu, mas egípcio, criou um novo enigma. O desenvolvimento de sua conduta, que parecia facilmente inteligível num judeu, era incompreensível num egípcio. Se, contudo, colocamos Moisés na época de Akhenaten e o supusermos em contato com esse faraó, o enigma se desfará, mostrando-se possíveis os motivos que responderão a todas as nossas perguntas. Comecemos pela suposição de que Moisés era um aristocrata, um homem proeminente, talvez, na verdade, um membro da casa real, tal como a lenda diz ao seu respeito. [...] Achando-se perto deste faraó, era um ardente convicto da nova religião, cujos pensamentos básicos fizera seus. Quando o rei morreu e a reação se instalou, ele viu destruidas todas as suas esperanças e projetos; se não estivesse preparado para abjurar de todas as convicções que lhe eram tão caras, o Egito nada mais teria a lhe oferecer: ele perdera seu país. [...] A natureza mais enérgica de Moisés sentia-se melhor com o plano de fundar um novo reino, de encontrar um novo povo, a quem apresentaria, para adoração, a religião de que o Egito desdenhava" ( AE, XXIII. p. 28 ). Ou seja, ao ver a religião de Amenófis IV sucumbir após a sua morte, Moisés, um egípcio, toma o povo judeu como seu povo e lhes impôs a sua religião, a religião egípcia monoteísta de Amenófis IV.
Pudemos ver que Freud sustentava sua tese de que Moisés era egípcio e transmitiu aos judeus sua religião - a de Amenófis IV - graças às analogias que ele encontra entre ambas as religiões, a mosáica e a de Amenófis IV. Estas analogias são, recapitulando, as seguintes:
1. Tanto a religião de Amenófis IV quanto a mosáica são rigidamente monoteístas
2. Da mesma forma, tanto a religião de Amenófis IV quanto a religião mosáica não admitiam a possibilidade da existência da vida após a morte ou sequer mencionavam o problema da imortalidade da alma.
Esta é, de forma resumida, a visão freudiana da vinculação entre a religião monoteísta do Faraó Amenófis IV com a religião mosáica. Como pudemos notar, a hipótese da proveniência egípcia de Moisés e da derivação da religião mosáica de uma determinada religião egípcia baseiam-se inteiramente na leitura freudiana da religião deste Faraó.
III. A religião de Amenófis IV segundo os egiptólogos consultados por Freud
A construção de Freud acerca da religião de Amenófis IV - que possibilitou que ele derivasse a religião mosáica desta religião egípcia - teve como fontes os trabalhos de Brestead, Erman e Weigall. Tomaremos como tarefa, agora, examinar os trabalhos destes três autores quanto às suas caracterizações acerca da religião monoteísta egípcia e, posteriormente, confrontá-las com a leitura que Freud realizou dos seus trabalhos a fim de averiguar as possíveis discordâncias entre o texto freudiano e suas fontes primárias com referência à história do Egito Antigo.
1. Brestead
Para tanto, abordaremos, em primeiro lugar, a obra de Brestead. No seu livro A história do antigo Egito, a referência principal que Freud utilizou na sua construção acerca do período de Amenófis IV, não encontramos qualquer contradição entre o texto deste livro a a sua interpretação freudiana. No entanto, Brestead oferece um versão contraditória à de Freud quanto a descrença da religião de Amenófis IV na vida após a morte. Segundo ele: "Na verdade, havia uma dádiva real a deveria ser bem-vinda para todos sem exceção. Estas ( dádivas ) eram os maravilhosos túmulos do penhasco os quais o rei ordenou aos seus artífices que os esculpissem no lado leste para cada um dos seus favoritos. As velhas práticas mortuárias não foram todas eliminadas por Akhenaton e eram ainda necessárias para um homem ser enterrado na Casa Eterna, junto com seus dotes para a proteção do falecido na outra vida. Mas esta Casa Eterna não era mais desfigurada com repugnantes demônios e monstros grotescos os quais deveriam confrontar o morto na vida futura; toda a parafernália mágica necessária para encontrar e vencer as forças obscuras do mundo inferior, as quais preenchiam os túmulos da Antiga Ordem em Tebas foram completamente banidas. Portanto, suprimindo este fundamento e repulsivo e os seus estratagemas, os quais a imaginação perversa de um estúpido sacerdote tinha imposto sobre uma população obediente, a reforma do rei foi muito salutar. O túmulo tornou-se um monumento para o morto; as paredes de sua capela esculpidas com figuras novas e naturais da vida do povo de Ikhanaton, particularmente os incidentes na carreira oficial do homem morto, e, de preferência, sua convivência ( ou relacionamento ) com o Rei" (14)
Ou seja, Breasted refere que Amenófis IV aboliu o culto popular de Osiris - o deus da morte - e toda a sorte de rituais mágicos a ele destinados que visavam proteger o falecido na sua outra vida. Porém, e esta é a principal divergência com relação ao texto freudiano, Amenófis IV pregava a existência de uma vida após a morte, a referência de Breasted quando a não abolição das velhas práticas mortuárias que visavam proteger o falecido na outra vida não nos possibilitam outro entendimento.
2. Erman
Já o trabalho de Erman, A religião dos egípcios - igualmente referido por Freud - nos fornece materiais ainda mais conflitantes.
Erman inicia seu trabalho ao relatar as formas pelas quais o deus de Amenófis IV era figurado, segundo ele, este deus se apresentava sob três forma: 1. sob a forma do disco solar; 2. sob a forma do seu templo em Tell-al-Amarna e 3. sob a forma do próprio Amenófis IV, que se julgava filho do deus sol. Segundo ele: "O deus único se manifesta de três formas. Aquela do deus solar comum a todo o universo, o bom deus, que tem prazer na verdade, o mestre do céu e da terra, o grande e vivo Aton, que ilumina os dois países.[...] Mas, ao seu lado aparece uma outra forma de deus solar tal qual é adorado em Tell-al-Amarna, o Aton vivo na casa de Atos em Tell-al-Amarna. Ele é conhecido como um rei; seu nome está escrito à maneira dos nomes reais e ele porta como um rei o epiteto de dotado de vida eterna. [...] A terceira forma pela qual a divindade se manifesta é o rei ele mesmo; ele que expulsou os outros deuses tornou totalmente normal o fato de se fazer adorar, ele mesmo, como um deus. [...] Agora que toda a tradição havia sido rejeitada, o rei poderia, sem nenhum escrúpulo, se fazer adorar como um deus e, até na tradicional oração dos mortos, ele é anunciado como um deus" (15)
Ou seja, a mera representação do deus-sol apenas por um disco solar é errônea para Erman. Ele ainda comporta a forma de uma espécie de rei que é adorado em seu palácio e é representado de forma antropomórfica através da figura de Amenófis IV, o deus vivo do Egito.
Como Breasted, Erman também ressalta a crença de Amenófis quanto a uma vida após a morte. Segundo ele: "A antiga concepção segundo a qual os mortos permaneceriam no mundo inferior não desapareceu. Mas, geralmente, falava-se como se eles habitassem seus túmulos. Assim, na montanha, o defunto se transformava em alma viva, que era representado à maneira antiga sob o aspecto de um pássaro. Habitualmente, ele repousava sobre o cadáver, que o deus do sol o mantinha atado conjuntamente. Mas ele poderia, também, sair de sua tumba e nela entrar, pois ele gostaria de se regozijar com o sol e o mundo. O morto recebia também alimentos e era chamado à refeição que o rei e sua família lhe ofereciam; ele obedecia, da sua parte, e permanecia no templo" (16)
3. Weigall
Já o trabalho de Weigall utilizado por Freud, O faraó Ak.hen.aton e sua época, encontramos um capítulo dedicado exclusivamente ao exame da crença de Amenófis IV na vida após a morte. Para Weigall: "Ak.hen.aton acreditava que, assim que um homem morre, sua alma continua a viver, como uma espécie de espírito astral e imaterial, ora permanecendo nos vestíbulos do céu preenchidos de sonhos, ora visitando, sob a forma de sombra, a morada dos vivos [...] Certas inscrições deixam supor que, como no quarto artigo da profissão de fé anglicana - da mesma forma que nos ensinamentos de Ak.hen.aton - o corpo era considerado como destinado a recuperar, após a morte, << sua carne e seus ossos e tudo aquilo que pertence à perfeição da natureza humana >>. Porém, exatamente como no espírito dos cristãos, há na doutrina de Ak.hen.aton a incerteza quanto a saber se o corpo era totalmente espiritual ou voltava ainda com uma certa materialidade na sua brumosa existência nas regiões montanhosas do Ocidente. A alma desencarnada continuava a ansiar pelas alegrias da vida terrestre e a evitar suas preocupações, a ressentir a sede e a fome e a apreciar uma golfada de água fresca ou uma refeição sólida, em busca do calor do sol ou da frescura da sombra" (17)
Quanto aos lugares infernais e o culto de Osiris, Weigall refere que: "Os lugares infernais não são mencionados: Ak.hen.aton, na ternura do seu coração, não poderia se converter a um deus que sofresse em ver os tormentos de qualquer uma de suas criaturas, mesmo as culpáveis. Parece, portanto, seguindo as inscrições, que não há nenhuma referência acerca dos maus na vida futura e sua entrada no vácuo; mas, pode-se supor, que haveria bondade suficiente no coração de qualquer homem para que um deus tão amável como Aton pudesse ser misericordioso a seu respeito (18)
Weigall acrescenta ainda, que: "O primeiro desejo de um falecido era o de poder deixar cada dia a sombria morada dos mortos a fim de ver a luz do sol sobre a terra. Este tinha sido o pedido dos egípcios, depois de tempos imemoriais e, para o adaptar à religião atoniana, apenas seus termos foram mudados. O discípulo de Ikhenaton pedia a sua autorização << para sair do outro mundo, pela manhã, e poder ver Aton assim que ele se levanta >>. Ele implorava com insistência e com paixão, em inúmeras súplicas, para que seu espírito pudesse << sair afim de ver os raios do sol >>, que << seus olhos pudessem se abrir para contemplar o sol >>, << que ele não fosse nenhum obstáculo a aquele que vive >>, que << a visão da bela face do sol não possa jamais se esvanecer para ele >>, que ele << possa apreciar a beleza de cada novo amanhecer >> e que << os raios do sol possam se espalhar sobre o seu corpo >> [...] A segunda súplica do falecido era que ele poderia conservar no após a morte o favor do rei e da rainha e que sua alma poderia estar a serviço das suas almas nos palácios dos mortos. Ele pedia para si << a prontidão na presença do rei >> para cumprir suas ordens; ele implorava que fosse admitido no palácio, << entrando pelo favor e caindo em sua graça >>; que ele pudesse << assistir o rei a cada dia >> e << ser honrado em presença do rei >> (19)
Ainda segundo ele, "para que a alma pudesse ter um elo com a terra, o adorador de Aton pedia para que sua múmia pudesse permanecer << firme >> e incorruptível, que a << carne pudesse viver sobre os ossos >> e que os membros pudessem ficar << todos unidos >>. Os egípcios de épocas anteriores acreditavam que os corpos reviveriam na ressureição; é esta a razão pela qual eles se esforçam com tanto zelo pela sua conservação. Ikhenaton não parece ter modificado essa concepção. [...] O corpo espiritual conservaria o aspecto e as características próprias do corpo material; além disso, pensavam, se bem que de forma confusa, que as necessidades da alma não deveriam ser muito diferentes daquelas do corpo terrestre. [...] Da mesma forma, os discípulos de Akhenaton acreditavam que a alma, para prosperar no outro mundo, deveria ter à sua disposição um alimento ou seu equivalente espiritual" (20)
Ou seja, para Weigall, a crença da imortalidade da alma e na existência de necessidades espirituais na vida futura era um dado essencial na pregação do monoteísmo de Amenófis IV.
Por fim, é necessário traçar um breve sumário, com base nos trabalhos de Breasted, Erman e Weigall, sobre o papel de Akhenaton enquanto uma divindade no Egito. Uma das características da religião de Akhenaton reside no fato de que não apenas o disco-solar era adorado enquanto um deus mas, o Faraó, como filho direto de Aton, também era considerado e reverenciado como um deus. Em um dos seus hinos a Aton, Akh.en.aton refere uma relação exclusiva entre ele e Aton. O hino se intitula "a adoração de Aton ... pelos Rei Akhenaton e a Rainha Nefertiti" e o Faró diz explicitamente: "Tu estás em meu coração e não há ninguém que te conheça melhor exceto teu filho ( Akhenaton ), a quem tu iniciaste em teus planos e em teu poder" (21). Como nota Erman, "Akhenaton qualifica a si próprio de 'O único de Ra, o qual Aton criou todas as maravilhas' a quem 'Aton deu seu nascimento'. [...] Tu és semelhante ao Aton, sendo teu filho, o rei' (22). Assim, o mais importante que há se observar acerca do monoteímo egípcio é que este reconhecia enquanto deuses Aton e seu filho Akhenaton. Além de seus nomes e títulos solenes, o Faraó era chamado de "o bom deus", e sustentava ser filho físico de Aton. As numerosas cenas das tumbas de Amarna o representam rendendo culto ao disco-sol vivo, enquanto todos seus cortesões rendem honemagens a ele. Suas preces se dirigem não a Aton, mas a a Akhenaton. Esta é a afirmação de que o Faraó era o centro do culto de Aton e que os nobres dependiam de seu deus-rei. Segundo Erman, a expressão clara de que Akhenaton era adorado como um deus reside nas inscrições funerárias deste período nunca se encontra apenas a representação do disco solar, mas ela sempre é acompanhada pela representação do Faraó (23). Inclusive, nas orações funerárias, como assevera Weigall, pede-se que seja concedido ao falecido o privilégio de acompanhar o Faraó e continuar a servi-lo, ao lado referências diretas à proteção ou a graça direta de Aton (24).
Uma outra caracteristica significativa do monoteismo egícpcio reside no caráter fundamentalmente andrógino da divindade. Nos hinos à Aton, ele é referido como "o Pai e a Mãe de todos àqueles a quem criou" (25). Ora, já no período de Amenófis III, encontra-se uma referência a Aton em um hino religioso no qual o caráter andrógino desta divindade egípcia é expressamente ressaltado: 'Quando cruzas o céu, todos os rostos te contemplam, porém, quando se vai, tu ocultas teu rosto [...] Quando tu te pões nas noites do ocidente, então todos dormem a maneira da morte [...] Tú, criador daquilo que o sonho produz, [...] mãe benéfica, para os deuses e os homens; artesão paciente que se afana grandemente como seu próprio criador ( sublinhado meu ) [...] O Senhor único. que chega aos limites da Terra todos os dias, como o único que as vê e percorre'" (26)
Akhenaton, como filho direto de Aton e criado, portanto, à sua semelhança, compartilha suas características andróginas. Segundo Ernam, "Eles ( os seguidores de Akhnenaton, nota minha ) nomeiam seu rei como o deus que cria os homens, que os faz grandes e pequenos e eles o agradecem por fazê-los ricos. Ele é a mãe ( grifo meu ) que deu a luz a todos os homens e que nutre milhões com alimento" (27). Aqui, tanto o caráter divino quanto andrógino de Akhenaton se encontram ressaltados.
Este caráter andrógino da divindade egípcia por ser visto igualmente na estatuária do Faraó Akhenaton. Ao contrário dos Faraós que o precederam, ele é representado como possuindo a um só tempo características femininas e masculinas. Desta forma, o aspecto estravagante das representações deste Faraó tem causado perplexidade a todos os egiptólogos. Segundo Champollion, Akhenaton era "um rei muito gordo, com quadris desenvolvidos, formas femininas... grande morbidezza". (28). Geralmente, na estatuária e nas estalas deste período, o Faraó Akhenaton é representado como tendo seios, abdomem proeminente, quadris largos e coxas femininas. Algumas estátuas deste faraó, por exemplo, eram confundidas com figuras femininas. Segundo Erik Horung, quando Lepsius, coordenador da expedição prussiana ao Egito, em 1843, em uma carta à Alexandre von Humboldt, ele comunica que a estátua de Bek-en-Aten não era a de uma figura feminina, como se acreditava-se até então, mas, as formas femininas da estátua apenas dissimulavam a verdadeira representação de Akhenaton. A figura de Akhenaten foi confundida com uma figura feminina até 1845 (29)ACHERON3.M__037. Já Marpero, em 1877, no seu livro Histoire ancienne dês Peuples de l'Oriente, afirma que Akhenaton foi castrado durante a guerra do seu pai contra a Nubia. O que explicaria o seu aspecto feminino e a ausência de genitais nas suas estátuas. Cabe ressaltar, mais uma vez, que este aspecto era derivado não da forma física real, mas representa os atributos bissexuais da divindade no seu credo religioso monoteísta egípcio (30).
IV. Conclusão
Como pudemos ver, todas as fontes consultadas por Freud no Moisés e a religião monoteísta acerca da história da religião monoteísta de Amenófis IV referem que a crença na vida após a morte constituía um dos elementos capitais do credo deste Faraó. Ou seja, a contradição entre Freud e os egiptólogos da sua época reside precisamente neste ponto: enquanto Freud afirmava que a religião monoteísta de Amenófis IV não dava qualquer importância à vida após a morte, os egiptólogos consultados por Freud, como pudemos apreciar, afirmam o contrário. É interessante notar, inclusive, que a total falta de referência de Freud ao texto de Karl Abraham, Amenófis IV: uma contribuição psicanalítica acerca do entendimento da sua personalidade e do culto monoteísta de Aton, publicado em 1912 e baseado na mesma bibliografia consultada por Freud, pode ser devida ao fato de que Abraham comenta as crenças de Amenófis IV quanto à existência de vida após a morte (31)
Igualmente, todas essas fontes referem que a representação da divindade no reinado de Akhenaton não resida apenas no disco solar, como afirmava Freud, mas o Faraó também era considerado e adorado como um deus. Essas mesmas fontes, sustetam que Aton e Akhenaton possuiam características andróginas, elemento que não foi citado por Freud no seu estudo sobre o monoteismo egípcio. Ora, a tentativa de fazer derivar a figura parterna de Yahavé da figura andrógina de Aton e Akhenaton, parece se constituir em uma contradição auto-evidente.
Desta forma, existe, no Moisés e a religião monoteísta de Freud, um sério problema de metodológico, interno à própria construção da obra e que a compromete quanto à legalidade das suas premissas. Ou seja, a hipótese freudiana concernente à filiação egípcia de Moisés e a sua possível participação no culto monoteísta de Amenófis IV se apoia inteiramente nas obras de Breasted, Weigall e Erman; ora, esta mesmas fontes, contradizem a própria construção freudiana acerca da religião monoteísta de Amenófis IV. Logo, os paralelos traçados por Freud entre a religião de Amenófis IV e a mosáica são totalmente artificiais, uma vez que lhes falta qualquer base na bibliografia por ele consultada.
Porém, Freud não era um escritor qualquer, mas sim, um mestre na arte de escrever. Tais erros na obra de um escritor qualquer, que não tivesse o mesmo domínio da técnica literária que Freud, poderiam ser considerados como erro e engano. A possibilidade de um intelectual como Freud tenha incorrido em repetidos erros acerca de suas fontes com relação à história do período monoteísta egícpio por descuido ou imprecisão parece totalmente incorreta. Pode-se levantar a hipótese que seus erros tenham sido intecionais. Como hipótese, sustento que essa deturpação das fontes primárias foi consciente e deliberada.
Qual seria, então, o objetivo de Freud ao realizar tantos equívocos na elaboração de Moisés e a religião monoteísta? Esta pergunta pode ser respondida a partir da seguinte evidência: o caráter abertamente ficcional do Moisés e a religião monoteísta. Este é o único texto freudiano que recebe a denominação de "romance histórico"; ora, a denominação "romance", nos remete à elaboração livre e não comprometida do seu autor com a veracidade dos fatos com os quais ele trabalha.
O apreciação cuidadosa da forma pela qual Freud trabalha suas fontes de referência no campo da egiptologia nos revelam, antes de tudo, sua capacidade imaginativa e criadora. O Moisés e a religião monoteísta é escrito sob os cuidados do processo da imaginação ou do fantasiar ( phantasieren ). Como ele mesmo escreve em Análise terminável e interminável, "Se uma especulação e uma teorização metapsicológicas - estive a ponto de escrever: sem fantasiar - não se dá um passo adiante" ( AE, XXIII, p. 228 ). Aliás, como afirma Paul Assoun, comentando o phantasieren freudiano: "É da união deste respeito quase obsessivo com relação ao fato isolado e da exigencia de especulação imaginante que reside o segredo e a fecundidade analítica. A essência é, justamente, não escolher nem de reduzir um pelo outro: o fantasiar ativo, que dá às hipóteses freudianas sua audácia remarcável, é destinado, justamente, a exprimir o valor plenenamente significante do fato" (32)
Por esse caminho, pode-se afirmar que o fantasiar significa libertar os fatos de sua realidade material para compreendé-los a partir da realidade psíquica à qual eles remetem. Desta forma, não se deve julgar o Moisés e a religião monoteísta a partir de uma visão acadêmica ou sequer procurar refutá-lo a partir das contradições que se encontram no decorrer do texto. Deve-se lê-lo como uma continuação, ou uma reatualização, direta de Totem e tabu: ambos tem como peça central o problema da metáfora paterna expressa, por Freud, através da sua criação, como ele mesmo diz, mítica, do assassinato do pai primordial pela comunidade de irmãos. É neste sentido que Freud escreve que a religião deve se curvar à psicanálise: Moisés e a religião monoteísta se presta a uma demonstração imaginativa da metáfora paterna, somente. Ele não é um romance sobre a figura de Moisés e o destino da religião monoteísta; pelo contrário, Moisés é apenas a metáfora do Pai primordial e do seu destino. Um outro tipo qualquer de leitura do texto de Freud, que tente vinculá-lo a um contexto que não seja o exclusivamente psicanalítico, apenas demonstraria uma "leitura do filho", uma leitura defensiva face ao alcançe da metáfora partena.
Enfim, como o próprio Freud salientou, seu livro "somente impressionará a uma minoria de leitores que já estão familiarizados com o pensamento psicanalítico e sabem apreciar seus resultados" ( AE, XXIII, p. 9 ).
Bibliografia
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Weigall, A. Le pharaon Akh.En.Aton et son époque, Payot, Paris, 1936
Notas
(1) Cf. Jones, E., Vida y obra de Sigmund Freud, Ediciones Horme, Vol. III, Buenos Aires, 1981, p. 330-331 e 386 393.
(2) Cf. Gay, P., Freud: uma vida para o nosso tempo, Companhia das Letras, São Paulo, 1989, p. 549.
(3) Breasted, J. H., A history of Egipt, London, 1909, 1936.
(4) Erman, A. Die Ägyptische Religion, Berlim, 1905.
(5) Weigall, A. The life and times of Akhnaton, London, 1922.
(6) Sulloway, F., Freud: biologiste de l'esprit, Fayard, Paris, 1981.
(7) Ritvo, L.B., A influência de Darwin sobre Freud, ed Imago, São Paulo, 1993.
(8) Yerushalmi, Y. H., O Moisés de Freud, Ed. Imago, R.J., 1993.
(9) Jones, E., Vida y obra de Sigmund Freud, Ediciones Horme, Vol. III, Buenos Aires, 1981, p. 390.
(10) Cf. Ricouer, P., De l'interprétation: essai sur Freud, Seuil, Paris, 1965, p. 137.
(11) Gay, P., Freud: uma vida para o nosso tempo, Companhia das Letras, São Paulo, 1989, p. 575-6.
(12) Gay, P., Freud: uma vida para o nosso tempo, Companhia das Letras, São Paulo, 1989, p. 547 e 574-6 e Jones, E., Vida y obra de Sigmund Freud, Ediciones Horme, Vol. III, Buenos Aires, 1981, p. 388.
(13) Enriquez, E., De la horde à l'État, Éditions Gallimard, Paris, 1988, p. 141-162.
(14) Breasted, J, H., A history of Egypt, Hodden and Stoughtn, N.Y., 1959, p. 369-70. Embora esta edição não seja a mesma que Freud utilizou, ela não apresenta qualquer alteração no seu conteúdo com relação às suas edições anteriores.
(15) Erman, A., La religion des égyptiens, Payot, Paris, 1952, p. 154. Utilizo a tradução francesa da obra de Erman Die Ägyptische Religion de 1905.
(16) Erman, A., La religion des égyptiens, Payot, Paris, 1952, p. 155. Utilizo a tradução francesa da obra de Erman Die Ägyptische Religion de 1905.
(17) Weigall, A. Le pharaon Akh.En.Aton et son époque, Payot, Paris, 1936, p. 117-8.
(18) Weigall, A. Le pharaon Akh.En.Aton et son époque, Payot, Paris, 1936, p. 117-8.
(19) Weigall, A. Le pharaon Akh.En.Aton et son époque, Payot, Paris, 1936, p. 119.
(20) Weigall, A. Le pharaon Akh.En.Aton et son époque, Payot, Paris, 1936, p. 120.
(21) Breadsted, J. H., A history of Egypt, Hodden and Stoughtn, N.Y., 1959, p. 375.
(22) Erman, A., La religion des égyptiens, Payot, Paris, 1952, p. 112.
(23) Erman, A., La religion des égyptiens, Payot, Paris, 1952, p. 154.
(24) Weigall, A., A. Le pharaon Akh.En.Aton et son époque, Payot, Paris, 1936, p. 119.
(25) Weigall, A., A. Le pharaon Akh.En.Aton et son époque, Payot, Paris, 1936, p. 102.
(26) Breasted, J. H., Dawn of Conscience, Londres, 1934, p.277
(27) Erman, A., La religion des égyptiens, Payot, Paris, 1952, p. 150.
(28) Citado por Horung, E., The rediscovery of Akhenaton and his place in religion, New York, 1990, p. 43.
(29) Citado por Horung, E., The rediscovery of Akhenaton and his place in religion, New York, 1990, p. 44.
(30) Citado por Horung, E., The rediscovery of Akhenaton and his place in religion, New York, 1990, p. 45.
(31) Abraham, K., Clinical papers and essays on psycho-analysis, Maresfield, London, p. 276.
(32) Assoun, P.L., Les grandes découvertes de la psychanalyse, in Histoire de la psychanalyse, ed. Hachette, Jaccard, R., ( org. ), p.147.