|
Christian Ingo Lenz Dunker,
Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma
- Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros,
São Paulo, BOITEMPO Editorial, Coleção Estado de Sítio
Capítulo 6: Crítica e clínica
E aí um analista amigo meu disse que desse jeito
eu não vou ser feliz direito.
Porque o amor é uma coisa mais profunda
que um encontro casual
Belquior
Divina Comédia
Na primeira parte deste livro tentei mostrar como a recepção da psicanálise no Brasil pode ser pensada no quadro de uma problemática sobre o diagnóstico que já vinham se desenvolvendo em torno de nossos impasses identitários e institucionais. Parti de um sintoma contemporâneo, que chamei de forma de vida em estado de condomínio, para mostrar como a psicanálise, não deve realizar apenas reaplicações de como ela entende a gênese e estrutura dos sintomas. É preciso reconhecer a existência de outras diagnósticas críticas, provindas da teoria social sobre o sofrimento e da concepção filosófica de mal-estar. Sem estas mediações não se consegue encontrar a separação e a distância necessária para distinguir, no interior de nossa própria condição de sintoma cultural da modernidade, o ponto em que nossa diagnóstica é no fundo uma auto-diagnóstica involuntária. Boa clínica é crítica social feita por outros meios. Isso não tem a mínima e parca relação com sugestionar pacientes, fornecer demandas doutrinárias e criar visões de mundo alternativas. Pelo contrário, a crítica social em matéria de diagnóstico é extremamente necessária para evitar isso.
Vimos como certos sintomas da recepção e da institucionalização a psicanálise no Brasil apoiam-se senão mimetizam interpretações sociais sobre o sofrimento. A hipótese do sincretismo, como discurso universitário associado com o discurso sobre nosso déficit de individualização, bem apoiado no discurso do mestre, desdobram e antecipam a tensão entre fatos de estrutura e fatos de constituição, que mais tarde encontraremos no interior da teoria clínica. Concepções de desenvolvimento e progresso, teorias sobre regressão, inibição ou fixação em certos estádios são ao mesmo tempo discursos sobre a economia e as formas sociais e teses sobre o desenvolvimento da criança ou sobre a constituição do sujeito.
Estas formações discursivas, estreitamente ligadas ás transformações das problemáticas clínicas, das hegemonias teóricas, das alianças e das reformulações de esquemas diagnósticos exprimem no fundo o campo político no qual a saúde e o bem estar estão frequentemente infiltrados no ideário político de redução do sofrimento e do mal-estar. Os próximos passos sempre dependerão de nossa sensibilidade e esforço crítico em perceber como as modalidades de sofrimento sobre-determinam nossas preocupações com os sintomas. Entender concorrências explicativas, inerentes à emergência de uma narrativa de sofrimento, de forma disciplinar ou territorial, é entrar na retórica da purificação dos métodos, dos conceitos, das legitimidades e dos condomínios psicanalíticos. O tão afamado real retornará nas mais diferentes modalidades de mal estar. Entender o sucesso e o fracasso das práticas psicanalíticas no Brasil é uma tarefa para historiadores e epistemólogos, e também uma fonte importante para renovar o pensamento clínico, ele mesmo tendencialmente centrípedo.
Nosso ensaio de anamnese histórica, desdobrada de nosso sintoma social do condomínio, não é estranho ao exame formal da arqueologia da razão diagnóstica. A função defensiva e segregatória dos muros, a dimensão ideológica dos síndicos, as correções regulativas, entranham a própria constituição do problema, em variantes de sintomas que se reapresentam de modo modificado: o alienista como administrador de asilos, a psicologia como parte do complexo individualista, a formação de quadros clínicos definidos como segregação de experiências socialmente insuportáveis, compulsão descritiva e o espírito de exclusão. É deste emaranhado de mitos, discursos e narrativas que se precipitam os mitemas fundamentais desta forma de pensamento que é o diagnóstico: perda e retorno, falta e excesso, determinação e indeterminação, produtividade e improdutividade. Banhados no cobre puro da ideologia elas explicam porque Marx é o inventor do sintoma, tese para a qual os lacanianos ainda não se entenderam para interpretar.
O atual debate brasileiro, versão inédita de um movimento mundial de exclusão e veto da psicanálise como abordagem terapêutica para quadros como autismo, exclusão de sua presença em concursos públicos exige uma nova leitura de nossa posição no momento atual do capitalismo. A saúde mental organizada ao modo de condomínios discursivos, orientada exclusivamente por práticas de gestão, sustentada em fundamentações normativas como a Medicina Baseada em Evidências e seus corolários exigem uma crítica e uma autocrítica psicanalítica.
Não é mais de forma automática que a psicanálise advogará seu estatuto revolucionário e extra-territorial sem justificar e pensar a incorporação de seus argumentos. Muito menos será por decreto que um capítulo do progresso científico ou da acumulação e refinamento de sua experiência clínica será aceita no debate público. Ledo engano dos que pensam que a diagnóstica psicanalítica é assunto para a classe média que tem acesso e demanda por complexidade, enquanto para as pessoas pobres deveríamos pensar nas “primeiras necessidades de sobrevivência subjetiva”. Contra o luxo, representado pela hermenêutica, política e clínica, do sofrimento seria preciso pensar outras estratégias “substitutivas”, vale dizer, mais “baratas, rápidas ou acessíveis”.
A multiplicidade de entradas clínicas não é uma questão de somação de argumentos e práticas, ao gosto do caldeirão bio-psico-social, porque isso nossos pacientes já trazem no mal estar de seus discursos. Uma crítica das práticas diagnósticas deve ser feita desde o início de forma articulada como um a história das práticas clínicas. A crítica de suas categorias deve se articular com uma interpretação social da produção de sintomas. Não é possível partir apenas dos resultados finais, feitos de temporadas, aliás, previstas, de renomeações.
O ponto que reúne os dois movimentos deste livro é justamente a hipótese de que sintomas de tipo “condominial” são sintomas transversais, ou seja, eles se mostram em modalidades de sofrimento tais como o isolamento, solidão, esvaziamento e exclusão, mas também em formas de mal-estar como o sentimento paranoico de “rapto do gozo pelo vizinho”, de angústia transformada em compulsão legislativa, em sentimentos permanentes de estranhamento, conversões articuladas entre insegurança e violência. Os sintomas, propriamente ditos, como o pânico, a anorexia, o narcisismo próprio de um eu “sitiado” e a depressão, fazem a função “ideológica” de desarticular estas duas dimensões.
Se Honneth falava em patologias da razão, como formas de patologia do social, tentei mostrar neste livro como há patologias da razão diagnóstica, que são a um tempo patologias clínicas e sociais. O fosso que ainda hoje separa estas duas dimensões, tanto no terreno da pesquisa clínica psicanalítica, quando no da pesquisa social está formado por dois pares de oposições: natureza e cultura de um lado e indivíduo e sociedade de outro. Examinando as duas principais séries de questões que atravessaram a implantação da psicanálise no Brasil, vimos como o tema do sincretismo cultural e do fracasso de implantação de modos de individualização apontam para a justificação da precariedade de nossas instituições liberais. Agora que esta precariedade de mundializou e que o Brasil torna-se cada vez mais um modelo de capitalismo avançado, em matéria de instrumentalização da anomia, talvez tenha chegado o momento de avaliar as condições de nossa contribuição, particular ao concerto das nações.Mais que isso, os próprios sintomas nacionais, como a preocupação com a identidade, a sutura da contradição social durante os tempos de ditadura, a individualização patológica das minorias, responde a esta dupla série, de temas e de estratégias para unificar ou desunir mal-estar, sintoma e sofrimento. Outra maneira de dizer, para despolitizar o sofrimento, para medicalizar o mal estar, para condominizar o sintoma.
Entre nossas questões locais, nossas mazelas colonizatórias e nossas aspirações de progresso havia algo que também perturbava a marcha da modernidade, atravessando transversalmente o campo de constituição do alienismo, da psicopatologia, da psiquiatria e da psicanálise. O alienismo era antes de tudo um movimento emancipatório, envolto na mítica da liberdade. Enquanto ele se disseminava pela Europa nós ainda vivíamos nossa não dialética entre senhores e escravos, antes da lei Áurea. Este capítulo raptado da história da colonização brasileira talvez tenha sido vivido sob forma de suplemento psicanalítico. Chegado em atraso com relação à república e em vanguarda com nosso modernismo afluente, a psicanálise cumpriu as vezes de um discurso de natureza política e liberal, ali onde em outros países ela se restringiu a incorporar-se à ordem médica e disciplinar.
Assim como certo discurso interpretava o Brasil sob o signo do déficit civilizatório, um discurso ascendente interpretava a alienação e a doença mental como déficit de determinação. Assim como se perseguia certas experiências improdutivas de indeterminação, aqui marcadas com o sinal do sincretismo, o discurso diagnóstico da modernidade desenvolvia uma patologia naturalizada das formas do desvio, da anormalidade e da desrazão. O discurso da privação cultural, da pobreza como fonte e origem a loucura, da solução material como uma anterioridade lógica em relação ao “luxo psicológico” é uma das peças retóricas mais curiosas de nossa auto-colonização.
Sem isso a teoria social, a crítica filosófica e a clínica psicanalítica só contribuirão ainda mais para a judicialização das formas de vida, sintoma colateral da lógica do condomínio. Nesta direção poderíamos hipotetizar que nosso tipo ascendente de violência não é derivado apenas da desigualdade social, mas principalmente da sua administração que faz equivaler o sintoma social ao déficit de consumo. O diagnóstico não é só uma decisão clínica, científica ou técnica, ele é, e sempre foi um tema político. É por isso que ela exige meios públicos de justificação como a ciência, a universidade, as políticas de saúde e, por que não, a responsabilidade pública das instituições de psicanálise.
Há então um horizonte de expansão da meta-diagnóstica baseada no excesso de experiências improdutivas de determinação. Era este o motor, tanto do imperativo de progresso como sinônimo de produtividade, como da lei maior da determinação como emancipação, autonomia e soberania. A recuperação da experiência como projeto moderno de constituição de indivíduos encontrou sua própria expressão aqui mesmo nos trópicos. Tinha razão tanto Mário quanto Caetano: o universal eu encontro aqui em meu quintal. O que não se sabia ainda, mesmo que Raul nos tivesse alertado, é que a Amazônia é o jardim do quintal.A revisão da concepção de antropofagia, e com ela de certo modelo de entendimento da colonização e de fundamento antropológico da identificação, tornou-se assim a chave para repensar o diagnóstico psicanalítico. Junto com uma renovação da tradição dialética, na qual Lacan se inspirou para introduzir uma chave social em suas considerações clínicas, o perspectivismo ameríndio, nos conduziram a consolidar que uma teoria psicanalítica do diagnóstico e da patologia do social fundamenta-se em uma concepção do reconhecimento. Uma concepção de reconhecimento que não se reduza à incluir espécimes em suas classes e a ordenar os grupos segundo seus traços salientes. É preciso estabelecer uma concepção de reconhecimento que leve em conta tanto a contingência do encontro quanto a impossibilidade da unidade dos sexos como limite. Uma psicopatologia não-toda seria assim uma psicopatologia capaz de se colocar criticamente diante dos diagnósticos concentracionários.
Curiosa coincidência fez com que os indígenas brasileiros tenham servido de inspiração tanto para o estruturalismo seminal de Lévi-Strauss, no quadro da soberania do totemismo, mas também a sua revisão por Viveiros de Castro e sua concepção de animismo perspectivista. Não foi, como esperava Oswald de Andrade, pela reversão ao matriarcado, nem como intuíram os lacanianos dos anos 1970, pela carnavalização da cultura, mas de alguma forma encontramos nossa própria anomalia criativa. Também o diagnóstico de déficit paterno estava certo, mas pelas razões erradas. O déficit paterno é na verdade um déficit do totemismo, como esquema explicativo. Mesmo assim o perspectivismo animista dos povos amazônicos e principalmente o método pós-estruturalista que permite visualizar a diferença antropológica que estes representam, constitui exatamente o tipo de anomalia que explica e se ajusta à anomalia representada, no interior da razão diagnóstica moderna, pelo diagnóstico que aponta para o déficit de experiências produtivas de indeterminação.
Onde a diagnóstica clássica percebe anomia e reza a construção de muros e condomínios é preciso reconhecer apenas outra modalidade experiência. Justamente a experiência na qual tanto Lacan quanto Adorno tanto insistiram da não-identidade. Onde a diagnóstica clássica quer chamar o síndico para suplementar o declínio da imago paterna é preciso reconhecer a universalidade do xamanismo transversal. Não precisamos só de mais determinação, muito menos de mais articulações ideológicas que geram indeterminações para agregar valor a novas práticas de subjetivação, ao modo deste capitalismo brasilianizado. É necessário encontrar os limites da metafísica do bem-estar, da administração cínica da droga-dependência como procedimentos de aumento de desempenho, da muragem como ideal de realização de uma forma de vida.
Vê-se assim como esta dupla anomalia, estrutural e ontológica, exige urgentemente uma reconstrução da teoria do reconhecimento. Ela deveria se articular, como um suplemento, com os resultados obtidos em torno dos povos amazônicos. Ela deve empreender ainda a recuperação a categoria de sofrimento em sua conexão com o plano narrativo da linguagem, abandonado e reduzido pela tradição lacaniana ao nível do imaginário, do romance familiar, do mito individual, da teoria sexual infantil. Mais do que nunca é aqui que a própria psicanálise partilha do dispositivo de afastamento da experiência e da disseminação da razão sistêmica, que afinal concorrem para a modulação do sofrimento de nossos analisantes.
A releitura, que propus na segunda parte deste livro, tanto da diagnóstica lacaniana quanto da razão diagnóstica da modernidade é uma espécie de experimento teórico do que poderia ser uma teoria do patológico, clinicamente útil, capaz de levar em conta a crítica histórica de si mesma. Parafraseando o velho problema colocado por Espinoza: quando diagnosticamos o outro é sempre a nós mesmo que diagnosticamos, mesmo sem saber. Nada a declarar completaria Simão Bacamarte.
Em vez de dois sintomas que se apoiam mutuamente em uma série, e dois diagnósticos que se complementam em outra, reputamos uma mesma anomalia, baseada na dificuldade de integrar teoricamente o valor produtivo das experiências de indeterminação. O encontro na mata, o xamanismo transversal, o multinaturalismo, o perpectivismo nos dão, em chave antropológica, o que o sofrimento de indeterminação, o mal-estar que ainda não tem nome e as patologias do gozo, problematizam em chave sociológica. Uma privilegia o método estrutural e nos leva a confrontar a oposição entre natureza e cultura. A outra enfatiza o método dialético e nos convida a rever a oposição entre indivíduo e sociedade.
Vê-se assim que o debate lacaniano brasileiro, que opõe estrutura ou desenvolvimento, clínica do simbólico ou clinica do real, nome do pai (estruturas) ou primazia dos registros (Real Simbólico e Imaginário), teoria dos quatro discursos ou problemas da sexuação, capta desavisadamente o mesmo problema, mas sem imaginar qualquer relação entre ele e a história da racionalidade diagnóstica que o tornou possível. A história cultural da absorção discursiva da prática psicanalítica deve sair de seu lugar adjuvante de formadora de contextos e mapas “compreensivos”, que ajudam a “entender quem somos” e ser vista como método capaz de iluminar melhor nossos problemas clínicos reais. É preciso deixar de imaginar que a hermenêutica do texto de Lacan ou de Freud é o único método para pensar transformações clínicas que variam conforme a realidade social e cultural na qual paciente e analistas criam, reconhecem e tratam de sintomas, de sofrimentos e de formas de mal-estar.