Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Litorais da psicanálise
Ana Costa

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APRESENTAÇÃO

Um primeiro encontro, com o tema deste livro, foi num trabalho realizado a partir da Odisseia, de Homero, em 2006. Esta narrativa épica, tantas vezes retomada nas produções ocidentais, compõe um mito de origem em que muitos se debruçaram, tal como o fez Adorno e Horkheimer, numa crítica aos limites da razão, ou mesmo o escritor J. Joyce, que reconstituiu ironicamente uma épica acontecida num único dia. Na época, nossas indagações situavam uma questão específica a respeito do nome próprio. Odisseia vem de Odisseu, nome em grego do herói do épico, que ficou conhecido entre nós como Ulisses, na tradução ao latim. A viagem de Ulisses – a Odisseia – traz, então, uma duplicidade relativa a esse nome próprio, que acabou se tornando um substantivo. Na acepção que hoje compartilhamos, tornou-se a referência da viagem que se relata na obra e que nos chega como designativo de outras viagens.

A Odisseia condensa o universo mítico grego, articulando entre si elementos complexos, que podem ser pensados a partir da psicanálise, tais como filiação e nome próprio, reconhecimento e lugar, errância, letra e gozo. A errância de Ulisses converge com o tema do litoral, na medida em que sua odisseia desamarra o que seu lugar, em Ítaca, mantinha organizado. Nesse sentido, inspira nossa indagação de como se articulam/desarticulam - em nosso tempo e laço discursivo – os elementos que nos sustentam enquanto falantes situados nesses mesmos temas.

Uma das vias de retomada dessas questões o fez o escritor James Joyce, com o romance Ulisses, que revolucionou a técnica do romance. Nele o escritor irlandês parodia a obra de Homero, construindo um anti-herói – Leopold Bloom – como um Ulisses, cuja “viagem” é retorno à casa, mas num deslocamento pela cidade de Dublin,  acontecendo num único dia. A viagem se constitui muito mais por um fluxo de pensamentos, do que por reais acontecimentos. Leopold, personagem de preocupações cotidianas, poderia bem ser pensado como um humano sem deuses – ao contrário de Odisseu – precisando dar conta de uma vida cujos riscos se concentram nas relações. Filho de pai suicida e tendo de seu casamento um filho morto, pode-se situar aí um retorno sobre as questões que dizem respeito a lugar, nome próprio e descendência, também em causa na obra de Homero.
As questões que rebatem numa e noutra obra nos retornam: filhos da reprodutibilidade capitalista – como nomeia Walter Benjamin, a respeito de nossas “obras” – nossa “reprodução” por vezes não faz transmissão de descendência, constituindo-se numa errância específica a nosso tempo. Assim, esses temas retornam com outras roupagens: temas cruciais para a clínica psicanalítica. São questões que nos levaram a situar os desenvolvimentos, que ora nos ocupam, nas proposições da psicanálise sobre letra e escrita, articulados às relações entre saber e tempo.

Litorais da psicanálise busca desenvolver questões relativas aos temas da letra e da escrita, transitando por algumas fronteiras estabelecidas pelo discurso analítico. Nomeamos de “litorais”, seguindo uma proposição lacaniana que desenvolveremos detidamente. Essa proposição, além de permitir construir interfaces da psicanálise com outros campos, também é o suporte para produção dentro da própria psicanálise, cuja singularidade é o de constituir seu sujeito numa torção moebiana na concepção corriqueira do dentro e do fora. O que nos permitirá situar essas construções liga-se à especificidade da escrita para a psicanálise. Ela situa tanto o ponto de entrada, quanto o de saída na produção de uma clínica, na medida em que está articulada à sua transmissão. A escrita, aqui, abarca uma amplitude muito maior do que sua apresentação ortográfica. Ela mantém a tensão entre expressão e sentido, inscrição e invenção, que compõem as condições contingentes, limitadas e possíveis em que nossa cultura tenta circunscrever um Real, na tentativa de capturar o impossível. Transitaremos por elas, num percurso moebiano, que implica a relação da psicanálise com outros campos. No entanto, para que isso seja possível, é preciso entretecer alguns fundamentos da própria psicanálise.
Pode-se dizer que a singularidade dessa clínica inclui na sua experiência a dimensão da transmissão. Esta dimensão está suposta em todos os seus elementos, desde os avatares cotidianos nos consultórios, até a tentativa de objetivá-la para um ensino. Em termos do consultório, coloca-se no momento em que o analisando precisa transmitir ao analista algum tipo de vivência, impossível de expressar, ou mesmo de ser entendida. Como transmitir a angústia? Ela nunca cabe na palavra, pairando sempre inadequada a qualquer conformação. Como transitar nas raízes do padecimento de desconfianças? E as paixões: desde a servidão do ciúme comum, até a certeza da paranoia? O sentimento de solidão dessas experiências causa a impressão de que nunca ninguém conseguirá acolhe-las na sua singularidade.

Partindo dessas considerações podemos admitir estarmos fundados num paradoxo. De um lado, a necessidade da transmissão de algo que, de tão singular, parece estar fora do discurso; ou seja, está por ser nomeado. De outro, a necessidade de inscrever essa experiência numa tradição da clínica. E como se dá a transmissão do singular, tanto quanto sua inscrição num discurso compartilhado? Por algo que foi definido já desde Freud como forma de inscrição da experiência do inconsciente, sua construção em transferência. É pela repetição numa estrutura discursiva, situada em transferência, que se reconhece o lugar do sujeito, tanto quanto seu gozo, como um singular nessa estrutura. Aqui, tomamos o termo estrutura na sua acepção de uma montagem da transferência, na qual um Real se circunscreve de maneira singular, na insistência das produções de linguagem, dizendo respeito à função de falar ao outro.

Pelo apresentado até aqui é possível perceber o fio que se desdobrará ao longo deste trabalho, que articula uma linha tênue entre inscrição num discurso e transmissão, suas singularidades e contingências, que fazem parte da relação a distintas produções com as quais a psicanálise mantém interlocução.

Precisamos considerar também que – enquanto transmissão de sua produção – a psicanálise tem um caminhar de mais de cem anos. E o que testemunhamos desse tempo? Que já foram dadas inúmeras respostas aos desenlaces das análises individuais. Como tratamos da questão do sujeito e do gozo, acima, é preciso sublinhar que – apesar de serem questões fundamentais – elas não se propõem como saída das análises, elas perpassam seu trabalho. Isso nos leva, inevitavelmente, à indagação do que amarraria o sujeito a um lugar, situando, assim, as elaborações sobre o sintoma. Como entrada e saída, os conceitos em torno deste termo ainda não cessaram de ser construídos na usina do trabalho analítico, compondo o campo de enigmas necessário às produções em psicanálise. Neste campo, a direção do tratamento não se pauta pela eliminação do sintoma, mas pela possibilidade de acompanhar o sujeito na construção de balizas para sua sustentação.

Como aproximação, tomemos algumas referências de base. Inicialmente, Freud conduzia as análises a partir de uma iniciação de seus analisandos no saber da psicanálise. É realmente curioso acompanhar estes primórdios. A direção empreendida por Freud dizia respeito à questão da interpretação psicanalítica, como se impondo a um domínio do inconsciente. A interpretação resgataria um saber nas trevas, iluminando-o à linguagem da comunicação consciente. Saber as “razões” de seu inconsciente, neste momento de construção freudiana, seria suficiente para eliminar um conflito entre instâncias. Como já foi insistentemente lembrado em produções subsequentes, isso não foi suficiente como suporte de trabalho. No entanto, já está colocada de saída uma questão que parece situar a queixa como a tentativa de objetivação de um saber e um domínio do corpo e do sintoma. Torna-se necessário acompanhar os desdobramentos da referência ao saber, na medida em que incidiu sobre este toda uma modificação na clínica, transpondo as concepções freudianas iniciais, até um saber fazer proposto por Lacan.
Desdobraremos alguns desses elementos, como uma contribuição possível, seja no sentido estrito da prática clínica, quanto num sentido ampliado, de interrelação com a cultura. Nesta interrelação encontramos novamente o tema dos litorais, onde, por um lado, situa-se a busca da constituição de um saber nos diferentes discursos; e, de outro lado, suas saídas compõem uma escrita em seus limites.

Nos capítulos a seguir avançaremos na abordagem dos elementos destacados acima. Mas o faremos no encontro de heterogêneos, transitando moebianamente na relação da psicanálise com a produção de outros campos, tais como ciência, arte, literatura e cinema. São campos de trânsito tradicional nas produções em psicanálise, apoio de seus autores na transmissão do singular de suas questões. Escolhemos também esse caminho.

CAPÍTULO I - LETRA E BORDAS DOS DISCURSOS

Como estabelecer relações com campos distintos mantendo-se uma condição de extimidade, própria à psicanálise? Pode-se dizer que desde Freud essa proposta está colocada. Se por um lado este autor escreveu trabalhos inspirados em questões literárias, antropológicas e filosóficas, isso aconteceu sempre em função de uma clínica, que implicava necessariamente a referência ao inconsciente. É desde esses fundamentos, já estabelecidos, que situaremos algumas contribuições da psicanálise na relação com a produção de outros campos. A via de litorais por onde transitaremos contém a referência lacaniana a elementos heterogêneos. Lá onde o cruzamento de limites demonstra uma não continuidade. Lacan demonstrou essa questão exemplificando a partir de linhas demarcatórias, diferenciando fronteiras entre países – onde se dá a transposição de línguas e culturas (ou seja, é do campo das referências fálicas que se trata) – daquelas que implicam cruzamentos de litorais – onde não há homogeneidade entre elementos, como terra e água, por exemplo. O cruzamento de um litoral requer invenções para que se dê a sustentação em um novo elemento. Aqui não se trata simplesmente de aprender a falar outra língua.

Pensemos em momentos cruciais – ocorridos na história – em que foi preciso transpor os limites que já mencionamos, onde os recursos humanos não davam conta da empreitada. Já que falamos em litorais, tomemos o exemplo das navegações, responsável em grande parte pela mudança radical nos rumos da cultura ocidental, que determinou as chamadas “descobertas” e o “novo mundo”. Este exemplo é aproximativo, poderíamos situar um litoral em distintas referências, mas esta ocorrência histórica também se adéqua ao que tratamos. A redução ao Mediterrâneo compôs, durante séculos, as condições de vida ocidental, nas quais os grandes oceanos – na impossibilidade momentânea de transpô-los – era o lugar do mito do fim do mundo, de monstros e precipícios. Foi preciso a construção de uma ficção – terras de infinitas riquezas, que existiriam no além-mar – para que a criação de instrumentos de navegação permitisse transpor esse limite. Assim, a ficção do novo mundo precedeu a invenção de recursos para “descobrir” o novo mundo. As condições dessas invenções, para transpor um litoral (seja ele no âmbito desse exemplo, ou mesmo em outros onde o limite não parece evidente, como na arte), desenvolvem-se primeiro como uma escrita. Seja na escrita de fórmulas da ciência, seja na produção de objetos na arte - que são também, tal como estamos propondo, do âmbito de escritas – encontramos pré-condições para a transposição desses limites, circunscrevendo um Real. A escrita de fórmulas, na ciência, tornou possíveis invenções para o cruzamento de litorais que somente a imaginação tornava crível, como a possibilidade de voar.

A escrita cria outro real responsável pela produção de bordas que, de alguma maneira, inscrevem a letra no buraco de um saber situado em cada campo. Aqui, letra designa um elemento mínimo não comandado pelo sentido e que permite o movimento de criação – seja nas fórmulas que compõem a ciência, seja nos traços da arte, ou mesmo na letra literária. Ela pode situar-se tanto na escrita alfabética, quanto nas fórmulas científicas, ou mesmo no ato do artista. Neste momento, ainda não tratamos da clínica strictu sensu, mas o que se desdobra nela guarda homologia com o que situamos aqui. Este tema será desenvolvido mais adiante.
Pode-se deduzir que na inscrição da letra num discurso os campos se diferenciam, na medida em que essa inscrição delimita a posição do significante mestre em cada campo. Situando minimamente essa questão, transitemos rapidamente por aquilo que faz laço social. Ou seja, aquilo que permite a constituição das condições pelas quais uma cultura se sustente e subsista ao longo do tempo. Esse tema é bastante amplo, mas tentaremos cerni-lo a partir das elaborações que Freud e Lacan nos legaram.

Freud estabeleceu as bases para esse entendimento em seu texto sobre o mal-estar na cultura. Para o autor, o pressuposto da cultura está colocado no saber e capacidade adquiridos para dominar as forças da natureza, com o fim de satisfazer as necessidades propriamente humanas. De outro lado, também diz respeito à manutenção de instituições para regular as relações dos homens entre si, relações estas de domínio e exploração. A nosso ver, o termo mais próximo às propostas freudianas é “cultura”, na medida em que o significado de “civilização”, em nossa língua, pressupõe que haveria um desenvolvimento progressivo, desde a barbárie, até uma pretensa civilização mais desenvolvida. Bem contrário a essa ideia, Freud não compartilha da proposição de uma pretensa “civilidade”, na medida em que os homens – mesmo transformando as forças da natureza – criaram outro tipo de forças, expressas na tentativa de controle das pulsões. Ao transitar pelas especificidades da cultura, Freud mostra seu ceticismo em relação às saídas para eliminação do mal-estar. Assim, o mal-estar faz parte inevitavelmente da cultura e todo o movimento de criação empreendido pela humanidade busca, sem êxito, eliminá-lo. Neste movimento está incluída a pulsão de morte e seu paradoxo implica que a tentativa de eliminação do mal-estar deriva na própria autoeliminação do sujeito.
Mesmo que consideremos que esta análise freudiana foi realizada numa época de entre guerras, em que o tema do mal-estar era suficientemente presente para provocar ceticismo, a proposta contida neste artigo diz de algo mais abrangente, que a guerra – mais que provocar - permite revelar. Nesse sentido, estamos frente a algo invariante, fazendo parte dos princípios mesmos da cultura, nos quais remédio e veneno estão conjugados e seus efeitos – para um ou outro polo – dependem da dosagem. É desta duplicidade que Freud trata no artigo. Basta referir a análise do autor em relação ao princípio do amor ao próximo, o qual esbarra no tema do narcisismo, que por outro lado, inclui uma fonte de agressividade derivada da pulsão de morte. O paradoxo implicado nas relações humanas conjuga desamparo e necessidade de domínio num mesmo ponto, no qual a fragilidade se transforma em onipotência.
Lacan também busca os princípios da cultura para além da função da fala, ou seja, para além de que alguém tome a palavra dando corpo a uma estrutura de linguagem. Ele denominou discursos (1), situando-os em quatro estruturas sem palavras, ordenadores de posições para quem quer que se situe num laço social. São posições que agenciam o sujeito no laço social, o que implica que o lugar num discurso imprime uma determinada forma de laço, independente de veleidades, singularidades e gostos. Nesse sentido, ele segue o caminho freudiano da busca por invariantes estruturais.

Uma das derivações do tema freudiano das pulsões em Lacan diz respeito ao que este denominou de gozo. Na proposição dos discursos o autor situa o gozo derivado de uma perda de gozo originária. Freud já havia proposto a satisfação alucinatória, na qual a criança se satisfaz de uma evocação do seio, a partir da ausência da mãe. A satisfação alucinatória imprime um signo da ausência em toda satisfação subsequente, fazendo parte da constituição do desejo do sujeito, separador - em todos os sentidos – das condições de satisfação exclusivamente biológica. O signo desta ausência, como marca no corpo da criança, resultará em que todo gozo advém de uma perda originária de gozo, o que traz no seu cerne uma impossibilidade estrutural de apaziguamento. As chamadas “satisfações substitutivas”, na expressão freudiana, que constroem o campo de satisfação pelos representantes desse originário, são sintomáticas e geram repetição. Neste último tema, desenvolveremos adiante algumas diferenças nas abordagens de Freud e Lacan, importantes para situar o tema do luto.

Essas proposições – extensamente desenvolvidas pelos psicanalistas - podem levar-nos muito longe em suas consequências. A tentativa de isolar a particularidade do falante (2), relacionando linguagem e satisfação, é deveras complexa. Por um lado poderia dizer-se que o falante se satisfaz de signos de objetos que o posicionariam no campo dos valores, como o são os objetos apresentados ao consumo. Mas, como se sabe, não é isso. Toda vez que, na clínica, confunde-se a demanda (vir a ter um objeto, signo aparente de satisfação) com o que posicionaria o sujeito no desejo, joga-se a partida da deriva infinita da pulsão. Os significantes, enquanto barrados de uma relação a um referente, seguem a via dos desdobramentos e substituições da linguagem, sem nunca limitar o que seria da ordem da satisfação. A heterogeneidade implicada no tema da satisfação é toda a dificuldade com que se lida num percurso de análise. Temos, então, de um lado os significantes (operadores de linguagem); de outro, o real, buraco deixado pelo que Freud designou de recalque originário (essa perda originária na separação do corpo da mãe); e, como uma tentativa de ponte entre eles, o imaginário da representação, cujo molde é o corpo. Assim, a satisfação lida com essa heterogeneidade, onde um registro não se subsume ao outro. A análise, ao sustentar a relação à fala, também põe em evidência essa complexidade: por vezes o sujeito pode gozar de falar sem chegar a lugar nenhum.

O tema do gozo como resultante de uma perda de gozo foi suficiente para que Lacan o ligasse às proposições de Marx sobre a mais-valia. Encontramos, aqui, um salto muito grande, que os leitores de Lacan precisaram transpor posteriormente. Como não é de nosso interesse desenvolver esta particularidade, cabe acrescentar somente que ali se trata do agenciamento de um saber, situado no campo do Outro, e que vem no lugar desse furo originário implicado em toda relação com a satisfação. O que evoca, no tema que estamos tratando, a relação entre produção de cultura (produção de objeto a partir do agenciamento de um saber) e constituição do laço social. Isso quer dizer que a passagem para a cultura, a própria produção do laço social, deriva da possibilidade de construção de um elo entre essa perda originária e um lugar cultural. Ou seja, um avanço nas proposições de Freud, mas partindo delas. Esta ligação o próprio Lacan situa, quando aborda a passagem freudiana do desejo inconsciente (na Traumdeutung) para a repetição (Além do princípio do prazer (3) ):
A repetição o que é?... É o gozo... o que nos interessa como repetição, e se inscreve numa dialética do gozo, é propriamente aquilo que se dirige contra a vida. É no nível da repetição que Freud se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura do discurso, a articular o instinto de morte. (p.43) (4)

É por relação à repetição que o autor formula o desperdício de gozo, na medida em que o que se repete insiste como perda. No entanto, é nesse ponto que Lacan busca uma especificidade de suas proposições em relação a Freud, na medida em que a escrita dos discursos permite a ele situar estruturas diferenciadas, colocando em causa dois elementos fundantes da entrada do sujeito na linguagem: a cadeia significante e a posição na fantasia. Lacan trata de situar sua escrita dos discursos inserida numa lógica, comandada pelas letras, já desenvolvidas em outras passagens de seu ensino: S1, S2, $, a. Não sem alguma ironia ele vai fazer escansão em relação ao que Freud propõe, dizendo “agora vem o que Lacan aporta”. É desta maneira que ele introduz a função do traço unário como uma forma mais simples de marca, origem do significante. Mais adiante, desdobraremos essa função do traço unário.
A partir da abertura destas questões, reconhecemos que Lacan legou-nos a proposta de uma diferença de discursos, o que implica uma escrita de diferentes posições do sujeito nos laço sociais, que são laços discursivos. No entanto, como situar uma diferença entre campos de saber (literatura, psicanálise, filosofia, etc.)? Para Lacan, os discursos não propõem uma relação a esta diferença, na medida em que são estruturas que podemos encontrar em qualquer laço discursivo, sem que se explicite o campo de saber a que pertencem.

No entanto, isso não impede que retomemos indagações corriqueiras, que surgem da clínica. Nela, quantas vezes o sujeito coloca em causa sua pertença? As indagações surgem reiteradamente: “serei eu escritor?”, “serei psicanalista?”. O que se destaca aqui é o tema da inscrição. É partindo da inscrição de uma produção de linguagem que os campos são definidos: ou são mantidos, ou mesmo se alargam. Nesse sentido a referência à escrita toma toda relevância, na medida em que nela se situam as buscas de produções singulares no furo do saber, na medida em que este delimita cada campo. Ou seja, diz respeito a como o sujeito, singularmente, produz seu ato, o que o implica numa determinada referência de linguagem a um saber que se singulariza, buscando sua inscrição num laço discursivo. Também em razão dessas operações singulares que os limites entre campos se constituem, ou se desfazem.
Desde que Lacan tomou a escrita como base da clínica, nas diferentes elaborações ao longo de sua obra, muito tem se produzido sobre o tema, situando na literatura uma expressão princeps para entendimento dessas proposições. Por vezes o trânsito pela literatura pode fascinar, afastando o analista das dificuldades de seu trabalho clínico, quando impasses em transferências ameaçam fazer naufragar sua confiança. Suportar esses tempos da clínica é também suportar a faceta do cotidiano da vida infame (5). Se por um lado, Lacan propôs que a escrita em James Joyce deu-lhe recursos para livrá-lo de crises da psicose, por outro, como lidar com cada caso clínico, tão irremediavelmente distante do “charme” literário?

É preciso indicar que as elaborações psicanalíticas não são, necessariamente, indicações terapêuticas. Muitas vezes estas elaborações se dirigem tão somente a ampliar a abordagem conceitual, mas com isso não estão propondo qualquer outra coisa. Seria risível propor que a escrita literária fosse a terapêutica as psicoses. Ela pode ser um caminho de alguns casos, singularmente, não para todos. Essa questão nos ajudará a transitar pela relação da psicanálise com outros campos, buscando a definição de seus litorais, lá onde a especificidade da psicanálise produz rupturas.
Se tomarmos a literatura, mesmo que aparentemente superada e já enunciada, vale voltar a perguntar sobre quais aproximações podem ser feitas com a clínica psicanalítica. Das tantas, destacaremos uma: a relação entre escrita e a tentativa de produção de um originário. É o que leva a encontrar a literatura na relação com a criação. Aqui já temos um encontro entre campos, nos quais se situa um particular interesse com um ato que pudesse produzir inscrição num laço discursivo, o que vai ao encontro da proposição lacaniana do discurso do analista. Assim, o tema do ato adquire toda importância.

NOTAS

(1) Lacan, J. O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

(2) Neste momento escolhemos “falante” como uma designação mais direta, expressão – esta – que deixa fora, aqui, a construção lacaniana falasser, questão que desdobraremos oportunamente. Isto nos permite trazer um questionamento em relação ao uso abusivo dos neologismos criados por Lacan.Estes remetem ao uso que Lacan fazia no sentido de busca de uma enunciação, não se constituindo propriamente em conceitos. A utilização dos neologismos criados por Lacan merece uma discussão, na medida em que, se precisamos explicá-los cada vez que os usamos, não têm o efeito que seu autor buscava produzir, ou seja, o jogo equívoco com a linguagem. O exercício de Lacan, na sua enunciação, transmitindo seu ensino oral, remete a uma questão destacada por ele, própria ao campo analítico, de que ele falava como analisando. Isto é, num engajamento com o insabido do inconsciente. Como analistas precisamos ter cuidado quando positivamos demais o que é da ordem do saber.

(3) Freud, S. Más allá del principio del placer. In: Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1972.

(4) Op. Cit.

(5)  Tomamos emprestada uma expressão de Michel Foucault, que indica o banal, sem fama.

 

 

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 29 - Febrero 2016
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