Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Traço unario e a abertura do real
Luiz Fernando Botto García

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Neste artigo, buscarei desenvolver a ideia de traço a partir de uma perspectiva radical da relação entre simbólico e real: não há real que seja anterior ao simbólico. Para isso, deveremos percorrer os momentos em que Lacan desenvolve o conceito de traço no Seminário IX, de modo a apontar quais as novidades e as consequências que o conceito traz para a metapsicologia lacaniana.
A questão simbólica a respeito da necessidade de se pensar o traço unário surge da seguinte dificuldade, sinteticamente pontuada por Dunker:

A criança nasce imersa na linguagem, a estrutura precede o sujeito, o simbólico antecede o imaginário, no entanto a criança não nasce falando, ela deve se apossar da linguagem na mesma medida em que a linguagem dela se apossa e subordina. Mas como explicar esta intrusão do significante? (2003).

Não se trata de pensar uma perspectiva genética da subjetividade na criança, mas de buscar em termos lógicos as consequências do uso epistemológico do estruturalismo para a psicanálise a partir dos dois eixos do significante – busca que envolve não apenas a sincronia da imersão do sujeito na estrutura, mas também a diacronia e a condição temporal. Afinal, qual seria a relação entre a anterioridade do Outro e a introdução da cadeia significante, enquanto inconsciente, no sujeito? Como se dá essa passagem do que Lacan chamara no Seminário VI de “sujeito inocente” para o sujeito do inconsciente, da repetição?

A estrutura da cadeia significante a partir do momento em que ela realizou o apelo do Outro, ou seja, em que a enunciação, o processo da enunciação se superpõe, se distingue da fórmula do enunciado, exigindo como tal, alguma coisa que é justamente a posse do sujeito, posse do sujeito que era inicialmente inocente, mas que aqui – a nuance esta aí, no entanto, é essencial – é inconsciente na articulação da fala a partir do momento em que a comutatividade do significante aí se torna uma dimensão essencial para a produção do significado (LACAN, 2002, p. 26).

Até o Seminário IX, não havia nada que desse conta deste movimento, que acabava por se limitar a uma pressuposição hipotética.

A ideia do traço tentará contornar esta dificuldade, ao propor algo que funcionará como fundamento do significante, e que, como tal, propiciará esse momento de apropriação, de tomada do sujeito em relação ao próprio significante. Lacan parte de um detalhe que ele mesmo encontrara num osso exposto numa coleção de objetos pré-históricos: uma série de pequenos bastões, organizados por grupos, entalhados nesse osso de mamífero, provavelmente marcando o número de animais abatidos na caça; exemplo que não difere, quanto ao seu propósito, das marcas que Sade fazia na cabeceira de seu leito, para cada um de seus orgasmos (LACAN, 2003, p. 60-61). Pois chega um momento em que se torna impossível para o caçador saber o que cada traço significa, qual a história, ou o animal abatido, restando apenas a marca de ser mais uma caça; assim como, para Sade, logo o traço se torna apenas a marca de um orgasmo, totalmente independente de com quem ele foi atingido, como, ou qual o nível de satisfação produzido. Ou seja: trata-se do momento em que, do objeto em questão (aqui, a caça e o orgasmo), resta apenas esse traço, totalmente desligado de questões qualitativas, marcando apenas a repetição do gesto, um a um. Assim, do traço, temos que se trata do que há “de mais destruído, de mais apagado de um objeto. Se é do objeto que o traço surge, é algo do objeto que o traço retém, justamente sua unicidade” (op. cit., p. 100-101). É o apagamento de toda marca qualitativa do traço que faz dele um suporte da diferença. Nada nele se distingue, exceto ser um traço, e quanto mais ele é parecido com as outras marcas que o rodeiam, mais ele se faz suporte da diferença: “mesmo a repetir o mesmo, o mesmo, ao ser repetido, se inscreve como distinto” (op. cit., p. 326), pois o traço é aquilo “que não pode se repetir senão sempre para ser um outro” (op. cit., p. 312). Desse modo, o que o traço produz é a introdução da diferença pura no real. Pois o real, tal qual na apropriação lacaniana de Koyré, é pleno e sem fissura, sendo função do simbólico inscrever a diferença, ao demarcar suas coordenadas significantes nisso que antes não tinha marcas. Ideia que faz do traço essa espécie de desbravador do simbólico junto ao real, localizando-o entre o signo (aquilo que representa alguma coisa para alguém) e o significante (que representa um sujeito para outro significante) (op. cit., p. 136). Sendo assim, o traço seria a marca simbólica no real que impossibilitaria a relação entre o sujeito e o signo (e aqui começa uma grande dificuldade de interpretação do texto), exatamente por apagar simbolicamente a relação do sujeito com a coisa. Tomando as pegadas do Sexta-Feira que Crusoé encontra em sua ilha, Lacan (op. cit.) dirá que uma pegada aparece como signo: representa uma coisa para alguém, no caso, uma outra presença, que “indica algo que não está lá” (DUNKER, 2003); se essa pegada é apagada, mas mantém algo tal como uma rasura no solo, estaríamos lidando com o traço: “um rastro que é negado materialmente não é mais um rastro, mas torna-se um traço” (op. cit.); se não há mais sinal algum no local onde sabidamente havia algo, quando a marca é deliberadamente apagada, estamos no nível do significante: “em um terceiro tempo temos a negação do traço operada pela barra, aqui sim congruente com o recalcamento propriamente dito” (op. cit.). Em outros termos, o signo seria uma forma de relação do sujeito com a coisa; o traço seria o apagamento dessa relação com a coisa, mantendo apenas o traço como referência da unicidade da coisa; e o significante seria a prova da existência de um sujeito que produz, pela linguagem, o total apagamento da relação com a coisa. Seguindo essa ideia, Lacan afirma que “o neurótico não sabe, e não sem razão, que é enquanto sujeito que ele fomentou isso: que é ele, o sujeito que, ao apagar todos os traços da coisa, faz o significante” (2003, p. 194).

Definições que, nestes termos, são impossíveis de defender. Se é o sujeito quem apaga a coisa e, nessa operação, faz o significante, poderíamos pensar que, um dia, o sujeito teve acesso à coisa, antes de ter acesso à linguagem. Como se estivesse em questão uma impossibilidade de que o caçador pudesse ter relação com a caça, ou que Sade tomasse cada marca como aquilo que de fato ela representou, por uma simples questão de quantidade: um dia a marca disse da coisa, mas a quantidade de marcas agora impossibilita essa relação. Ideia que fica ainda mais problemática quando esta coisa ganha letra maiúscula: em mais uma das versões lacanianas do Wo Es war, soll Ich werden, ele afirma que “onde estava a Coisa, o eu deve advir”, já que a Coisa fora apagada pelo traço (op. cit., p. 226). Ora, em Lacan não há ser sem significante, não há Coisa a não ser nos furos do simbólico. Para sermos fieis ao próprio lacanismo, trata-se de pensar que não é que o traço apaga a Coisa, mas que, porém, ele o faz enquanto apagada. De fato, o traço é a marca no real que impossibilita a relação do sujeito com a coisa, mas não por apagar essa relação, e sim porque ele a funda enquanto impossível (1):

Não basta supor que o traço não remete à coisa apenas por alguma dificuldade de estabelecer uma referência, pois do ponto de vista simbólico isso poderia ser contingente. Sob pena de nostalgicamente se preservar a coisa na forma da sua inacessibilidade, a diferença pura não deve ser tomada como um negativo do idêntico, mas como positivamente consubstancial ao traço (BAIRRÃO, 2003, p. 234).

O que limita o uso dos exemplos a uma mera ilustração do sentido do traço, e não a uma gênese fenomenológica da experiência dessa fundação da diferença.
Isso porque o traço não é apenas a demarcação da diferença no real, mas é a diferença enquanto tal, diferença pura: “quanto mais a diversidade das semelhanças se apaga, quanto mais ele suporta, mais um-carna [un-carne] – direi se vocês me passam esta palavra – a diferença como tal” (LACAN, 2003, p. 150-151). Ideia que coloca o significante mais perto da definição de ser a diferença em sua radicalidade do que ser o que os outros significantes da estrutura não são: “o significante é diferença entre diferenças, que só se definem como tais por definirem entre si o campo estrutural de suas relações” (SALES, 2008, p. 208). Ou seja, subverte-se a ideia levistraussiana de que o significante é diferença porque localizado na estrutura, já que, aqui, é porque o significante diz da diferença fundamental do traço que ele é o elemento de estrutura. É nesse sentido que podemos pensar a maneira lacaniana de negar a identidade formal A=A. Não se trata de dizer que o primeiro A não é igual ao segundo pois o primeiro diria de uma particularidade, e o segundo de uma característica geral que percorreria todos os A’s, tal como numa relação entre espécie e gênero. Em Lacan, A não é igual a A porque todo significante, a partir do traço, é, em si mesmo, diferença. Todo traço é sempre único, singular, um, que não é o Um que totaliza, mas o um, que é um da pura diferença, “que pressupõe a subsistência, ao lado dele, de 1 + 1 +1... [um, mais um, e ainda um], o mais estando ali apenas para manter a subsistência radical dessa diferença” (LACAN, 2003, p. 176).  Daí ser esta a função do traço unário,

Enquanto ela faz aparecer a gênese da diferença numa operação que se pode dizer situar-se na linha de uma simplificação sempre crescente, que está num propósito que é o que leva à linha de bastões, isto é, à repetição do aparentemente idêntico, que é criado, destacado, o que chamo não de símbolo, mas de entrada no real como significante inscrito – e é isso o que quer dizer o termo primazia da escrita, a entrada no real é a forma desse traço repetido pelo caçador primitivo, da diferença absoluta enquanto ela está ali (op. cit., p. 170).

“Inscrição no real”, “primazia da escrita”, pois o traço tem materialidade diversa da imagem acústica do significante: enquanto significante inscrito no real, é letra, suporte do significante (op. cit., p. 59) (2). Ou seja, o traço pode ser localizado entre o simbólico e o real, exatamente porque é “operação simbólica como separação e abertura do real” (SALES, 2008, p. 211), já que, enquanto diferença pura, abre o real ao produzir nisso, que antes era pleno e sem fissura, a possibilidade da diferença.
Quanto à dimensão diacrônica do significante, o conceito de traço permite pensarmos em duas frentes, da apresentação do significante na fala e da maneira como o sujeito se engancha na cadeia e realiza a passagem que definimos antes, nos termos do Seminário VI, do sujeito inocente ao sujeito do inconsciente. Da primeira, temos que o significante, em sua encarnação corporal, se apresenta como descontínuo pela fala: a interrupção no sucessivo o estrutura (LACAN, 2003, p. 325). O traço permite a Lacan enlaçar a descontinuidade com a diferença, trazendo a diferença para o campo diacrônico. Quanto à outra questão, o conceito de traço vem responder ao problema levantado por Safouan no que diz respeito ao narcisismo e à relação do sujeito com a alteridade. Pois, com o traço, Lacan encontra uma forma de enquadrar definitivamente o estádio do espelho no regime do simbólico: se desde o primeiro seminário não se tratava mais da criança com o espelho, mas de uma relação ternária da criança com o espelho e algo do Outro que sustentava a identificação imaginária, faltava à teoria concretude quanto a essa relação com o Outro, que agora ganha a forma de identificação simbólica com o traço unário desse Outro.

Lacan vai buscar essa ideia numa passagem bastante breve de Freud, quando discute os tipos de identificação em Psicologia de massas e análise do eu. Pensando na histeria como modelo, Freud nos descreve duas articulações do mecanismo da identificação: uma total, que trata da identificação ao desejo do Outro, e outra parcial, a partir de um einziger Zug, um traço único, ou unário. A manobra de Lacan é falar do primeiro através do segundo. Usando Dora como exemplo, sua tosse é pensada como o traço que a identifica com algo do pai, já que a tosse a coloca dentro da lógica oral em que consistia a relação desse pai impotente com a Sra. K: “em vez de sustentar uma escolha amorosa ela retoma aquilo que a liga ao pai pela via deste traço ‘a tosse’ que o representa” (DUNKER, 2003). Ao fazê-lo, Dora se coloca como aquela que faz consistir o Outro, pagando com a sua pessoa a sustentação do desejo do Outro paterno. Lacan retroage a identificação via traço unário até o momento fundamental de constituição do sujeito na linguagem. É esse tipo de identificação que sustenta a relação da criança com a imagem, ao assumir o lugar do ideal de eu que organiza o eu-ideal:

Não é outra coisa senão o fato de que é a partir de uma pequena diferença – e dizer pequena diferença não quer dizer senão essa diferença absoluta de que lhes falo, essa diferença destacada de toda comparação possível – é a partir dessa pequena diferença, enquanto é a mesma coisa que o grande I, o Ideal do eu, que se pode acomodar todo o propósito narcísico (LACAN, 2003, p. 171)

O que o esquema óptico já nos dizia era que a posição do olhar do Outro é quem assegurava à criança a identificação com a imagem especular. A novidade aqui passa por afirmar que essa presença do olhar do Outro dá à criança a constituição do ideal do eu, ao introjetar esse lugar do olhar na forma de um traço unário:

Este ponto, grande I, do traço único, este signo do assentimento do Outro, da escolha de amor sobre a qual o sujeito pode operar, está ali em algum lugar e se regula na continuação do jogo do espelho. Basta que o sujeito vá coincidir ali em sua relação com o Outro para que este pequeno signo, este einziger Zug, esteja à sua disposição (LACAN, 2010, p. 434).

Podemos ver que se trata de uma citação do Seminário VIII, e não do IX, por tomar o traço por signo, e não por letra. De qualquer forma, fazendo a devida correção, a ideia é clara: o lugar do olhar do Outro é esse termo simbólico primordial que aparece ao infans enquanto um traço com que ele se identifica (ou não, no caso da psicose), e que propicia, via estruturação simbólica, a maneira com a qual ele irá se relacionar narcisicamente com a sua imagem especular, enquanto eu-ideal.
            Assim, foi através de uma noção não ingênua da relação entre simbólico e real que pudemos tirar do conceito de traço consequências que consideramos mais interessantes do que a ideia de que o traço é o que apaga a coisa com a qual o sujeito se relacionava através do signo. Desse modo, pudemos ser mais rigorosos no que diz respeito às consequências que o conceito de traço traz para a noção presente desde o texto sobre o estádio do espelho, a respeito do ideal de eu, e que agora, a partir do Seminário IX, aparece de forma mais embasada logicamente.

NOTAS:

1. Boa parte dos comentadores não atenta a isso, e apenas repete a ideia de que “o traço apaga a coisa”, tal qual vemos com Rinaldi, que afirma que “se o traço apaga a Coisa (das Ding), dela restando apenas rastros, a passagem ao significante se dá a partir dos diversos apagamentos” (2008, p. 61).
2. “Aqui há uma revolução silenciosa de grandes implicações cínicas: estrutura da escrita e estrutura da linguagem não são a mesma coisa. Fica então justificada teoricamente, uma antiga metáfora empregada por Lacan para definir a própria clínica psicanalítica: um exercício de escuta sim, mas também um exercício de leitura” (DUNKER, 2003).

BIBLIOGRAFIA:

BAIRRÃO, J. M. O impossível sujeito: implicações da irredutibilidade do inconsciente, v. 1. São Paulo: Editora Rosari, 2003.
DUNKER, C. I. L. A importância da topologia na clínica da histeria: o problema da identificação. In: Revista de psiconanálisis y cultura, nº18, 2003. Disponível em: <http://www.acheronta.org/acheronta18/dunker.htm>.
LACAN, J. O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Porto Alegre: Associação psicanalítica de Porto Alegre (circulação interna), 2002. Disponível em:
 <http://pt.scribd.com/doc/64015482/O-Seminario-livro-6-O-desejo-e-sua-interpretacao>.
_________. O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
_________. O seminário, livro 9: a identificação. Recife: Centro de estudos freudianos do Recife, 2003.
RINALDI, D. O traço como marca do sujeito. In: Estudos de psicanálise, nº 31, 2008.
SALES, L. S. Determinação versus subjetividade: apropriação e ultrapassagem do estruturalismo pela psicanálise lacaniana. Tese (Doutorado). São Carlos: UFSCar, 2008.

 

 

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Número 29 - Febrero 2016
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