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No caminho desbravado por Clarice Lispector, Maria Lucia Homem traça sua trilha. Ai onde Clarice Lispector afirma que tudo que ela escreve é forjado no seu “silêncio é na penumbra”, Maria Lucia Homem vai anunciando sua própria trama, destacando sombras e jogando luz na produção da escrita literária daquela autora.
Quero lembrar aqui, com Lacan, que: “A única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, sendo-lhe esta reconhecida como tal, é a de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede e, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho”.( )
O que é bem conhecido da Maria Lucia Homem, na abordagem da sua matéria, focada no estudo literário e na leitura do corpus dos últimos três livros de Clarice Lispector : Agua Viva, A hora da estrela, Sopro de vida, em diálogo com noções fundamentais da teoria psicanalítica:inconsciente, sujeito, e as categorias lacanianas de Simbólico, Imaginário y Real. Aspectos da história, filosofia, estética, crítica literária são também convocados. Não se trata de uma biografia, mas da vida da obra-obra de vida, do que faz alguém viver, como Clarisse depõe em entrevista televisiva: “agora” – neste instante, porque não escrevo – “estou morta”.Fruto de um trabalho de doutorado, vira ensaio, explicitamente situado na interface psicanálise/literatura. Uma poética da leitura é implicita.( ).
A autora destrincha, num primeiro eixo, o par “silêncio/letra”, o silêncio como sendo não homogêneo. Mar de fundo da linguagem, o silenciado como vizinho conceitual do recalcado na psicanálise, e a incompletude das palavras no atravessamento desse oceano silencioso. “Esta forma de focalizar o silêncio coloca-o como fundador e polo necessário da lingaguem”. E, last but not least, uma analogia com o processo psicanalítico em que o sujeito do inconsciente, falante, torna-se “autor da sua própria escrita”.
No “embate entre o silêncio e a palavra”/ o silencio e a letra, expressão insistente neste ensaio, há o nascimento, a fundação da escrita em C. L. ( e também da M. L. H.) que leio como o percurso de uma borda, moebiana, de silêncio-palavra.
Apropósito de autor e autoria cabe salientar as indagações que atravessam o texto em relação a este tópico, para nada obvio em sua condição, em seu desenrolar histórico e seu estatuto atual.
A noção de autor, atualmente atrelada a um nome, nem sempre foi assim, e não resulta alheia às estruturas sociais, ao avanço do capitalismo e a decorrente propriedade intelectual sobre a produção, direitos autorais e as próprias características do que se entende hoje como autor. É justamente o autor como lugar de artifício, função-autor, revelada pela pena de Clarice.A questão da autoria, como segundo eixo determinante para o trabalho é retomada em sua vertente problemática, desde os primórdios do romance dito moderno.
É examinado o contexto histórico em que surge, entre os séculos XIX e XX, o questionamento da posição do autor como senhor da escrita, autônomo em sua determinação, dando lugar ao autor capturado na sua condição de sujeito do inconsciente, dividido pela linguagem, e ao aparecimento de uma literatura chamada “de buracos”. É especialmente posto em pauta por C.L., o momento preciso da autoria, a extração do fluxo da escrita das pedras do silêncio. Maria Lucia Homem pontua trechos da obra de Clarisse Lispector nessa região quase inefável, passagem e limiar a transpor desde o silêncio à letra, palavras introdutoras, aliás, do título do seu ensaio.
A obra de Clarise Lispector se presta aqui para a análise das diferentes posições, deslocamentos, presencia, ausência, em cada uma das obras citadas, de autor como autor-narrador, personagem, e até a inclusão do diálogo com o leitor. O entrelaçamento desses elementos em cada uma e no conjunto das três obras acima é escolha e contribuição de autora.É que justamente, pontua M.L.H.: o jogo da Clarice Lispector, favorece este questionamento pelo desdobramento das funções autor, personagem, e narrador apontando para a conquista de novos espaços na literatura contemporânea.
Agua Viva “o re-nascimento a partir da palavra” “busca sublinhar a forma de compor a escrita”. “na qual a linguagem está em jogo e funciona “quase” como personagem principal. A hora da estrela, enfatiza” o entrelaçamento de várias histórias narradas, e situando tanto a questão da autoria quanto sua relação com o lugar do narrador e da personagem como vertente norteadora para se tecer a estrutura narrativa”. Um sopro de vida, testamento de um autor, “propõe elementos para a discussão da hipótese central do trabalho, em que se dá vida ao autor, num embate com o silêncio” incommensurável “que, quase um paradoxo, rodeia a palavra”.
Maria Lucia Homen assume o risco de contornar esses confins. Contra Wittgenstein: “Aquilo que não se pode dizer, deve-se calar”, emerge o becketiano “não há nada a dizer, porém, é necessário continuar falando”.
Ensaio de interesse para psicanalistas, para clariceanos, instigante para aqueles que ainda não são... pelo enriquecimento das interfaces entre disciplinas e pelas extensões e desdobramentos a partir da psicanálise.Sara Elena Hassan
saraelenahassan@hotmail.com
São Paulo – Novembro 2012