Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O que escrevem as
fórmulas da sexuação de Lacan?

Sara Elena Hassan

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...c’est de s’apercevoir qu’il n'y a pas que la petite façon à soi de tourner la salade.
Jacques Lacan (1)

As fórmulas da sexuação de Lacan, transmitidas em sua forma acabada no Seminário XX, “Mais Ainda” (Encore), constituem uma escrita inédita até então na psicanálise. O que é que elas escrevem? Por que esta cifra para a sexuação? Escrita estabilizada mas ao mesmo tempo inacabada, incompleta,  inseparável de uma leitura, ou mais precisamente de uma enunciação, que é sua condição sine qua non: é necessário, no mínimo, comentá-la. A constância da escrita contrasta com a variabilidade e multiplicidade dos comentários e leituras.   

A seguir, a escrita das fórmulas da sexuação:

Fórmulas de la sexuación - Jacques Lacan(2)
                                                              
Este texto é uma abordagem introdutória de:

1. As fórmulas da sexuação como matema no ensino de Lacan e na transmissão da psicanálise.
2. A escrita do matema na perspectiva da relação da psicanálise com as ciências.

O matema da sexuação é, antes de mais nada, uma escrita de que Lacan se vale na transmissão da psicanálise, apresentada nos seus seminários por volta de 1971 (3). Esse termo envolve a formalização (4) de algumas noções psicanalíticas centrais, tais como “gozo”, “castração”, e “função fálica”, por médio de notações algébricas. Isto é, através de uma linguagem formal. Trata-se de fórmulas que escrevem os termos de uma estrutura e as relações deles entre si, ou também “operações e limites das operações” (5) .

Lacan deu várias definições diferentes do matema, entre 1971 e 1973, acompanhando essas variações algumas das vicissitudes do seu trabalho de transmissão, passando do uso do singular ao plural e vice-versa (6).

O matema se torna, ele próprio, uma noção desenvolvida principalmente no Seminário 20, Mais ainda , (Encore) (1972/73), e no escrito Aturdito, (L’étourdit)( 1972). A etimologia do termo “matema”, em grego (μάθημα) “lição”, “conhecimento” (7), parece mostrar uma das vertentes inspiradoras dessa invenção de Lacan. Segundo J. C. Milner (8), houve ascensão e declínio do matema (9). Essa gangorra não é um périplo, ou seja, uma travessia na qual o ponto final se encontra exatamente com o ponto de partida. Pelo contrário, houve deslocamentos e avanços em mais de uma direção, feitos pelo próprio Lacan e pelos seus leitores. Lacan chegou a estabelecer uma doutrina, ou teoria do matema.

Encontram-se (10)  reflexões sobre as notações algébricas  bem antes de esta escrita ter sido chamada de matema. Assim, Lacan não confere ao seu significante S (A) barrado o sentido do Mana, que remete, para C. Levi Strauss (11), ao efeito do símbolo zero.Lacan afirma tratar-se, no caso dele,  do significante da falta desse símbolo zero. Ele prossegue afirmando que se desvia dos algoritmos matemáticos para um uso próprio e menciona o seu uso do símbolo , também escrito como  i na teoria dos números complexos, que só se justifica – continuamos citando Lacan – por não aspirar a nenhum automatismo  em seu emprego subsequente. Isto é, Lacan parece sugerir que os algoritmos vão aparecer não apenas como os símbolos na antropologia estrutural, que ainda norteia suas referências,  ou na matemática.

Do mitema ao matema

Em considerações sobre a função e a forma do matema J. C. Milner (12)examina as implicações do matema como aspiração de transmissão integral de um saber, e sua adequação ao paradigma matemático: a matemática seria para o matema o que a fonemática é para o fonema.   Em termos estruturais, o  matema funcionaria, então, enquanto unidade mínima de conhecimento, átomo de saber.  Esse raciocínio é controverso (13) e introduz a questão das equivalências e relações entre as noções da psicanálise e os mitos, da psicanálise e as matemáticas, para mencionar apenas algumas formas de linguagem e disciplinas envolvidas.
Assim, cabe a pergunta sobre se os matemas da psicanálise são os mesmos da matemática.

Segundo Ana Vicentini de Azevedo (14) o mito é arranjo linguístico que dá lugar a prolíficos malentendidos. Segundo ela, para Freud, o mito grego, ao situar-se entre filosofia e religião, é uma metáfora para articular conceitos.

Dois mil anos depois da Grécia clássica, o que dizer dos matemas de Lacan? Se a intenção deste psicanalista foi captar em uma formalização aquilo que permanece sempre o mesmo ( um real), a tomar da/ na variabilidade de uma clínica que é do um por um, clínica do particular, os matemas lacanianos não suprimem, o equívoco do inconsciente (unbevue): o mal-entendido é teimoso e insiste colado à transmissão de letras e signos que se apresentam, em um primeiro olhar, como independentes das subjetividades.

Por sua vez, o relato mítico articula contradições enquanto o matema expõe a contradição integrada à escrita de modo fundamentalmente diferente que no mito. Com Lacan há uma revisão e subversão do princípio de não contradição, em vigor desde Aristóteles como o demonstram Cassin – Badiou (15).

Há quem considere o matema como a retomada de uma dificuldade, de um impasse, pelo viés de uma outra dificuldade não menor, mas relativamente manejável, com fins de ensino, transmissão e relançamento da psicanálise, por Lacan, cuja escolha singular vai se dar nos últimos anos do seu ensino pela via das formalizações lógicas e matemáticas.  Mas não como o único caminho ou estratégia, e isto por razões que têm a ver diretamente com a questão do inconsciente, como se verifica em textos como L’etourdit ( O aturdito), no qual nos é apresentada uma coexistência entre  matema e  escrita poética.

Por outro lado, (16) Lacan contesta a ideia de que o matema, enquanto intervenção de transmissão da psicanálise, seja algo que possibilite estilos. Ele afirma: “O matema não é, certamente, o que torna possível o estilo de cada um” (17). Mas prossegue dizendo que S (A) não é um matema, mas algo do estilo dele que se parece fortemente com os matemas da matemática (18). Oscilação ou contradição de Lacan?. O fato de não possibilitar o estilo de cada um implicaria, necessariamente, sua exclusão como sendo algo do estilo de Lacan, o que, de alguma maneira o coloca em posição de mestre?
Lacan vai responder, naquele momento das Jornadas, a colocação/ objeção do matemático Petitot, que acaba de questionar a identidade matemática dos matemas na psicanálise. O psicanalista francês afirma que ele produziu verdadeiros matemas. Ele considera o matema como elemento terceiro e algo que vai contra o equívoco ( bevue), que se faz entre ao menos dois.
Quais dois? Lacan parece se referir ao corpo próprio, por um lado, e àquilo que o “atrapalha” (encombre) , (19) ou seja, a função fálica própria da condição falante do humano.
Podemos concluir, então, que Lacan procurou o matema como escrita à mínima, sempre a mesma, mas que se diz sempre outra.

Como e por que o matema?

O matema é, segundo J.C. Milner , “uma proposição de saber”. É nesse saber, ou na salada dos saberes então, que se trata de remexer? Na data de 2/12/71 Lacan introduz, indiretamente, a partir do que ele chama de “incompreensão matemática” algumas definições do matema. Algo do saber matemático está em jogo, transportado por Lacan para a psicanálise. Parece óbvio o envolvimento do desejo de Lacan, diferenciado neste ponto da posição freudiana. Aquele toma, para a psicanálise, recursos da linguística, da lógica, das letras da álgebra e não das ciências naturais ( Naturwissenschaften),  presentes na época de Freud, como ideais de ciência.  Ainda cabe salientar, apesar disso, que Freud não abre mão de outros saberes que considera necessários na formação de um psicanalista (20) nem deixa de esboçar rudimentos da matemática e da física: o eu como superfície, análise com ou sem fim etc.

Para aquele que se dedica às conversas eruditas, fartas de sacadas geniais, de indicações luminosas, de erudição dominada, de audácias estilísticas, a proposição matematizada vai parecer opaca e esquelética”. “Ao mesmo tempo, elegante, organizada” (21).

Contudo, nas mãos de Lacan, a matemática não perde para as audácias de estilo (22) , como se comprova pelos efeitos criativos que ele próprio obtém, ou aqueles gerados nos seus leitores. Assim, a teoria matemática dos nós dá suporte às buscas do Lacan por articulações do tripé SRI: Simbólico, Imaginário, Real. O que não impede a escrita  do nó borromeano, no caso,  ter sido lida como escrita poética (23). Nesse sentido, a construção das fórmulas da sexuação, feita a partir de fragmentos migratórios de saber retirados da sua disciplina de origem, recompõe-se em uma escrita nova a ser uma e outra vez resignificada,  assimilável assim a um objeto de arte textual ou plástico.

O leitor de Lacan teria então a possibilidade de escolha entre a teoria matemática dos nós ou o escudo da família Borromeo, segundo suas preferências, ou mais precisamente segundo o sintoma de cada qual?

As fórmulas da sexuação são matemas. Segundo Le Gaufey (24), só elas podem ser consideradas verdadeiros matemas. “Matema primário”, para Milner, segundo veremos mais para a frente, apontam para um real fundamental na psicanálise, por circunscrever uma falha central no inconsciente, a “não- relação” sexual, em francês  “Il n’y a pas de reapport sexuel”. Outras escritas anteriores da álgebra lacaniana rondam a mesma questão articulando de modo mais simples noções da psicanálise (gozo) com recursos da lógica ( função, argumento, quantores, signo da negação).

Para Milner, o matema entra em cena no momento que ele chama de “segundo classicismo” de Lacan. O primeiro classicismo é norteado pela linguística estrutural e pela filosofia. O segundo é dominado pela matemática e pela lógica matemática.
Um horizonte de cientificidade permeia então esses achados de Lacan.  A psicanálise seria condicionada pela ciência, ou seja não e sem a ciência.
Mas Lacan tem uma teoria da ciência diferente da ciência ideal para Freud, que considera a ciência como um ideal externo ao próprio campo da psicanálise, dado, no caso, pela biologia e pela física. Ou seja: envolve da parte de Freud um “assentimento que ( ele) outorga ao ideal da ciência” (25). Lacan inverte a perspectiva e vai construir  “para a ciência um ideal da análise” (26). Assim, ele desloca o lugar da análise e a coloca como ponto ideal para pensar a ciência, para forjar uma epistemologia, a partir da psicanálise.

Na teoria da ciência, Lacan vai privilegiar as ciências da linguagem, num primeiro momento. Posteriormente serão as matemáticas, levando em conta o projeto  Bourbaki, de uma lógica matemática inerente à ciência. “A ciência estrutura de maneira interna a maneira mesma do seu objeto“ (27). No percurso que vai, em Lacan, do significante até chegar à letra, a ordem do matemático é considerada por ele não na sua condição de número, mas como letra.
Por sua vez, a doutrina do matema postula uma transmissão integral, dita “sem resto”, da psicanálise, dentro dos limites da existência da Escola de Lacan. Com a crise e a dissolução da Escola,  fez-se necessário re-situar o matema.  Esse “sem resto”, foi possível?. Refere-se a um enxugamento do imaginário, a uma poda dos resquícios do saber sabido prevalente no discurso universitário? O “integral” alude à inclusão conjunta de saberes diferentes? Novamente, a salada (dos saberes, no caso)...
O matema é uma fórmula, sempre a mesma. Diferentemente da episteme antiga, sua condição é inerente à ciência moderna: ela é despossuída de qualidades sem por isso  remeter às quantidades. A sucessão de letras é condizente com uma “matematização extendida” na linguística dos anos 20 do século passado, na qual se funda o “galileanismo extendido” (28). Isto é, uma ampliação da matemática. Essa matematização é  autônoma em relação ao aparelho matemático stricto sensu ( geometria, aritmética, álgebra, teoria dos conjuntos, teoria das estruturas e etc.

O matema em psicanálise preserva a cada evento a mesma escrita, mas é sempre potencial e efetivamente diferente pela enunciação que a acompanha (comentários, leituras). Ele também não se segue a uma dedução. É isso que permite a Lacan marcar uma diferença em relação à escrita de fórmulas científicas pelo fato de incluir o incalculável, o imprevisível de uma enunciação.  Guy Le Gaufey, por essa razão, parece considerar as fórmulas “não galileanas" (29), em sentido estrito.

Uma doutrina explícita do matema modificou a relação que Lacan mantinha com a matemática e com a matematização (30), na medida em que se propôs assegurar a transmissão integral de um saber, e adequar-se ao paradigma matemático.
A questão do paradigma ( do grego “paradeigma”= etimologicamente, “modelo”) da transmissibilidade na matemática que norteia Lacan nesse momento é por conta da letra, não da quantidade. A letra porta algo de positivo, é idêntica a si mesma, diferentemente do significante que envolve pura relação. A letra faz nó: é suporte de relações entre elementos, faz laço, vínculo. 

Retomamos, então, algumas das condições/propriedades do matema, sem por isto pretender esgotá-las:

1.No matema, Lacan toma tudo do modelo matemático, exceto a dedução. Ele não se deduz de nenhum outro matema, nem outros são deduzidos dele. A procura do passo a passo na construção das fórmulas por parte de Lacan, como faz Guy Le Gaufey (31) no seu livro “O nãotodo de Lacan”, torna-se, então, um modo de lê-las, não como uma escrita enigmática, mas como produto de uma série de decisões tomadas na direção de situar o feminino, o “nãotodo” que escapa à lógica fálica,  em convergência com o discurso da psicanálise.

2.O matema se propõe como um cálculo local , que lemos aqui como circunscrito, delimitado, limitado a um fragmento de escrita. O local, então, é contraposto ao global ou seja ao conjunto integrado das proposições. Quais as relações, no caso, entre local e global?  Não há dedução nem integração de uma escrita para outra.

3. O matema é “matriz de proposições empíricas”, ou seja, aquelas que têm a ver com os fenômenos e a experiência. Para Barbara Cassin, as fórmulas lacanianas, tal como os silogismos no domínio do sentido, “são os apoios – lês béquilles – que permitem, efetivamente, ao analista se movimentar e ser performativo no “au-sentido” (aspas minhas) onde ele é solicitado” (32).

4.No matema, o cálculo prevalece sobre a demonstração ( matemática?) e até entra como elemento diferencial em relação a esta. Como entender aqui o que é cálculo? Cálculo remete, historicamente, a uma pequena pedrinha utilizada para marcar as operações sobre números e símbolos algébricos na matemática ou na lógica. O cálculo, a pedrinha é uma condensação química (em medicina) e também em linguística. A pedra do matema é que algo da ordem do não-todo insiste contra a intenção de uma transmissão “sem resto”, na medida em que o equívoco acaba sendo re-introduzido no comentário das fórmulas.

A demonstração matemática ou prova é um argumento dedutivo para uma afirmação matemática. O argumento pode usar afirmações estabelecidas ou teoremas e também seguir o rastro ate chegar a afirmações aceitas, os axiomas. Uma prova deve demonstrar que uma afirmação é sempre verdadeira. Uma afirmação não provada, que acredita-se ser verdadeira, é o que se conhece como conjectura. Entendemos então que os matemas de Lacan não se ajustam totalmente nem ao teorema nem à conjectura: não se trata, neles, apenas do verdadeiro mas do real na psicanálise que, por definição, escapa.

A busca de Lacan, norteada pela novidade da colocação do projeto Nicolas Bourbaki, é a de um pensamento que não responde e até passe a ser disjunto de critérios e regulações imaginários e qualitativos do pensamento. Trata-se de um quantitativo diferente, sem o número ! (33).

Para Milner, só há matema a partir do “Aturdito” ( p 146, 1996), texto que se articula ao Seminário XX, Mais Ainda, (Encore), onde se encontra a escrita final das fórmulas da sexuação. Milner chama essas escrituras de “matema primário” porque “a psicanálise diz só uma coisa, sempre a mesma, há algum sexo” (34) ( p 147, 1996).

No seu artigo sobre Lacan e as matemáticas, Guy Le Gaufey afirma que os efeitos de matema não têm tido incidência sobre outras disciplinas, mas apenas sobre os leitores lacanianos do circuito mais próximo. O mesmo psicanalista afirma que o aforismo lacaniano “não há relação sexual” não pode ser lido exclusivamente como uma consequência da matematização da sexuação e que haveria razões históricas para isso, mas não vou desenvolvê-las aqui. Vou apenas salientar uma nuance moral que a palavra “aforismo” carrega.  Argumenta aquele psicanalista que é a palavra de Lacan que prevalece, e o aforismo ganha força e eficácia pela autoridade de quem a pronunciou (35).

Nessa mesma vertente crítica, Guy Le Gaufey se pergunta pelas transformações operadas na introdução da teoria matemática dos nós para a psicanálise. Assim, na escrita lacaniana do nó borromeano, RSI são letras capturadas numa lei real (36), e não apenas iniciais de nomes, Real, Simbólico, Imaginário, como inicialmente na obra de Lacan . Para o autor acima, é por uma espécie de intuição homológica que  Lacan produz as correspondências dos registros por ele cunhados com os nós (borromeanos). Interroga-se, a seguir, se isso é condição suficiente para dizer que as propriedades daqueles sejam extensíveis a estes.

Como situar então, em relação às fórmulas da sexuação, o aforismo lacaniano “Não há relação sexual”? As fórmulas são cronologicamente posteriores ao aforismo, e permitem fazer leituras em après –coup para questões da psicanálise tais como os discursos, os tempos da cura, o final da análise etc. De modo mais abrangente permitem se aproximar de fenômenos sociais contemporâneos que questionam modos tradicionais de abordagem da sexualidade.
Matema é um ponto de chegada que nada diz da sua construção, dos materiais a partir dos quais ele foi feito. Eis uma das preocupações de Guy Le Gaufey que o leva a realizar  uma pesquisa minuciosa e uma leitura da construção do que pode ser chamado de “novo prosdiorismo” (37), o “nãotodo” das fórmulas, embaixo à direita, fazendo então uma análise dos passos que levaram Lacan até a formulação final. Construção é diferente de dedução.

Uma ambição de transmissão integral própria do matema, o que quereria dizer? Algo da transmissão da psicanálise excede  o modo universitário de ensino e anuncia o debate sobre o que do discurso psicanalítico poderia ser “integrado” ao ensino universitário. O excesso é o indicado pelo matema, que envolve incompletude e sugere o impossível de se escrever, um real. Ao mesmo tempo, a escrita do matema aparece como artifício para tentar circunscrever o sentido: ele é preciso, equilibrado, quer eliminar os equívocos da língua, que por outra parte, são restituídos no momento da sua leitura. Esta é feita no contexto em que foi produzido e a partir do discurso em que foi concebido. É por isso que as letras do matema acabam sendo não congeladas nem vazias.
Com o matema aparece também uma vertente política, que remete à possibilidade e ao mesmo tempo à crítica da transmissibilidade da psicanálise na universidade.

Cientificidade da psicanálise

Podemos reconhecer vários momentos e posições de Lacan em relação à cientificidade da psicanálise (38)

Numa primeira posição a psicanálise é subsumida na ciência. Na trilha freudiana, Lacan vai até o Seminário XI e os Escritos ( A ciência e a verdade), onde ele escreve “sujeito da ciência psicanalítica”. Mas, qual ciência?  Ainda no mesmo Seminário afirma  a ciência ter sido ,no início, “uma técnica sexual”, um tanto de gozo mental.
Segundo momento de resposta: trata-se da ciência conjectural, paradoxal maneira de responder à possibilidade do encontro com a verdade, da qual o saber se distingue, localizando assim os dois polos do experimentado pelo sujeito da divisão entre o saber da verdade e o Real. Há, então, conjectura, e não certeza. O conhecimento resulta, então, barrado.
Terceiro momento de giro reflexivo: “a ciência é uma ideologia da supressão do sujeito” ( Radiofonia, 1970). A psicanálise, segundo citação de GLG está construída como um delírio à espera da cientificidade? (39)  Que tempo de espera seria esse, entre um delírio e a cientificidade?
O matema aparece então como trompe l ‘oeil, engana olhos na medida em que, num primeiro olhar, faria confundir uma fórmula científica com este outro tipo de “formulas”, chamadas “da sexuação”. ...Ou seja, há, para a ciência, uma posição do sujeito: ele fica de fora. Isto é, para fazer a ciência possível é necessário que o sujeito fique, de algum modo, excluído ou mais especificamente,  foracluido (40). Nesse sentido a psicanálise tem um lugar reservado para si na história das ciências, na medida em que denuncia esse lugar e posição de exclusão. A inclusão é, até certo ponto, operada quando o  psicanalista inclui o cientista em um discurso próprio, o discurso psicanalítico.
Quarto momento: Seguindo a demonstração de Karl Popper, Lacan conclui que a psicanálise não é uma ciência, porque suas proposições não são refutáveis. Define então a psicanálise como uma prática da palavra, em francês bavardage, que Lacan associa com babar, cuspir, salpicar” um “papotage” (41). Em “Momento de concluir”, seminário do 15/11/77 Lacan sustenta que é pela série/ pelo sério de consequências (42) da prática da palavra que deve-se levar a sério a psicanálise, ainda que não se enquadre nas condições de uma ciência formuladas pelo filósofo acima.
Após Lacan, embates e debates atuais em relação ao que é ciência e a tendência a considerar como tal “aquilo que o cientista faz” relativizam critérios anteriores e abrem um espaço para o consenso da comunidade científica, ou seja, para a incidência direta de um coletivo na definição de ciência.

Pelo matema, apresenta-se algo assim como uma faísca de ciência a falar no âmago da psicanálise sem deturpar, entendo, e até fazendo valer o discurso próprio desta. Depende porém de como o sujeito poderá se colocar perante essa possibilidade.

Novembro 2013
saraelenahassan@hotmail.com

Notas

(1) Lacan, Jacques, palavras de fechamento das Jornadas da Escola Freudiana de Paris sobre os matemas da psicanálise, nas Cartas da Escola. Journées de l’École freudienne de Paris : “Les mathèmes de la pychanalyse” nas Lettres de l’École, 1977, no 21, p. 506-509. Nossa tradução: ...“da para perceber que nada mais há que o pequeno modo próprio de remexer a salada”.

(2) O traço – da negação é para se colocar, preferentemente, acima e não à esquerda dos quantificadores , bem como de .

(3)  Em 4/11 e 2/12//71, segunda aula do Seminário “...ou pire”. Lacan fala da sua intenção de introduzir uma fórmula para “Il n ‘y a pas de rapport sexuel”.

(4) Formalização: é um tipo de sistema lógico-dedutivo constituido por uma linguagem formal, uma gramática formal que restringe as expressões corretamente formadas por dita linguagem e as regras de inferência, e um conjunto de axiomas que permete encontrar as proposições deriváveis de ditos axiomas. Linguagem formal, é uma linguagem cujos símbolos primitivos e regras para unir esses símbolos estão formalmente especificados ( fonte: internet em Wikipedia, 2/11/2-13).
Em Brunschwig, J., lido por Lacan, podemos ler as incidências do formalismo. Para àquele autor, “A adoção de um simbolismo enteiramente artificial não é, com efeito, mas que um meio de satisfazer a exigência essencial do formalismo que é, para retomar ainda os termos de Lukasiewicz, a seguinte:” “O formalismo requer que o mesmo pensamento seja sempre expresso por meio de uma série de palavras exatamente a mesma, ordenado de uma maneira exatamente a mesma. Quando uma prova é posta em forma  segundo esse princípio, estamos em condições de controlar a validade sobre a base de sua forma exterior somente, sem fazer referência à significação dos termos empregados na prova”. A seguir “Nada impede em princípio, de fazer da linguagem natural um uso formalista…
 Lukasiewicz está se referindo aqui ao uso, pelo Aristóteles, desta linguagem que leva em conta o significado das palavras, a diferença dos símbolos da linguagem formalista .Versão para o português da autora: "La proposition particulière et les preuves de non-concluance chez Aristote", em Cahiers pour l’Analyse 10 , p.3-4.

(5) Pinheiro, Luiza Elena: comunicação. Inédita, São Paulo, 2013.

(6) Apud. Elisabeth Roudinesco, 1997.

(7) Fonte internet, Wikipédia, 1/11/2013

(8) Milner, J.C. La Obra clara, Manantial, Buenos Aires, 1995

(9) Milner, J.C. ibid

(10) Lacan, J. “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo”,  p. 821 ; 1960, em Escritos, adendos ate 1971.

(11) Palavra-mana, segundo C. Lévi -Strauss, se refere a palavras sem referente nem sentido precisos, dando-lhe o nome de significantes flutuantes, sem correspondência com um significado ou com significados precisos , com valor simbólico zero. A literatura, entre outros, aproveita esta brecha, energética sem dúvida, entre significante e significado.

(12)  J.C.Milner, ibid p.130.

(13) Roudinesco, E. e Plon M., Dictionnaire de la Psychanalyse, 1997.p 667 da edição em alemã. Os autores colocam o termo “mitema”, unidade do mito para Lévi Strauss, na origem do termo “matema” em Lacan.

(14) Ana Vicentini de Azevedo, Mito e Psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2004.

(15) Badiou A. e Cassin B. Os autores revisitam o método da refutação de Aristóteles pelo qual ele práticamente implanta o princípio em questão. Il n’y a pas de rapport sexuel, Ouvertures, Fayard, 2010.

(16) Lacan, Jacques,  Le style de chacun, ce n’est certainement pas le mathème qui le rend possible. Jornadas de fechamento sobre os matemas da psicanálise, 1977.

(17) A versão do francês para o português é da autora.

(18) Jornadas dos matemas, 1977.

(19) Encombre, é ipsis litteris, o termo, que aqui consideramos ironico, de Lacan no original.

(20) Freud, S. Sobre o ensino da psicanálise ( 1918-1919): Al investigar los procesos psíquicos y las funciones mentales el psicoanálisis se ajusta a un método particular, cuya aplicación en modo alguno está limitada al campo de las funciones psíquicas patológicas, sino que también concierne a la resolución de problemas artísticos, filosóficos o religiosos, suministrando en tal sentido múltiples enfoques nuevos y revelaciones de importancia para la historia de la literatura, la mitología, la historia de las culturas y la filosofía de las religiones. Por consiguiente, dicho curso general habría de ser accesible asimismo a los estudiantes de estas ramas de la ciencia. Edición electrónica Nueva Helade.

(21) Milner, J.C., “Para quien se dedica a las conversaciones eruditas, rebosantes de atisbos geniales, de indicaciones luminosas, de erudición dominada, de audacias estilísticas, la proposición matematizada parecerá opaca y esquelética.” p. 29, La Obra Clara, Manantial, Buenos Aires, 1996.

(22) Orellana, Jorge Baños: questões sobre o estilo de Lacan são amplamente desenvolvidas pelo autor em “El idioma de los lacanianos”, Editorial Atuel, Buenos Aires, 1995.

(23) Assim o fez Jonathan Scott Lee, autor americano, apud. Roberto Harari, Amorrortu Editores, 1996 em Como se llama James Joyce? p.23

(24) Guy Le Gaufey, Lacan et lês mathematiques. À la recherche de un roc de la pensé”, em Les mathemes lacannienes. Essaim 28, 2011 Essaim, Revue de Psychanalyse 28, Printemps 2012.( www.essaim.net/), em 2013. Este texto, e “El notodo de Lacan”,Ediciones literales, El cuenco de plata, Buenos Aires, 2007,  foram referências fundamentais na orientação do presente artigo.

(25) Milner, J.C., p 37, 1996

(26) Milner, J.C.,  p 39, 1996

(27) Milner, J.C., p. 38, 1996

(28) Milner, J.C., p. 99, 1996

(29) Le Gaufey, G. Não passiveis de redução e cálculo. Ibid 2011.

(30) 1996, p. 129-130

(31) Le Gaufey, Guy, El notodo de Lacan, Ediciones literales, El cuenco de plata, Buenos Aires, 2007. A questão de como as fórmulas foram construídas praticamente atravessa o livro citado.

(32) Badiou, A e Cassin B. em “Il n ‘y a pás de rapport sexuel”, p. 59, Fayard, 2010

(33) 1996, p. 143

(34) 1996. P, 147

(35) Seminário de 2012 em Buenos Aires, sobre “Não há relação sexual”.

(36) 1996. P  148

(37) Prosdiorismos, em Aristóteles: Todo, Algum, Nenhum.

(38) Feinsilber Edgardo, De la cientificidad conjetural al  psicoanálisis poético. Comunicação CEG, Paris 2010. Fonte internet,  em francês. De la scientificité conjecturale à la psychanalyse poétique - Colloque de Chengdu- China, 2006

(39) Le Gaufey, G.Les mathemes lacannienes. J. Lacan, citação por Le Gaufey, “Le Sinthome, séance du 11 jan,  1977”.

(40) Foraclusão: termo específico de Lacan para as psicoses, com sentido de expulsão / exclusão é ampliado nos últimos seminários.

(41) Neologismo da autora condensa “papo”, na gíria do Brasil, “conversa”, e “potage”, em francês, espécie de sopa, no caso, feita de palavras.

(42) Lacan, J. “Momento de concluir”, seminário do 15/11/77.

Agradecimentos a Luiza Helena Pinheiros, Ana Vicentini de Azevedo e Joanita Mota pela leitura e revisão do português.

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Número 28 - Febrero 2014
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