Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura

As origens do tema da linguagem en Lacan:
a tese de 1932

Christian Ingo Lenz Dunker

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Capítulo 6 del libro
"A psicose na Criança. Tempo, Linguagem e Sujeito",
de Christian Ingo Lenz Dunker

As idéias de Lacan acerca da psicose  bem como sua estreita relação com sua concepção de linguagem serão abordadas aqui de modo um pouco mais sistemático do que o fizemos no caso da obra de Freud. Nosso objetivo é mostrar como o tema da linguagem possui em Lacan uma múltipla serventia. Vem solucionar, na verdade, um conglomerado de problemas teóricos e clínicos. Por isso acompanharemos a evolução das posições de Lacan, especialmente no período que vai da tese de 1932 ao texto de 1958 sobre a Questão Preliminar (1958a), de modo a destacar como a pura identificação da linguagem à concepção saussureana e estruturalista de linguagem não é nem necessária nem suficiente para captar o eixo central das teses de Lacan. O primeiro passo é então situar a aparição do tema da linguagem no interior das reflexões psiquiátricas de Lacan; o que nos reenvia, de certa forma, ao nosso ponto de partida acerca da descrição clínica.

A tese de doutoramento apresentada em 1932 por Lacan pode ser entendida como uma tentativa de aproximar  as tradições francesa e alemã de psiquiatria. Seu título "Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade" (1932) agrega uma entidade clínica cujo paradigma descritivo e nosológico fora fixado por Kraepelin (especialmente nas edições de 1899 e 1915) (1) e um tema que se encontra nas próprias raízes da psiquiatria francesa: a personalidade. Ao longo de toda a tese, vemos Lacan criticar a falta de uma teoria da personalidade mais consistente nos alemães e a falta de uma atitude descritiva mais consistente nos franceses.

A definição de personalidade apresentada por Lacan é na verdade uma reunião dos pontos críticos da psiquiatria do século XIX (a história individual, o sujeito da vontade e o eu transcendental). Lacan pretende a inclusão na psiquiatria de uma noção de personalidade que contemple três dimensões:

"1. um desenvolvimento biográfico definido pela evolução das relações de compreensão;
2. uma concepção de si mesmo definida pelo progresso dialético dos ‘ideais de si mesmo’;
3. uma certa tensão das relações sociais definida pelos elos de participação ética." (p.31)

É porque a personalidade é compreensível a partir de seu desenvolvimento singular que ela é a cada momento o lugar de síntese e de unidade. É porque ela é intencional que ela depende de uma concepção de si mesmo. E é porque ela é o fundamento da responsabilidade que ela só pode ser compreendida à luz da dimensão ética. Lacan desvia-se assim da idéia de que a síntese pessoal é um sentimento e de que a intencionalidade depende de uma consciência individual e unificada (p.32). A personalidade assim definida mostra-se homogênea aos três pólos do delírio pois de acordo com Kraepelin o delírio possui: uma evolução insidiosa (um desenvolvimento); que oscila do engrandecimento do eu  (a concepção de si mesmo); ao sentimento de perseguição (a tensão das relações sociais).

Lacan lê as concepções  de Kraepelin acerca da psicose como uma contínua aproximação da tese da psicogênese. Para o fundador da psiquiatria moderna a personalidade seria um fator a considerar (especialmente na paranóia). Todavia a própria psicose dependeria da introdução de um elemento heterogêneo a esta personalidade ao qual esta deveria como que se adaptar. A personalidade não é ela mesma a origem do delírio (p.50).
A versão francesa do problema, representada por Serieux e Capgras, não admite essa descontinuidade entre a psicose e a personalidade. Uma conteria pré-figuradamente a outra: "O plano do edifício não muda mas suas proporções aumentam." (p.57).  
Ou no dizer de Dromard:  "A paranóia não é verdadeiramente um episódio mórbido: ela é o desabrochar natural, e de um certo modo fatal, de uma constituição" (p.62)

É, por confiar nesta continuidade que a descrição do desencadeamento será sobrevalorizada pelos franceses. A psicose dirão, se insinua sorrateiramente sob a forma de um estranha inquietude acrescida da recusa de certos pensamentos, segue-se a discordância e a dúvida. Finalmente, a idéia se transforma em uma sensação e desta gera-se a certeza, a sistematização do delírio e a paixão delirante. O sujeito é então completamente movido pela interpretação e pela reação passional (p.55).
A idéia da constituição mostra-se portanto interessante a Lacan enquanto focaliza o desencadeamento  e dos sinais que o antecedem ("o desabrochar"). Entretanto, ela é uma camisa de força teórica quando, na falta de uma teoria da personalidade, os critérios descritivos não se sustentam . Qual seria afinal a "constituição paranóica" ? A psicorigidez, proposta por Montassut ? A desconfiança e a falsibilidade do juízo, nos termos de Serieux e Capgras ? A erotomania de Clearambault ? O bovarismo de Gaultier ?

Os franceses experimentam aqui, em outros termos, o mesmo problema metodológico dos alemães, isto é, como classificar e organizar significações ? No caso alemão esse problema toca o entendimento das formas delirantes; no caso francês a ênfase se dá na diversidade dos temperamentos humanos. Porém em ambas as tradições não se consegue encontrar o limite entre aquilo que seria propriamente uma descrição (universal, não contingente etc.) e aquilo que já é uma interpretação.  Trata-se, neste momento, de encontrar uma espécie de ponto fixo para a descrição clínica, algo que possa garantir as relações entre o modo, o meio e  a natureza do objeto descrito.

O problema chega a Lacan quando este nota que se define a psicose por uma disposição à interpretação mas em nenhum lugar  se consegue dizer qual é a diferença entre a interpretação normal e a interpretação delirante (p.61). Isso constitui simultaneamente um problema clínico e epistemológico, problema este percebido da seguinte forma por Lacan:

"Um delírio, com efeito, não é um objeto da mesma natureza que uma lesão física, que um ponto doloroso ou um distúrbio motor." (p.97)

Lacan reconhece a emergência de um elemento não integrável à personalidade na irrupção do delírio mas discorda em atribuir a  este elemento um estatuto orgânico. Em outras palavras, o que surge como estranho a personalidade é um fato de significação, não um fato de matéria. O lugar desse evento de significação só é compreensível à luz da biografia do sujeito daí; sua textura histórica.  Aqui, sua posição começa a se aproximar de Jaspers e da psicopatologia compreensiva alemã.  Jaspers ampliara a tese Kraepelineana do elemento heterogêneo afirmando que este representaria o início de um novo "processo psíquico" o que  seria plenamente compreensível à luz da personalidade (p.137). A compreensibilidade do processo psíquico e das reações nele contidas introduz um novo paradigma na psiquiatria. A partir dele ganha importância, pela primeira vez, o estatuto próprio e singular da significação. Não se trata mais de saber apenas quem fala no delírio (o caráter mórbido, a constituição patógena), nem o que fala (o distúrbio de memória ou do pensamento) mas de saber como se fala no delírio a partir de um princípio interno e não externo. Junto com este paradigma abre se para Lacan a possibilidade de traduzir questões e descrições psiquiátricas ao campo da psicanálise.

O paradigma geral de Lacan deriva de Jaspers, da idéia de que a psicose pode e deve ser compreendida porque é uma alteração das relações de compreensão entre processo e desenvolvimento. O paradigma específico, contudo, está muito mais próximo de Kretschmer. Kretschmer postula uma tipologia que não é nem fundada no inato, como a dos alemães,  nem fixa e moralizante como a dos franceses. Além disso sua teoria conjuga três dimensões bastante compatíveis com a teoria da personalidade proposta por Lacan (p.91). Para Kretschmer, há que se considerar ao mesmo tempo o caráter (primitivo, expansivo, astênico ou sensitivo), o acontecimento vivido (os conflitos ético e tensões sociais) e o meio social;  de forma que o delírio se origina da ação cumulativa de : "... experiências típicas sobre uma disposição de caráter típica com a frequente contribuição de uma constituição social típica." (p.87)

Além disso, Kretschmer é partidário da psicogênese e é um dos primeiros psiquiatras a propor mecanismos propriamente psicológicos com intenções explicativas (a repressão e a inversão). Assim como Bleuler e Gaupp, Kretschmer confere amplo valor à idéia de que a psicose (em particular a paranóia) é uma forma de reação da personalidade a um momento crítico de seu desenvolvimento. Esse momento, bem como a descrição dessa reação se mostram então compatíveis com a dedicação francesa, e não ausente em Lacan ao tema do desencadeamento.
É particularmente atual a discussão que Lacan trava com os partidários de uma determinação orgânica das psicoses. No caso francês, tal hipótese  se traduz pela idéia de "automatismo mental", no caso alemão pela de "processo mórbido" (p.100). A hipótese do "automatismo mental" defendida por Ribot e Hesnard, supõe que na raiz do sentimento psicológico do eu individual residiriam certas sensações (proprioceptivas e enteroceptivas). A psicose seria uma perturbação dessa cenestesia que chegaria à consciência de modo deformado, produzindo assim um eu deformado: a despersonalização, a inibição, a depressão, o sentimento de influência e estranheza. Lacan observa que esta hipótese subsume uma espécie de "simbolismo natural" e que se encontrará em toda teoria que vise apreender funções de significação (como o delírio ou o caráter) a partir  de mecanismos destituídos de significação (como o genético, o neuroquímico etc.).

Isso significa, se estendemos o comentário de Lacan, que nunca se poderá ligar bi-univocamente um ponto do mecanismo orgânico (leia-se eletro-químico) com um ponto de significação. Ora, isso não decorre nem de uma teoria neuroquímica nem de uma teoria psicológica, mas de uma teoria sobre a linguagem que deve refutar ou comprovar a tese do simbolismo natural. A idéia do simbolismo natural aparecia à psiquiatria francesa em noções que procuravam explicar a psicose a partir do tônus nervoso intracerebral (Guiraud), de um neoplasma mental (Mignard e Petit) ou do problema cerebral (Wernicke). Do outro lado havia os que apostavam na existência do simbolismo natural mas que este se encontraria alterado na esfera do símbolo, dos modos de representação, e não na esfera da  natureza  ao qual este supostamente se liga (2).
O interesse inicial de Lacan pelo tema da linguagem, manifestado já no estudo sobre as esquizofasias de 1930, inscreve-se portanto no debate com esse "simbolismo natural" suposto pela psiquiatria que lhe era contemporânea. O simbolismo natural é uma tese que perpassa a psiquiatria  no seu interesse em se firmar como disciplina científica (3). O problema clínico que subjaz a isso é a tentativa de explicar porque, num certo momento, sob certas condições da personalidade, o sujeito psicótico é tomado por uma "significação pessoal", pela impressão de que se está eminentemente visado, tomado num acontecimento, numa imagem ou numa palavra; “significação pessoal" que se mostra na desconfiança, na certeza ou no estranhamento do mundo; "significação pessoal" que leva a uma ação que lhe procura corrigir o sentido; finalmente "significação pessoal" que se mostra na própria relação do sujeito com a linguagem, onde:

"Predomina a interpretação sob formas verbais: alusões verbais, relações cabalísticas, homonímias, raciocínio por jogos de palavras (...) Da consonância das palavras ou de seus fragmentos brota uma certeza indiscutida, que o doente não tenta coordenar logicamente os processos mentais." (p113)

No caso Aimée, Lacan vasculha as origens dessa "significação" pessoal à luz de suas premissas. Em linhas gerais, trata-se de mostrar como a agressão de Aimée, dirigida à uma conhecida atriz francesa (Sra. Z.), pode ser compreendida em face da sua conjuntura delirante e de como esta pode ser compreendida a partir de uma teoria da personalidade cujo fundamento é a psicanálise.

Aimée justifica o atentado alegando que seu filho se encontrava ameaçado (p.154). O elemento ameaçador é reconstituído por Lacan a partir do testemunho oral e literário de Aimée. Ele corresponderia sucessivamente à Sra. Z, a uma amiga e à própria irmã que a houvera, de certa forma, destituído de sua função materna. Lacan observa que se trataria de uma identificação iterativa entre esses elementos perseguidores, isto é, cada um deles introduz algo de novo modificando os motivos da perseguição e acrescentando uma nova figuração feminina. A biografia de Aimée revelara que ela efetivamente perdera um filho e que também sua mãe passara por isso sob circunstâncias particularmente trágicas (o filho caíra no fogo). Aimée parecia se defender de uma repetição que, por outro lado era provocada pelo seu próprio delírio.
Tenta então publicar seus escritos como forma de intimidar seus perseguidores. Paralelamente desenvolve um delírio erotomaníaco cujo centro é a figura do príncipe de Gales, a quem escreve em apelo. O fracasso dessas tentativas se combina com a leitura de um jornal onde se destaca a presença da Sra. Z em Paris. Pensa ouvir comentários sobre a atriz de suas colegas de trabalho. Conclui então que ela, a Sra. Z, é a responsável por suas agruras e que ela tenta roubar seu filho. Dirige-se então ao teatro onde ataca a atriz com uma faca.
Lacan destaca como  ponto central dos fenômenos elementares a disposição à interpretação. É a partir dela que se enredam o sentimento de estranheza do mundo (que ocorre quando ela estava amamentando), o deja vu, a adivinhação de pensamentos e a ilusão de memória (tinha lido no jornal que iam matar seu filho)(p.211). Lacan parece situar num segundo plano a presença de estados oniróides e os "distúrbios de incompletude da percepção", bem como a alucinação auditiva, presente duas vezes e cujo conteúdo é: "Polícia".
A interpretação (como fenômeno elementar) é entendida como um "distúrbio primitivo da percepção" (p.207) o que não deixa de ser paradoxal. O que se insinua aqui é a idéia de que o processo interpretativo comanda e seleciona a percepção o que se opõe a posição da psiquiatria kantiana de que a própria percepção estaria comprometida e que a partir daí o processo interpretativo seria uma forma de corrigir e compensar este falso percepto.

A interpretação traria consigo uma alteração da própria temporalidade. É, por intermédio disso, que ela pode ser lida como uma perturbação da percepção e da memória:

"Dentre esses sentimentos reguladores há os que se referem ao tempo; eles estão ligados essencialmente à eficácia da síntese psíquica que realiza o momento presente em seu alcance para a ação"(p.213)

Essa alteração é captada nos relatos dos familiares que descrevem Aimée na infância, marcando que ela estava sempre atrasada (no sentido não metafórico) em relação aos outros (p.219). Lacan nota o mesmo traço presente na "abulia profissional” na "ambição inadaptada" presente em Aimée (p.211), bem como nas "demoras da ação"e nas "perseverações" (p.229).

A interpretação (como "significação pessoal") será o conceito chave para a passagem à psicanálise. De fato, ela possui uma ambiguidade de apreensão (entre o subjetivo e o objetivo) que responde bem ao modo como Lacan pensa a psicanálise:

"O mérito desta disciplina é nos ter dado a conhecer estas leis, a saber: aquelas que definem a  relação  entre o sentido objetivo de um fenômeno de consciência e o fenômeno objetivo a que corresponde." (p.248)

A crer nesta afirmação Freud teria inventado não apenas uma forma de considerar processos psíquicos  mas a relação efetiva destes com o mundo, isto é, uma nova teoria do conhecimento. Ele teria restaurado assim o ideal que subjaz o kantismo psiquiátrico, o de reparar suas falhas com o aperfeiçoamento de sua epistemologia. Freud, no dizer de Lacan teria encontrado a "semântica dos comportamentos e fantasias representativas " (p.327).

O entendimento metapsicológico do  processo interpretativo de Aimée é comandado por dois conceitos: o superego e a fixação narcísica do objeto. Lacan caracteriza a paranóia de autopunição, presente no caso, como determinada pelo imperativo superegóico. É a obediência a uma lei, tornada insensata, o que move as ações de Aimée. Ela deve defender seu filho. Apesar disso deixa de oferecer os cuidados que este necessita na realidade. É por enfrentar uma lei, ao mesmo tempo rigorosa e impossível de ser atendida que se instaura a culpa e a necessidade de expiá-la. A descrição chave para esta conclusão é a seguinte:

"Por que, perguntaram-lhe um dia pela centésima vez, em nossa presença, você acredita que seu filho está ameaçado ? Impulsivamente ela responde: "Para me castigar."  Mas de quê ? - Aqui ela hesita: "Porque eu não cumpria minha missão ... " (p.253)

A realização desta resposta ao imperativo se dá em duas dimensões. Primeiro porque ao atingir a atriz, Aimée teria atingido a si mesma enquanto imagem ideal não concluída (p.251). Segundo porque o confinamento que se seguiu a colocaria numa situação punitiva. Essa realização da autopunição explicaria porque depois de vinte dias internada, Aimée interrompe o delírio, não sofre mais angústia, deixa de manifestar os demais fenômenos elementares e se desinteressa pela escrita (p.251).  Lacan comenta: "O delírio tornado inútil se desvanece" (p.251).
Resta compreender as particularidades do objeto escolhido para a identificação. Lacan utiliza neste ponto o quadro proposto por Abraham em 1913 que correlaciona cada estágio do desenvolvimento da libido a um tipo de ligação objetal e a um ponto de fixação psicopatológica. Assim constata-se como próprio à paranóia a ligação com um objeto parcial com incorporação sádico-anal. Ora, é justamente na incorporação do objeto e no recalcamento da libido narcísica adstrita a ele  que se institui o superego.  É patente a  ligação deste com o ideal de eu e com o eu ideal (unidade narcísica remanescente). As três dimensões da personalidade, propostas no início da tese correspondem agora a três níveis clínicos:

1. o nível da estrutura (unidade): caracterizado por momentos típicos do desenvolvimento histórico e da dialética das intenções. Relaciona-se ao que Lacan chama de estruturas conceituais do delírio. Freudianamente refere-se aos pontos de fixação e que psiquiatricamente aponta para a revisão da doutrina da constituição ou dos tipos.

2. o nível individual (síntese): caracterizado pelos momentos únicos da história e das intenções do sujeito. Freudianamente, refere-se à importância da história infantil e à particularidade das moções pulsionais e representacionais. Do ponto de vista psiquiátrico corresponde ao tema da psicogênese e à reação mórbida.

3. o nível social (ético): caracterizado pelo destino das pulsões e intenções à luz da sua tradução no universo social. Refere-se em termos freudianos à gênese da ética (os sentimentos de vergonha e asco, por exemplo) a partir do superego e em termos psiquiátricos à vasta tradição jurídico-moralista da psiquiatria francesa.

Verifica-se assim a conclusão do projeto inicial da tese. Concilia-se as tradições francesa e alemã de psiquiatria; propõe-se uma teoria da personalidade freudianamente inspirada e mostra-se sua relevância do ponto de vista clínico descritivo. Nesta solução e nos problemas que ela coloca, percebe-se já o embrião da segunda teoria lacaniana das psicoses,  notadamente nos seguintes pontos:

a) que o paradigma jasperiano da compreensão exige um entendimento das formas de significação, portanto de uma investigação sobre a linguagem;

b) que os três níveis da personalidade implicam um modo de considerar as relações entre o universal (a estrutura e sua necessidade), o particular ( a história individual e sua contingência) e o singular (a tensão social e seus possíveis). O caminho sugerido para entender esta relação tripartida é a dialética.

c) que a teoria freudiana sobre a origem do ego (a teoria do narcisismo) é insuficiente e problemática pois:

c1) não discrimina o ego no sentido psicológico do ego no, sentido epistemológico ou gnoseológico (4).
c2) não diferencia o superego enquanto instância ética (fundada na vontade coletiva) e o superego enquanto instância ôntica (desenvolvido a partir das condições do indivíduo).

A julgar pelos problemas em que desemboca a tese de 1932, a linguagem deveria representar uma solução, ou um meio de tratamento para três esferas de questões. Primeiramente, a linguagem é o meio onde se pode decidir a consistência da idéia de simbolismo natural. Em segundo lugar a linguagem é o palco adequado para figurar a tensão entre o individual e o coletivo, notadamente a partir da idéia de “significação pessoal” que se encontra associada aos fenômenos psicóticos. Em terceiro lugar, a linguagem  deve permitir estabelecer com clareza  o estatuto do sujeito do conhecimento na sua diferença ao sujeito psicologicamente constituído. É pela heterogeneidade de problemas que a psicanálise será considerada simultaneamente como uma  semântica, como uma teoria da personalidade e como uma teoria do conhecimento (na verdade uma anti-teoria do conhecimento).

Notas

(1) Ver a este respeito Bercherie ( 1989) p. 161.

(2) Janet que atribuía a psicose a uma perda da função do real ou Dromard que pensava a interpretação patológica como "a inferência de um percepto exato com um conceito errado" (p.131) representam esta posição no caso da psiquiatria francesa.

(3) O outro seria a consolidação do substrato anatomopatológico  das doenças mentais.

(4)  O que se evidencia na seguinte passagem: "Em outras palavras, a concepção freudiana do ego nos parece pecar por uma indistinção insuficiente entre as tendências concretas, que manifestam este ego e apenas  como tais dependem de uma gênese concreta, e a definição abstrata do ego como sujeito do conhecimento" (p.331).

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Número 28 - Febrero 2014
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