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Resumo
Nesse artigo pretendemos discutir sobre uma possibilidade de manejo da “loucura” no hospital geral sustentada pela compreensão do conceito de psicose na psicanálise lacaniana e também pela questão da ética. Pensamos que esse seja um caminho para marcar uma diferença entre psicose, doença mental e loucura. A contextualização desses conceitos, bem como o estudo de um recorte psicanalítico da ética, são fundamentais para nossa escuta e nosso olhar frente ao sujeito. Deste modo, acreditamos que a reflexão possa se estender aos diferentes atendimentos psicológicos realizados no hospital geral, pois entendemos que a ética é o fio condutor que sustenta e norteia nossa atuação com o paciente, sua família, equipe multidisciplinar e com os demais psicólogos.
Palavras-chave: loucura, ética, psicose, doença mental, psicanálise no hospital, Lacan, Foucault.
Não é louco quem quer
J. LacanA contextualização da loucura poderia ser encaminhada de diferentes formas. Poderíamos, por exemplo, percorrer o desenvolvimento da psiquiatria e as influências em sua nosografia e diagnósticos ou as influências médicas sobre a psicanálise e vice-versa, ou procurar como o distanciamento da psicologia neurologizante do século XIX deu origem à psicodinâmica e assim passarmos por Charcot, Biswanger, Jaspers, Freud, Laing, etc. Mas no nosso caso, fizemos uma escolha pelo que entendemos ser um momento anterior, ou melhor, um olhar anterior, um recorte através da leitura de Foucault, no qual a loucura é apresentada como sendo antes um fato da cultura que fato da natureza e mostrando assim que o saber da psiquiatria, - como o das outras ciências humanas da forma que conhecemos -, estaria atrelado às estratégias de ordenação e exclusão social. Cabe ainda ressaltar que a publicação da História da Loucura (1) em 1972, coincide com o momento em que ocorria, em diversos países, os movimentos de contestação à instituição manicomial.
De qualquer forma, nossa escolha se dá principalmente pelo fato de que no hospital, mais ainda que na sociedade em geral, é preciso recusar a polaridade em domínios tão diversos de saberes (e poderes), para encontrar nosso ponto em comum, que seja tratar o louco, o doente mental ou o psicótico, não importa o nome que se atribua. O que importa, já de acordo com Foucault, é que nada é mais falso que o “mito da loucura” - doença que se ignora. A consciência que o doente tem de sua doença é rigorosamente original; o que separa a consciência do doente da do médico não pode ser medido pela distância que separa a ignorância da doença de seu conhecimento. O autor nos lembra que a doença mental não é um absoluto onde as referências ao normal foram abolidas, ela desdobra-se por si mesma, em uma dupla referência, quer seja ao normal e ao patológico, ao familiar e ao estranho, ao singular e ao universal.De acordo com Foucault em História da Loucura, por volta do fim da Idade Média, na cultura européia, a loucura e o louco tornam-se maiores em sua ambiguidade, ameaça e irrisão. Até a segunda metade do século XV, o tema da morte reina sozinho com as pestes e as guerras, e a existência humana é dominada por este fim à qual ninguém escapa; trata-se do fim dos homens e dos tempos. No entanto, nos últimos anos do século, esta inquietude gira sobre si mesma: a loucura substitui a morte. Trata-se ainda do vazio da existência, mas não mais reconhecido como termo exterior e final e sim sentido internamente, como forma contínua da existência onde o medo é desarmado por antecipação, disseminado nos vícios, defeitos e ridículos de cada um, onde a loucura caracteriza-se como o já-aí da morte.
No século XVI, a experiência trágica e cósmica da loucura é abafada por uma consciência crítica em suas formas filosóficas, científicas, morais ou médicas. Entre todas as formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos mais frequentados de dúvida, a não-razão constituía então uma espécie de ameaça que podia comprometer as relações da subjetividade e da verdade. No século seguinte esse problema parecerá resolvido, pois a loucura será colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade e, sabemos que para o pensamento clássico, esse domínio é a própria razão. Ou seja, a partir daí a loucura será exilada:“Se o homem pode sempre ser louco, o pensamento, como exercício de soberania de um sujeito que se atribui o dever de perceber o verdadeiro, não pode ser insensato. Traça-se uma linha divisória que logo tornará impossível a experiência, tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável, de um razoável Desatino.”(2)
Do mesmo modo que a Idade Média havia segregado os leprosos, o classicismo inventa o internamento, só que com outros contornos. Data de 1656 a fundação do Hospital Geral de Paris, um dos primeiros desse tipo a ser criado na Europa, um estabelecimento de estrutura semi-jurídica, administrativa, que decide, julga, executa, e não se assemelha a nenhuma ideia médica. Em poucos anos agrupava cerca de 1% da população e o autor questiona qual a realidade dessa população que se viu reclusa e banida de modo mais severo que os leprosos: Qual a forma de sensibilidade à loucura da época da Razão?
O internamento assumiu desde o início, uma amplitude como medida econômica e de precaução social. Na história do desatino, ele marca um evento decisivo, o momento em que loucura é percebida no âmbito social como pobreza, incapacidade para o trabalho e para o convívio, ou seja, como um problema. Um problema referente à ordem do espaço da cidade, onde o internamento funciona pois como um mecanismo social que permite eliminar os elementos heterogêneos ou nocivos, os “a-sociais”. Ele designa uma nova reação a miséria, não mais sob uma perspectiva religiosa, como na Idade Média, mas sob a ótica de uma concepção moral que condena. O miserável só pode ser sujeito moral na medida em que deixa de ser “representante de Deus”. Se a loucura no século XVII está dessacralizada é porque a miséria sofreu uma espécie de degradação que a faz ser encarada no horizonte da moral; a loucura só terá lugar nos muros do hospital, ao lado de todos os pobres. A partir da criação das primeiras casas de correção, até o fim do século XVIII, a era clássica interna. Interna os devassos, os pais dissipadores, os filhos pródigos, os blasfemadores, os homens que “procuram se desfazer”, os libertinos. Interna também os “furiosos”, sem especificar se esses são doentes ou criminosos. E, através dessas aproximações, traça o perfil do desatino, uma experiência homogênea que, contudo, não pode negar a experiência da loucura como doença, por mais que essa seja restrita, e ainda que contemporânea da loucura resultada do internamento e do castigo.
Este gesto de exclusão onde esse homem foi reconhecido como estranho à sociedade que o havia escorraçado e irredutível as suas exigências, suscita o estrangeiro e cria a alienação. De acordo com Foucault, refazer a história desse processo de banimento, é fazer a arqueologia de uma alienação. Entretanto, se o internamento representou a exclusão, representou também uma forma de organização, aproximou em um único campo, personagens e valores sem nenhuma semelhança percebida por culturas anteriores e estabeleceu uma espécie de “gradação” entre eles em direção à loucura, preparando nossa atual percepção da alienação mental:
“A fim de que essa aproximação fosse feita, foi necessária toda uma reorganização do mundo ético, novas linhas de divisão entre o bem e o mal, o reconhecido e o condenado, e o estabelecimento de novas normas na integração social.”(3)
Assim, experiências que dizem respeito à sexualidade (no que se refere a organização da família burguesa), a libertinagem dos pensamentos livres e paixões, ou da profanação do sagrado, constituem, junto com a loucura, um mundo homogêneo que é aquele onde a alienação mental assumirá o sentido que conhecemos: todos no exílio, pertencentes ao signo da loucura, mantendo parentesco com o desatino e com a doença mental, transformando as relações que a loucura mantém com a ética. É sobre esse fundo que a consciência médica da loucura pôde formar-se, e em certo sentido, é sobre o fundo jurídico da alienação que se constituirá e permanecerá ligada por um longo período. Veremos surgir então uma “terapêutica” que revela uma cumplicidade da medicina com a moral e que atribui sentido à práticas de purificação. As coisas se passam como se justamente o racionalismo autorizasse a confusão entre castigo e remédio, bem como a ligação entre o gesto que pune e o que cura:
“Aos insanos internados faltava apenas o nome de doentes mentais e a condição médica que se atribuía aos mais visíveis, aos mais bem reconhecidos deles. Procedendo-se a semelhante análise, consegue-se bem barato uma consciência tranquila no que diz respeito, de um lado, à justiça da história e, do outro, à eternidade da medicina. A medicina é verificada por uma prática pré-médica, e a história justificada por uma espécie de instinto social espontâneo, infalível e puro.”(4)
Porém, Foucault nos diz que, apesar disso, a história da loucura não pode servir como justificativa nem como auxiliar na patologia das doenças mentais. A doença mental objeto da medicina, se constitui como a unidade de um sujeito juridicamente incapaz e reconhecido como perturbador do grupo, isolado como que por uma suscetibilidade ao escândalo. Esse é o momento que, com Pinel, nasce uma psiquiatria que pretende tratar o louco como ser humano; uma psiquiatria que herdou todas relações culturais do desatino, e que acreditou falar apenas da objetividade patológica da loucura, mas que lida ainda com uma loucura não só habitada pelo desatino mas também por esse absurdo de uma certa animalidade. Embora a psicopatologia tenha como referência um homem normal anterior a doença, na realidade sabemos que esse homem é social, e se o louco é reconhecido como tal não é por a doença afastá-lo do normal, mas porque nossa cultura situou-o no ponto de encontro entre o decreto social do internamento cercado pela consciência do escândalo, e pelo reconhecimento da incapacidade e da irresponsabilidade. O autor nos leva a entender o conceito de alienação psicológica como:
“(...) apenas a confusão antropológica dessas duas experiências de alienação, uma que concerne ao ser caído sob o poder do Outro e acorrentado à sua liberdade; a segunda que diz respeito ao indivíduo que se tornou um Outro, estranho à semelhança fraterna dos homens entre si. Uma aproxima-se do determinismo da doença, a outra assume antes o aspecto de uma condenação ética.”(5)
Sendo assim, ele acaba por demonstrar que ao fazermos a história do louco, o que fizemos foi a história daquilo que tornou possível o aparecimento de uma psicologia. O asilo construído por Pinel não protege o mundo contra a loucura, se por um lado ele liberta o homem da desumanidade de suas correntes, por outro o acorrenta ao louco, o homem e sua verdade. Ou seja, o homem tem acesso a si mesmo como verdadeiro, mas esse ser só lhe é dado na forma da alienação:
“(...) o ser humano não se caracteriza por um certo relacionamento com a verdade, mas detém, como pertencente a ele de fato, simultaneamente ofertada e ocultada, uma verdade.
Deixemos que a linguagem siga seu caminho: o homo psycologicus é um descendente do homo mente captus.”(6)Podemos dizer então, que se a psicologia faz parte da dialética do homem moderno, às voltas com sua verdade, significa que ela só é possível na crítica do homem ou na crítica de si mesma. Por um lado ela aprofunda a negatividade do homem e, por outro, exerce-se através de constantes retomadas, de ajustamentos do sujeito e do objeto, do vivido e do conhecimento. Em outras palavras, o objeto que a psicologia pretende explicar é, na realidade, o que funda a sua própria possibilidade de existência.
Essa é uma das teses que Foucault procura demonstrar em Doença mental e psicologia, (7) quando diz que a raiz da patologia mental deve ser procurada em uma relação historicamente situada entre o homem e o homem louco e o homem moderno. Parte do princípio que não se pode definir a doença mental com os mesmos métodos conceituais que a doença orgânica, não há unidade real entre as duas formas de patologia, se se reúnem os sintomas psicológicos com os fisiológicos é porque antes de tudo se considera a doença mental ou orgânica como uma essência natural manifestada por sintomas específicos. Trata-se de um paralelismo abstrato que toma como dado a unidade do humano e a totalidade psicossomática, questões que para dizer o mínimo, ainda estão em aberto:
“Ora a psicologia nunca pôde oferecer à psiquiatria o que a fisiologia deu à medicina: o instrumento de análise que, delimitando o distúrbio, permitisse encarar a relação funcional deste dano ao conjunto da personalidade.”(8)
Nos resta dar crédito ao próprio homem e não às abstrações sobre a doença, analisar as especificidades da doença mental e procurar compreender o estranho status da loucura - doença mental irredutível a qualquer doença – que não pode ser lida como funções abolidas. Sua essência não está apenas no vazio criado, mas também coexiste nos fenômenos positivos que se opõe aos negativos; como o simples ao complexo, mas também como o estável ao instável. O processo patológico exagera os fenômenos mais estáveis e automáticos e suprime os mais lábeis, complexos e voluntários, daí que se origina a nossa percepção de um processo regressivo na doença e de “infantilização”. É como se a doença fosse a própria natureza em um processo invertido, mas, para Foucault, isso deve ser tomado apenas como um aspecto descritivo, ou seja, para cada síndrome deveria se analisar não só as estruturas abolidas, mas também as realçadas, referindo-se assim à sua crítica às bases em que se assenta a nosografia psicopatológica, calcada em uma estrutura conceitual das doenças orgânicas.
Dito de outra forma, é necessário conduzir a análise além desta dimensão evolutiva, virtual e estrutural para a dimensão que a torna necessária, significativa e histórica. A ciência da doença mental só pode ser entendida como a ciência da personalidade do doente, de sua história pessoal e é aqui que recorreremos à psicanálise. O “psicológico” é ao mesmo tempo evolução e história; a realidade do doente mental não permite uma abstração como a do orgânico, o que faz com que cada sujeito precise ser pensado singularmente. Ainda que as condições do surgimento da doença mental não possam ser encontradas nem na evolução nem na história pessoal nem na existência, é nelas que a doença se manifesta; a doença só tem valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal, as análises que fazem do doente um “louco”, e que procuram a origem do mórbido no anormal são projeções da cultura.
Como vimos, no século XVII, o mundo da loucura vai tornar-se mundo da exclusão, aliás, não só o da loucura, mas de todos que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, parecem alterados. Neste mundo burguês em formação o internamento esteve ligado à reestruturação do espaço social, o pecado não é mais o orgulho ou avidez como na Idade Média, mas a ociosidade, a categoria que agrupa os que residem nas casas de internação é a incapacidade para a produção. Lá, cria parentescos com os portadores das doenças venéreas, os libertinos, os criminosos, em uma espécie de assimilação obscura com as culpas morais e sociais. A sociedade não pode e não quer se reconhecer no doente, e no mesmo instante em que diagnostica a doença, o exclui. Podemos dizer que a loucura é então, confinada em um tempo de silêncio por um longo período, é despojada de sua linguagem, e se ainda se poderá falar sobre ela, ela não poderá mais falar de si mesma, - pelo menos até Freud.
Aos poucos, sob a Revolução e o Império, com Pinel e Tuke, essas casas vão sendo reservadas aos loucos apenas, os herdeiros da exclusão, mas agora com a significação de medida de caráter médico, onde a cura significará sentimentos de humildade e culpa conseguidos através de castigos e ameaças. Como se o louco devesse ser vigiado e precisasse de sanção para o desvio de uma conduta normal (o médico aqui está encarregado mais de um controle moral que de uma intervenção terapêutica). Assim as técnicas que a fisiologia da época justificava eram usadas em um contexto repressivo e moral. O século XIX aperfeiçoa o sistema dando-lhe um caráter estritamente punitivo, e a loucura adquire um caráter essencialmente humano - de culpa e liberdade -, inscreve-se na dimensão da interioridade e, pela primeira vez, recebe estrutura e significação psicológicos. Isto em um contexto punitivo onde o louco, minorizado, aparenta-se a uma criança e, culpabilizado, liga-se ao erro:“Não nos surpreendamos, consequentemente, se toda a psicopatologia - a que começa com Esquirol, mas a nossa também, for comandada por estes três temas que definem sua problemática: relações da liberdade com o automatismo; fenômenos de regressão e estrutura infantil das condutas; agressão e culpa. O que se descobre na qualidade de ‘psicologia’ da cultura é apenas o resultado das operações com as quais se a investiu. Toda essa psicologia não existiria sem o sadismo moralizador no qual a ‘filantropia’ do século XIX enclausurou-a, sob os modos hipócritas de uma ‘liberação’.”(9)
Grosso modo, podemos dizer que o objeto que a psicologia pretende explicar é o que funda a possibilidade de sua própria existência e, portanto, ainda que ela nunca possa dizer a verdade sobre a loucura, pode ir ao essencial, ao procurar a relação da razão com a desrazão. Se doença mental é loucura alienada, e se o homem faz do homem uma experiência contraditória é apenas nesta perspectiva histórica que está o a priori do conceito de doença mental, nessa relação geral que o homem ocidental estabeleceu consigo mesmo e onde pôde chegar a não se reconhecer; relação que substitui àquela com a verdade. Essa relação funda a psicologia a partir do momento em que o confronto entre razão e desrazão deixa de se fazer na dimensão da liberdade, e em que a razão deixa de ser para o homem uma ética para tornar-se uma natureza.
Neste momento faz-se necessário trazermos a questão para mais perto, tanto histórica quanto profissionalmente, ou seja, para o homem contemporâneo e a psicanálise, em sua perspectiva ética. De acordo com Kehl,(10) ao emancipar o homem das tiranias morais a que nos referíamos anteriormente, a psicanálise nos legou a liberdade, mas também o desamparo, a autora questiona se esta poderia sustentar uma ética para os tempos atuais, e é sobre isso que pretendemos nos debruçar. A relação entre ética e psicanálise se dá no campo teórico ao considerar os modos modernos de alienação e liberdade e também no campo da experiência clínica ao entender esse homem como sujeito dividido entre a possibilidade de agir conforme seus desejos e ter que conviver com o outro. A primeira trata da passagem de um saber explícito atribuído ao Outro para o saber do inconsciente do sujeito, pelo qual ele pode se responsabilizar, e esta vertente implica a todos enquanto agentes sociais produtores de linguagem. Na segunda, a psicanálise poderia ser um facilitador para que o sujeito produza algumas respostas éticas para seus conflitos.
No que concerne aos conflitos, a psicanálise contribui decisivamente para a dignificação do sofrimento ao compreender o patológico como marca da condição humana, ao localizar o homem onde existe o estranho, o sem sentido, entre a razão e a desrazão, se “Não é dado ao homem escolher o páthos, não é sobre ele que incide o valor ético, negativo ou positivo.”(11) Da mesma forma, ainda que possa haver coincidência entre inconsciente e verdade do sujeito, não podemos dizer que o desejo seja ético; nem antiético, segundo a autora, ele é indiferente às razões éticas. A psicanálise não supõe pois, uma correspondência entre natureza e Bem, não pensa o homem como um ser de natureza, mas de linguagem; criador de significações e valores. Se a crise ética do sujeito contemporâneo refere-se à falta com o Bem, o ser e a verdade, a psicanálise decorre desta crise e sua contribuição possível à ética não se dá como resposta mas como compromisso – do sujeito com o seu desejo, da aceitação da falta e do conflito – trata-se da responsabilização pelo inconsciente a que Freud se referia, e não de culpa.
Ao contrário da moral cristã, aqui a culpa não é compatível com a ética, por estar atrelada ao nosso desejo de submissão ao Outro, o próprio funcionamento da psicanálise, em que o analista se coloca tecnicamente no lugar transferencial do sujeito suposto saber para aos poucos deixá-lo e assim remeter o analisando a um saber inconsciente, é consequência dos deslocamentos que a relação entre os homens e a verdade sofreu nas sociedades modernas. De modo geral, podemos dizer que o pensamento psicanalítico do sujeito do inconsciente, não coaduna com o pensamento em voga de um ser pleno, idêntico a si mesmo e reconhecido pelas suas vontades; nem com o homem da neurociência, ou da psiquiatria, que não é marcado pelo conflito e sim assemelha-se a uma máquina a qual podem, eventualmente, ocorrer distúrbios ocasionados pelo ritmo da vida ou déficits químicos, curáveis pela farmacologia eficaz. Por que então pensar psicanaliticamente? Essa questão deve ser respondida em termos éticos, antes de ser respondida em termos de eficácia terapêutica, mesmo porque são indissociáveis.
Não pensar o homem como positividade plena, que pode ser curado por intervenções tão alheias a sua subjetividade quanto o distúrbio que o perturbou, pauta-se aqui pelo entendimento de que esse modelo “normal” supõe um psiquismo que recusa apropriar-se de qualquer conflito, e sabemos que o culto extremo a normalidade é muito próximo da patologia. Para além da indiscutível importância do medicamento no alívio do sofrimento, uma sociedade ancorada dessa forma, é uma sociedade em que os laços sociais não evocam o pensamento como auxílio para negociação de suas diferenças, e é preciso mais que isso para que o homem moderno possa dar conta da construção de uma história individual e do seu lugar no laço social.
A ética da psicanálise corresponde portanto, a um “deixar falar” a verdade do sujeito. Ao invés de certezas, ela surge como uma “prática da dúvida”, onde o analisando é levado a indagar-se; a ruptura freudiana contribuiu de forma decisiva ao abrir lugar para as palavras até então desconsideradas pelos médicos por acreditá-las desprovidas de sentido. Através da associação livre, Freud revela o sentido presente no sem-sentido do inconsciente, por sua postura de mudança frente à questão moral; a questão da ética, para ele, pôde ser articulada a uma orientação em relação ao real e não no ideal (como por exemplo, em Aristóteles, onde ela está remetida a uma formação de caráter, hábitos, educação). A passagem que se dá nesse momento do século XIX é, portanto, a reversão utilitarista, não se trata mais de bens a repartir no mercado, e sim de uma busca pela felicidade, como em Aristóteles, mas, para Freud não há nada preparado para essa felicidade.De acordo com Lacan,(12) em seu seminário sobre a ética, a maior parte da ética tradicional, a serviço dos bens, se opõe ao desejo, ou antes, o deprecia ao pregar a modéstia e uma vida mediana. Não se trata de subverter o poder, o que está em questão para essa moral a serviço dos bens, é: “continuem trabalhando, e quanto aos desejos esperem sentados”. Para o autor, a ética consiste em um juízo sobre nossa ação na medida em que essa ação implica um juízo; ou seja; se há ética da psicanálise é porque de algum modo a análise pode vir a se colocar como medida de nossa ação – enquanto procede um retorno ao seu sentido inconsciente. Sendo assim, Lacan acaba por escolher como medida da revisão ética a qual a psicanálise nos leva, a relação desta com o desejo que a habita. E onde nossas ações se inscrevem? No que Lacan denomina de “experiência trágica da vida” e também na “dimensão cômica”, a primeira tem o sentido de triunfo da morte e a segunda, de fracasso em alcançar o desejo. No entanto, ele nos ensina que elas não são incompatíveis, o tragicômico existe:
“É aí que reside a experiência da ação humana, e é por sabermos melhor do que aqueles que nos precederam, reconhecer a natureza do desejo que está no âmago dessa experiência, que uma revisão ética é possível, que um juízo ético é possível, o qual representa essa questão com seu valor de Juízo final – Agiste conforme o desejo que te habita?”(13)
A questão já não pode mais ser colocada em saber se o homem é bom ou mau, o importante é saber que essa não é uma via onde se possa avançar sem pagar, ou melhor, que há um preço a pagar para ser um Eu. Nessa perspectiva que a análise é solidária à subjetivação, enquanto transformadora de “algo” em manifestação de um sujeito. De acordo com Safatle,(14) deste modo, a análise lacaniana liga-se também a uma experiência de “des-identidade” que se pode nos fazer adoecer, também pode nos curar, na medida em que o sujeito só é sujeito quando pode experenciar em si algo que o ultrapassa e que o faz nunca ser completamente idêntico a si mesmo. Se pensarmos que além disso, a clínica lacaniana é uma clínica estrutural, que privilegia a posição subjetiva e o modo como as relações sociais entre o sujeito e o Outro são constituídas, voltaremos a questão ética, agora em outro âmbito: na ânsia social em decretar o fim da psicanálise, pois o que ela coloca em jogo não é apenas o próprio sentido de noção de normalidade, de cura e de destino que se pretende dar ao sofrimento psíquico. Ela é, como dissemos anteriormente, sintoma de uma crise maior, social, que nos faz colocar em questão os ideais normativos, nosso próprio estilo de vida, e nossas noções sobre a racionalidade. Para Safatle, ela vai além de pôr em questão, ela desenvolve uma nova prática em relação a si mesmo e ao outro:
“É por ser fiel à solidariedade entre saúde mental e crítica social que a psicanálise lacaniana nunca aceitou ser vista como uma terapia. Pois quem diz terapia diz recuperação de padrões de normalidade perdidos pelo advento de alguma forma de patologia. No entanto, mais do que uma terapia, Lacan quer desenvolver uma práxis de forte potencial crítico contra o caráter normativo de nossos ideais de normalidade, realização de si e prazer.”(15)
Portanto, nossa posição em relação ao homem deve ser esclarecida uma vez que é com sua demanda permanente que estamos envolvidos, uma demanda por não sofrer, ou ao menos, não sem compreender. O que nos leva a outra questão no quadro da ética, a contida no manejo da transferência pelo analista que leva em consideração o poder que lhe é investido a partir desta. Ao mesmo tempo que configura-se como mola propulsora do tratamento analítico, Kehl nos diz que ela depende de grande prova ética da capacidade de renúncia deste poder pelo analista; por consequencia, seu primeiro compromisso ético é com a própria análise, não só para estar mais propício às manifestações do inconsciente do analisando como as do seu próprio; e para que sua análise seja mais um recurso para que ele possa se manter separado deste poder que lhe é investido no amor transferencial. Resta ainda outro cuidado ético ao analista, o de não transformar a clínica em uma forma de pedagogia, ou dito de outra forma, que não responda às demandas da sociedade na forma de uma “ideologia apaziguadora” da consciência moderna. Segundo a autora, se a psicanálise pode propor para a modernidade um valor para o lugar de vazio anteriormente pertencente ao Bem, esse valor é a alteridade: “(...) a aceitação do outro em sua semelhança na diferença é condição essencial para se construir alguma proposta ética para os tempos atuais.”(16)
É justamente essa proposta da autora que nos remete novamente a questão da loucura no que tange seu estranhamento, sua alteridade, mas também nossas semelhanças. Entendemos que ao percorrer sobre a questão da loucura, e da ética, grosso modo, tratávamos sobre psicose e manejo, porém agora traremos a questão para a clínica da psicose, nosso foco nesse trabalho, tal como ela é entendida pela psicanálise lacaniana:
“Psicose não é demência. As psicoses são, se quiserem – não há razão para se dar ao luxo de recusar empregar este termo -, o que corresponde àquilo a que sempre se chamou, e que legitimamente continua se chamando, as loucuras.” (17)
Podemos perceber o tamanho do campo, envolve conceitos desenvolvidos por Lacan ao longo de sua obra, a saber: a foraclusão do Nome-do-Pai, os consequentes distúrbios de linguagem, a questão do imaginário, simbólico e real, o real do gozo, objeto a, descrença em uma lei própria, sintoma, etc. Portanto, além de fazermos um recorte visando o manejo da clínica, nos deteremos apenas em alguns textos lacanianos, e vamos nos orientar pela leitura que Quinet(18) faz dessa parte da obra do autor.
Lacan aborda a psicose como uma estrutura clínica específica, diferente da neurose (e da perversão), que tem sua lógica e rigor próprios, trata-se de uma estrutura que se revela no discurso do sujeito – uma estrutura da linguagem – e que corresponde a uma particular articulação dos registros do real, simbólico e imaginário. A referência ao Édipo(19) é, portanto, fundamental, na medida em que constitui a “armadura significante mínima” que possibilita a entrada do sujeito no simbólico, e não teríamos como pensar em manejo da psicose sem isso. Se entendermos que o Édipo é o preço que se paga para tornar-se sujeito da linguagem condenado a lidar com a falta, com a castração simbólica e com o recalque, chegaremos a conclusão de que a verdade do sujeito jamais será dita por inteiro. Não pagar esse preço é o ponto nodal para o campo das psicoses e é, portanto, na relação com o significante, que Lacan situa a questão da loucura; e propõe assim, que sua condição essencial é a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e o fracasso da metáfora paterna - a não inserção desse significante no Outro acarreta os distúrbios de linguagem a que nos referíamos, particularmente a alucinação e o delírio característicos.
O surgimento da crise na psicose, corresponde então, ao efeito da emergência no real de um chamado a uma significação à qual o sujeito não tem como responder, na medida em que essa não faz parte de sua estrutura. Podemos dizer que há um “buraco” na ordem simbólica e que se antes de um primeiro surto, muitas vezes, encontramos um sujeito em uma posição pouco estável (como diz Lacan, um “banquinho de três pés levado a servir-se de bengalas imaginárias”), quando do encontro com esse buraco da significação ausente, com essa fenda na realidade criada pela carência no simbólico do Nome-do-Pai, o sujeito pode responder com o delírio(20).“A foraclusão do Nome-do-Pai na psicose põe em causa toda a cadeia de significantes que assume, então, sua independência e se põe a falar, à revelia do sujeito. A lei do significante exercerá seus efeitos sobre este e o fará falar numa língua por ele ignorada. As alucinações objetivam o sujeito numa linguagem sem dialética que se impõe sem cessar.”(21)
De acordo com Quinet, para Lacan, na psicose, a própria estrutura de linguagem do inconsciente é revelada, pois que o Outro do sujeito aparece consistente, não é barrado, aparece às claras e fala, o que provoca todo tipo de reação, e nos leva a dizer que o psicótico não habita a linguagem como o neurótico, mas é “possuído” por ela. Por carecer do significante da Lei, o Outro do psicótico é um absoluto ao qual o sujeito encontra-se submetido, ou seja, a posição estrutural é a de ser objeto do gozo do Outro, de uso do Outro absoluto. Deste modo, o delírio é entendido como o que pode vir a suprir a foraclusão do Nome-do-Pai, a partir da possibilidade da construção de uma metáfora delirante e não como algo a ser extirpado, mas algo que pode levá-lo a uma estabilização e tornar sua relação com a realidade mais possível. A metáfora delirante é o significante que, como o Nome-do-Pai, tem a função de ponto-de-basta, induz efeitos de significação e introduz uma ordem, permitindo que o sujeito tenha acesso à significação, ainda que não fálica. Essa “operação” não faz com que o sujeito deixe de ser objeto do Outro, não efetua uma castração simbólica (como a metáfora paterna), mas tem o efeito de “dosar” o gozo, que fica assim mais “localizado”. Podemos dizer portanto, que Lacan entende o delírio como uma tentativa de cura, de barrar esse gozo no campo da realidade, delimitando-o e contendo-o no lugar do Outro. Dessa forma, ele recompõe de alguma maneira a realidade, indo contra a ideia de que o louco estaria fora dela, uma vez que a metáfora delirante pode restaurá-la.
Resta ainda um ponto a esclarecer, a partir da teoria dos nós-borromeanos de 1975, Lacan abre a possibilidade de se pensar em outras soluções que não a edipiana. As coisas se passam da seguinte forma: ao procurar uma autonomia do imaginário em relação ao simbólico, ele pensa o Édipo como uma “costura” que permite a amarração dos três registros: real, simbólico e imaginário. O imaginário seria um dos anéis entrelaçados e unidos por um quarto, o sintoma, que teria uma função de suplência na medida em que o sentido, ao situar-se na interseção do simbólico com o imaginário, seria reconstituído como o sintoma delirante que reúne os três laços. De acordo com Quinet, essa teoria por um lado aproxima neurose e psicose ao pensar que enquanto o neurótico encontra seu sintoma no Édipo, o psicótico constrói um “sintoma novo”, e por outro, inaugura a clínica das suplências – onde outros significantes podem ocupar a função do Nome-do-Pai (o que leva Lacan a pluralizar para os Nomes-do-Pai). Essa vinculação fará Lacan atribuir a qualquer significante, o estatuto do sintoma, como um Nome-do-Pai, ligado ao simbólico, constituindo um círculo com o inconsciente, o que permite generalizar o conceito de suplência e entender o sintoma como um significante que articulado com os outros pode funcionar como condensador de gozo. Essa passagem é fundamental para o manejo da clínica, se considerarmos que o sujeito na psicose é obrigado a fazer uma suplência para, de alguma forma, dar conta do real, inventando maneiras de existir fora da norma fálica.
Nessa mesma direção, outro conceito que colabora para essa clínica, é o de objeto a, por entendermos que na psicose ele não é um objeto perdido, marcado pela falta, mas um objeto que está “ao seu lado”, trazendo um gozo narcísico. O processo delirante, seria então uma tentativa de separação, de localizar o gozo em um objeto separado de seu corpo - o autor infere que a arte e a teoria na psicose podem configurar uma tentativa, para além do delírio, de que algo represente esse objeto e o sujeito possa dele se separar, uma vez que, por não haver inscrição da Lei no Outro esses objetos podem aparecer no real. Decorre daí a necessidade do analista estar atento aos sinais de voz, de automatismo mental, de alucinação verbal, e ao olhar do delírio de observação que visa ao sujeito. Se o outro não é castrado, é portanto completo e consistente, o que leva o psicótico, na angústia, a se deparar com um Outro que “recepta” o objeto a – daí ser um Outro que tudo fala, vê e recrimina, ou seja, que não é separado do outro no campo da linguagem que estrutura o campo da realidade do sujeito.
Esses conceitos nos levam a algumas direções claras para o manejo desta clínica, a mais evidente delas é que não nos cabe interpretar. O analista não pode se valer da ambiguidade do significante porque, como vimos, o psicótico não dispõe da significação fálica, além do fato de que buscar o sentido (um sentido aqui que se assemelha ao signo) já é o que ele faz com seu delírio, e não nos cabe “competir” com o sujeito; o que nos cabe, ao nos deixarmos guiar pela estrutura, é a importância de oferecermos escuta ao delírio, escutar o valor de signo que seus elementos portam, na tentativa de compreender qual a significação daquele delírio para aquele sujeito. Apesar de caracterizar-se por ser inerte, objetivando o sujeito em uma linguagem sem dialética, essa é sua própria tentativa de cura e se ele não encontra uma mínima escuta, ou pior, quando encontra uma verdadeira recusa de seu trabalho de elaboração, isso pode contribuir para um processo degenerativo. Como explica Faria(22), se o psicótico agarra-se a sua certeza delirante é porque este é o único recurso que dispõe para fazer sutura de um ponto de angústia que o ameaça com o desamparo diante do nada aterrorizante em que o mundo e a realidade estão prestes a se tornar, é da aproximação do vazio que o psicótico nos fala em sua angústia, - mas é preciso escuta. Às vezes, para que um delírio se constitua, passam anos, e justamente por falta de escuta, perde-se a oportunidade de oferecer-lhe referências que poderiam orientar ou mesmo conter seu desenvolvimento. Decorre então, a impressão de que a “loucura é crônica”, sendo que perturbações muito graves nas psicoses só se cronificam quando por muito tempo, nenhuma escuta acolhe o delírio, nem intervém de forma organizadora sobre ele.
O fato da foraclusão do Nome-do-Pai ser incurável, (assim como o recalque), não quer dizer que não haja efeitos terapêuticos na psicose, a direção da análise é que é outra, não está no esvaziamento do sintoma, mas em possibilitar que o sujeito possa dispor de recursos de linguagem para lidar com a falta, ou seja, dialetizar a realidade, inserir outras possibilidades que não a lógica do todo na qual o significante é signo. Sendo assim, a escuta guia o analista na direção de favorecer esse trabalho de construção de referências que sirvam de baliza e de organização frente ao ponto de angústia do analisando; ou seja, na construção de uma realidade, que será distinta daquela comandada pelo Nome-do-Pai (e por isso denominada de delirante), mas que pode tentar barrar, cifrar o gozo que o invade.Dito de outra forma, refere-se a encontrar recursos significantes que permitam tratar como negatividade imaginária o que o neurótico trata como falta simbólica, essa é a função de suplência da metáfora delirante e sua conseqüente capacidade de produzir laço social.(23) De acordo com Faria, as referências fornecidas por Lacan são fundamentais para que a psicose seja pensada não como patologia a ser eliminada, mas como estrutura clínica cujo funcionamento pode ser patológico em alguns casos, mas não sempre. Assim, a estrutura psicótica abrange tanto as psicoses desencadeadas quanto as não desencadeadas, ou seja, muitos psicóticos podem passar a vida sem um surto, seu desencadeamento, como dissemos anteriormente, depende dos fatos com os quais o sujeito é confrontado, bem como de seus próprios recursos significantes para responder a esses fatos; e nesse sentido a análise pode ajudar.
A demanda de análise na psicose, pode vir de um outro, como o médico por exemplo, mas também pode vir do próprio sujeito (como na neurose). Diferente do neurótico, que traz questões justamente pela inscrição simbólica na linguagem e por funcionar a partir do registro da dialética fálica; o psicótico pode chegar com uma resposta pronta, uma significação que o “atingiu”, que pode ser enigmática como uma intuição ou fixa como uma ideia delirante - porém sem questionamentos, sem oferecer sentidos para aquilo, simplesmente é, devido ao tratamento imaginário da realidade - , ou chegar com várias significações sem a derradeira, por a função de basta encontrar-se ausente. Pode também dirigir-se ao analista como quem pede asilo, ou seja, um pedido de barreira ao gozo do Outro que o persegue. Para Quinet, é pela mesma razão que ele chega a pedir asilo nos muros dos hospitais, clínicas, etc, como se a barreira física pudesse oferecer algum contorno ao real.
No que pauta a relação paciente-analista, a transferência é essencial para falar em manejo, sabemos que ela por si já pode produzir um efeito terapêutico, se ela existe é porque existe relação com o saber, mas neste caso é preciso conduzi-la com particular cuidado; primeiro porque podemos considerar que o desejo do analista está sozinho na psicose, segundo, por vermos uma equivalência, para o psicótico, do sujeito suposto saber com o sujeito suposto gozar; ou seja; se o Outro tudo sabe a seu respeito, o suposto saber é aqui substituído por uma certeza:“Na medida em que o desejo é correlacionado à falta, à falta-a-ser, própria do neurótico, é difícil falar-se de desejo na psicose onde não há inclusão da falta do Outro, o qual emerge na figura do analista, não como suposto desejar, mas como um Outro que goza.”(24)
Sendo assim, ainda de acordo com Quinet, Lacan é levado a propor uma “concepção estratégica” para a “manobra da transferência” na análise do psicótico, justamente com o objetivo de barrar, de “dizer não” ao gozo do Outro que invade o sujeito, para que o significante possa advir, trata-se nas palavras de Lacan, de “secretariar o alienado”; ou seja, de escutar aquilo que manifestam de sua relação com o significante; e quando na presença do delírio, o trabalho se sustentará, portanto, na compreensão do caráter imaginário da significação delirante. Ao eleger essa possibilidade de escuta, o analista testemunha a relação do sujeito com o Outro; para tanto, é também necessário buscar apreender em que posição o sujeito se situa e entender que ocupar o lugar do Outro absoluto para o psicótico é uma consequencia da análise. A dificuldade para o analista se coloca então em não aceitar essa posição e, ao mesmo tempo, manter o laço; por outro lado, a vantagem da própria transferência é o Outro presentificado pelo analista que pode se valer disso para provocar a falta no Outro, para esvaziar o gozo desse Outro que o paciente lhe atribui, através da e pela fala.
Sabemos que na falta do gozo fálico, o sujeito pode recorrer a qualquer outro; sendo que é uma indicação clínica precisa que o que constitui o sofrimento do sujeito é essa dispersão, esse despedaçamento de gozo. Nesse sentido, não podemos deixar de mencionar o quão apaziguador e terapêutico pode ser na psicose, um manejo da clínica que considere tentar condensar o gozo fora do sujeito, e que considere também que cada um, diante da foraclusão do Nome-do-Pai, irá buscar sua solução particular para tentar se separar desse objeto com o qual identifica seu ser:
“Se o sentido é imaginário, é necessário lembrar que o imaginário não é pura imaginação, o imaginário dá consistência ao Real. O imaginário, como diz Lacan, dá o efeito de sentido exigido pelo discurso analítico: efeito real.”(25)
Cabe considerar, por fim, que o efeito terapêutico a que anteriormente nos referimos, mostra-se insuficiente para a clínica, a psicanálise deve produzir um efeito de verdade para o sujeito, caso contrário, não se distinguiria das outras terapias. Na psicose, como vimos, o delírio, apesar de poder se configurar como uma experiência devastadora, pode ser em si uma construção, uma tentativa de cura. Se o psicanalista não tem como prometer cura aos seus analisandos, sejam eles neuróticos ou psicóticos, podemos na psicose, favorecer que o sujeito possa enfim designar algo de seu gozo, bem como que consiga vacilar suas certezas. A construção da metáfora delirante é a saída de análise na psicose – o sujeito constrói uma chave de leitura para a realidade e pode oferecer tratamento imaginário para a falta nas diversas situações – saída mais interessante que o delírio, já que esse pode inviabilizar o sujeito nas relações, inclusive na linguagem. Como vimos, Lacan dizia do delírio como tentativa de cura, ou seja, que ele dá conta do real, porém quanto mais consistência apresenta, mais inviabiliza o sujeito socialmente. Entendemos que assim como o sintoma neurótico, o delírio enquanto sintoma comporta valor de verdade que lhe é atribuído pela verdade do sujeito aí em jogo; ambos são instituídos pela cadeia significante, diferem apenas quanto a sua estruturação (um pelo recalque, outro pela foraclusão) e ao tratamento dado ao seu deciframento, desta forma nos situamos no âmbito da relação do homem com a verdade a que nos referíamos no início desse trabalho, e podemos novamente pensar a razão como uma ética. Como nos ensina Lacan, independentemente da estrutura clínica, o que a psicanálise pode oferecer a quem queira dela utilizar-se, é que o sujeito possa reconhecer como articula sua própria história a partir da causalidade psíquica, e aqui estamos na relação entre razão e desrazão.
Após o caminho que percorremos neste trabalho, podemos compreender quando, ao interpretar essa parte da obra de Lacan, Quinet defende que o norte do analista na clínica da psicose é “introduzir o sujeito”. Refere-se à construção de um saber a partir da lógica do inconsciente, sobre cada caso, para fazer prevalecer o sujeito, refere-se também a um entendimento de que há sim sujeito na psicose, ainda que necessariamente pensado a partir de outras referências que não as mesmas do neurótico, uma vez que a estrutura de linguagem se dá de forma diferente, mas é preciso escutá-lo. Podemos dizer que é uma aposta ética, ou uma aposta na ética; de que é possível entender a diferença como apenas diferença, e apesar do estranhamento que causa, ou justamente por isso, não desqualificá-la. Para além dos desafios teóricos, é preciso colocar o homem e seu sofrimento em primeiro plano, o que de fato importa, é que o sofrimento, seja na neurose, seja na psicose, é real. Como o sofrimento de um surto psicótico: real. Real, intenso, e muito difícil de ser dividido. Loucura, como nos mostrou Foucault, é solidão. Há algo que o louco entende como da ordem do impossível de ser compartilhado, diferente de uma doença orgânica, e que tem um peso que não consegue ser aliviado apenas por uma explicação bioquímica. É aí que está nosso lugar possível junto à psicose, seja ela desencadeada ou não, seja o louco em franco delírio ou a psicose estabilizada, nosso lugar é sempre o da escuta.
Escuta que pretende possibilitar introduzir o sujeito - lá onde está o homem, o doente mental, o louco -, significa pensar que ele é capaz de lidar com sua patologia, é acreditá-lo responsável, sujeito de direito, e não objeto de cuidados, por isso dizermos que é uma questão ética, e que responde à nossa tentativa de aproximação entre esta e a loucura. Como vimos historicamente, a ciência com seu ideal de dominação do todo do real, propõe a universalização da norma, e “foraclui” a verdade do sujeito. A psicanálise oferece ao saber médico uma outra ética, que se distingue dos modos protocolares e do utilitarismo, estabelece um outro saber, que elege a verdade do sujeito e faz prevalecer sua singularidade, refere-se a um sujeito de direito, responsabilizado por sua posição, - inclusive o psicótico - , pois entende que a sociedade ao desresponsabilizá-lo, não o considera sujeito e retira-lhe do âmbito da ética. Se a psicanálise desloca o saber para o inconsciente, é por entender que entre suposto saber e verdade, a verdade está do lado do analisando; o próprio “apelo ao tribunal do Outro” da psicose, mostra que lá onde está o gozo, encontra-se a culpa, desvelando o sujeito por ele responsável. Para a psicanálise, responsabilizar o homem é convocar o sujeito.
Concluindo, ao apostarmos na possibilidade de introduzir o sujeito, o louco não pode mais ser considerado em termos de déficits ou de funções abolidas, não pode ser objeto da doença, ele é, se podemos fazer um trocadilho, sujeito ao páthos, a ser afetado pelos significantes que o determinam e os que são por ele escolhidos, como qualquer um de nós. Porém, se nossa cultura ainda o reconhece como estranho, mesmo no domínio da ciência, é porque, de algum modo, ele permanece no exílio. Ao analista, ancorado na ética, cabe resgatá-lo, devolver-lhe a palavra, para que ele possa, enfim, construir sua própria história.
Notas:
(1) FOUCAULT, Michel. História da Loucura, São Paulo: Perspectiva, 1997
(2) Idem, p. 47
(3) Idem, p. 83
(4) Idem, p. 119
(5) Idem, p. 134
(6) Idem, p. 522
(7) FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia, Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1994
(8) Idem, p. 17
(9) Idem, p. 84
(10) KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise, São Paulo: Companhia das Letras, 2011
(11) Idem, p, 127
(12) LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética na psicanálise, Rio de Janeiro: Zahar, 2008
(13) Idem, p. 367
Assim, quando Lacan afirma, no início da década de 1960, que a clínica analítica é direcionada pela injunção ética de levar o sujeito a não ceder em seu desejo, devemos compreender o que quer dizer exatamente ‘seu desejo’ nesse contexto. Não se trata de um conjunto de escolhas pessoais ou de modos particulares de conduta. Desde que se admite que o desejo do homem é o desejo do outro, a dimensão da individualidade entra em colapso. Nesse sentido, não ceder em seu desejo significa apenas sustentar o desejo em sua verdade essencial, ou seja, leva-lo a ser reconhecido como pura presença do negativo. (SAFATLE, Vladimir. Lacan, São Paulo: Publifolha, 2009, p.35)
Obs. Neste artigo, por ele ter como norte a clínica da psicose, não entraremos na questão mais estrita do desejo.
(14) SAFATLE, Vladimir. Lacan, São Paulo: Publifolha, 2009
(15) Idem, p. 80
(16) KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 192
(17) LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses, Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 12
(18) QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011
(19) Lacan resume o Édipo freudiano através da fórmula paterna em que o Nome-do-Pai substitui o Desejo da Mãe com o qual a criança se identifica como sendo seu objeto. Trata-se da simbolização da presença-ausência da mãe representada pelo jogo do fort-da descrito por Freud em ‘Além do princípio do prazer’. O resultado é a inclusão do Nome-do-Pai no Outro e o acesso à significação fálica que permite ao sujeito dar significação aos seus significantes e situar-se como homem ou mulher na separação dos sexos. Uma perda de gozo é concomitante à operação da metáfora paterna que corresponde à instauração da lei poderá mais ser objeto de simbólica. A introdução do Nome-do-Pai no Outro barra o acesso do sujeito ao gozo, e o sujeito não gozo do Outro, a não ser em sua fantasia. (QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 29)
(20) Cabe ressaltar, que embora essa seja a definição de psicose do Lacan ainda marcada pela soberania do simbólico, ou seja, uma compreensão da psicose como algo inferior a neurose, não entendemos, aqui, o valer-se do recurso imaginário em busca de estabilidade, como uma “solução inferior” ao recalque do neurótico, configuram-se apenas como soluções diferentes, possibilitadas por modos diferentes de tentar dar conta do real.
(21) QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 33
(22) Faria, Michele Roman. Delírio, linguagem e psicose contribuições dos primeiros seminários de Lacan ao tratamento possível das psicoses, Publicado na revista Acheronta, 2012
(23) Na década de setenta, depois de ter desenvolvido, no Seminário 17, sua teoria dos discursos (Lacan, 1969-70) Lacan definirá o psicótico como aquele que está na linguagem, mas não no discurso (Lacan, 1972), ressaltando justamente o que se passa em termos do laço social na psicose. Daí ser possível pensar que a produção delirante, que funciona no sentido de estabilização, só pode ser considerada cura na medida em que ela funcione como suplência ao laço social. (FARIA, Michele Roman, Delírio, linguagem e psicose: contribuições dos primeiros seminários de Lacan ao tratamento possível das psicoses, Publicado na revista Acheronta, 2012, p. 39)
(24) QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 134
(25) Idem, p. 62
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