Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Notas para um glossário lacaniano
Leda Tenôrio da Motta

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RESUMO     

Se o inconsciente, como já se disse, é um poeta simbolista, o inconsciente lacaniano é um poeta surrealista. Quer se considere a vertente ortodoxa de Breton e Éluard, quer a vertente das diásporas, representada por malditos ainda mais incorrigíveis como Antonin Artaud, Georges Bataille e Raymond Queneau, está para ser feita uma arqueologia do pensamento de Jacques Lacan que compute os aportes do surrealismo à formulação de conceitos como “objeto a”, “gozo” e “foraclusão” e, de modo mais geral, à sintaxe tortuosa em que se verte a psicanálise lacaniana.

Palavras-Chave  Literatura e Psicanálise, Literatura Francesa e Psicanálise, Simbolismo, Surrealismo, Diásporas Surrealistas, Lacan.

 

Se é certo que não há nada mais desagradável que o lacanês _ o jargão em que falam e escrevem muitos dos seguidores de Jacques Lacan _, porque ele transforma em estereótipo toda a transgressão salutar, toda a produtividade poética do discurso em que se verte este que é talvez o mais importante desdobramento da psicanálise vienense no século seguinte ao de Freud _ , é igualmente verdade que um dos aspectos mais fascinantes da língua lacaniana é que, como a dos poetas, ela pede para ser interpretada. Dito de outro modo: coloca o problema de sua própria inteligibilidade, resiste, no limite, como mistura de mistério e lucidez.

Em trabalho recente, uma equipe de pesquisadores franceses contabilizou 789 neologismos disseminados pelo total da obra lacaniana editada (Bénabou & Cornaz, 2002). O número mostra a invenção solta de palavras concorrendo para o progresso do hermetismo deste “Freud gongorizado pelo fantasma de Mallarmé”, na expressão do poeta brasileiro Haroldo de Campos, que não morreu sem render-lhe tributo, fascinado como era pelas escrituras em que a palavra se faz maior que o mundo, caso das barrocas (Campos in Cesarotto, 2002, p. 178).
Não se trata só de léxico. Movida a sintaxe extraordinária e a enunciações axiomáticas perturbadoras, essa obscuridade é cada vez mais reconhecida, hoje, quando começamos a ficar a uma distância razoável da morte de Lacan, em 1981. Tanto assim que a _ por ora única _ biógrafa de Lacan _  Elisabeth Roudinesco _, sempre disposta a defender a psicanálise contra qualquer tentativa de domesticação social que lhe atribua função terapêutica e lhe cole alguma virtude normativa, notou que o texto do último Lacan, o das formalizações matemáticas, é enlouquecido e ilegível. Também ela nos fala em Mallarmé. A busca final de uma nova lógica explicativa para conceitos antes formulados corresponde aqui a um desejo mallarmeano de chegar ao essencial, ao absoluto, nos diz Roudinesco, vendo, com simpatia, o mestre ser fulminado por suas próprias iluminações alquímicas. “Acreditando poder chegar no núcleo fundamental do pensamento, Lacan entrega-se com paixão à geometria dos nós, das tranças, dos toros e das pontas de barbante, até dissolver-se ele próprio no mudo estupor de uma afasia...” (Roudinesco, 1994, p. 360).

Se lembrarmos a importância da literatura para a própria psicanálise freudiana, que sempre teve nos literatos os seus mais legítimos antecipadores, e os dons de estilo do próprio Freud, devidamente homenageado, como se sabe, nos anos de 1930, com um prêmio Goethe, que o punha no panteão dos grandes escritores de língua alemã, nada mais justo que tomarmos o mais instigante gênio da psicanálise depois de Freud como um maker, que é como os ingleses antigos chamavam os poetas.

Em seu Rimbaud livre, o irmão também poeta de Haroldo de Campos, Augusto de Campos, nos conta que Pedro Kilkerry, obcuro maker que ambos redescobriram para a poesia brasileira, num de nossos mais marcantes episódios de revisão do cânone literário, se perguntava se o inconsciente não seria um poeta simbolista (Campos, 1992, p. 18). Ainda que Freud, com sua clareza cristalina, antipatizasse com os modernismos e modernidades, sendo conservador em matéria de artes, os jogos de linguagem típicos dos mecanismos ditos “primários”, em psicanálise freudiana, nos deixam pensar que sim. Basta ver todos aqueles tropos que ele descreve, com requintes de crítico literário, neste verdadeiro tratado de estilo que é Os chistes e sua relação com o inconsciente, onde nos mostra como os ditos espirituosos, aí equiparados aos sonhos, aos lapsos e aos atos falhos, em sua infração jubilosa, enveredam pelo duplo sentido, pelo contrassenso e pelo nonsense, o que significa dizer que são feitos para lembrar as desfuncionalizações das modernas e muito modernas linguagens poéticas.
Mas a perturbadora fala de Lacan introduz aqui uma interessante complicação. Potencializando as obscuridades dos simbolistas, a psicanálise made in France é surrealista. O que também não deveria nos surpreender, não só porque os surrealistas vêm nos ombros dos “malditos”, como Verlaine chamou os simbolistas, mas porque este reivindicado seguidor de Freud que é Lacan pertenceu ao movimento chefiado por André Breton. Fato que pouco temos visto intervir nas arqueologias do pensamento lacaniano, mais voltadas para a influência das linguísticas gerais, da antropologia estrutural lévi-straussiana e da filosofia alemã, de Hegel a Heidegger.

De fato, assim como, na virada do século, a despeito de encontrar-se na era das vanguardas históricas, Freud gira em torno da grande tradição do humanismo clássico, indo buscar nesse caldo de cultura o mito fundador da psicanálise e as literaturas que a antecipam, o jovem Lacan forma-se no interior do grupo não só de Breton mas _ antes que eles sejam expulsos das fileiras do movimento _, de expoentes da primeira fase do movimento surrealista tais que  Antonin Artaud, Georges Bataille e Raymond Queneau. Assim, se, de um lado, é sempre possível continuar vendo nas simbologias do inconsciente, tal como Freud já as descreve, apelando para a literatura, os avanços de uma linguagem poética já problemática, cujo sentido se furta, e cuja interpretação é sempre um risco, podemos também pensar que o inconsciente lacaniano, atualizando o freudiano, tornou-se um poeta surrealista.

Trata-se de uma filiação que não deixa de ser irônica, quando se sabe quanto Freud repeliu os avanços do autor dos manifestos surrealistas, seja em 1922, quando Breton lhe bate às portas, em Viena, para conversar sobre o comum interesse de ambos pelos sonhos, sendo então posto numa fila de espera, junto com os demais pacientes do consultório da Bergasse; seja em 1932, quando Breton lhe envia um exemplar de Os vasos comunicantes, permitindo-se, numa carta, chamar-lhe a atenção para supostas lacunas bibliográficas em A interpretação dos sonhos, lacunas que, na verdade, só existiam na versão abreviada da tradução francesa de que o poeta dispunha, e gafe a que Freud retruca com um pedido de explicações (Breton, 1992, p. 211 e subsequentes, Roudinesco, 1994, p. 37).
Mesmo assim, as questões de Lacan são as mesmas de Freud. Ponto por ponto, e ainda que se empenhe em tudo renomear _ de tal sorte, por exemplo, que as histéricas de carne-e-osso da clínica vienense se reconvertem aqui num imaterial “sujeito”, cujos desejos visam a um gramatical “objeto”_, Lacan retém todos os grandes temas freudianos. A ironia é que, pela força da influência dos surrealistas, essa retomada de Freud, além de render uma metapsicanálise –comentário da psicanálise matricial freudiana com o tempo transformada em comentário de si mesma _ , é também uma transfiguração de Freud.

Lacan estica o pensamento de Freud até a vertigem, o surto, o êxtase, o desregramento que o ponto de vista surreal, por definição, persegue.
Abaixo, um pequeno dicionário desse Freud surrealizado.

 DESEJO & OBJET TROUVÉ

Até porque Lacan só contava com uma palavra para denominar o desejo _ “désir” _, ao passo que Freud tinha várias _ Begierde, Wunsch, Wunscherfüllunga, Wunschbefriedgung _ é a psicanálise lacaniana, trazendo-o incessantemente à baila, que vai elevar o desejo à categoria de conceito. Há mais que a inflexão da língua ou uma variação da nomenclatura, neste caso. Na verdade, examinando as coisas mais de perto, trata-se de uma reformulação da doutrina que se põe a flertar, flagrantemente, com o indizível.
De fato, se tivermos em mente que, na acepção de Lacan, o desejo extrapola as definições freudianas clássicas de movimento em direção a um objeto e de satisfação de um anseio que o sonho, como exutório, realiza, assumindo o sentido de inclinação ao absoluto, de movimento que tende ao não-objeto _  de um desejo do desejo, enfim _ , o surrealismo pode funcionar como um interessante interpretante.

Movimentando-se, por definição, no irreal, o surrealismo antecipa-se à psicanálise lacaniana ao basear-se numa visão do mundo externo que, sendo igualmente trágica, envolve a experiência de não-objetos. Faz parte dessa experiência a metáfora enlouquecida. De fato, se para dizer um objeto a metáfora já tem que recorrer a outro objeto, chamando-o pelo nome do outro  _ o “amor” por “chama”, por exemplo, para tomar o mais corriqueiro  dos exemplos _,  a metáfora surrealista radicaliza esse deslocamento. Pensemos nos corpos de mulher de Salvador Dali, cujo tronco pode ser um gaveteiro, ou em certos desenhos de Nadja, a heroína de Breton, em que uma cabeça emerge de dentro de uma luva que tomou o lugar do corpo inteiro, ou em que um par de olhos são duas pétalas de flor, ou em que um casal de amantes torna-se a imagem anfíbia de um felino incrustado na barriga de uma ave... (Breton, 1988, p. 680, 720, 722).  Ao invés da ressinalização ou refiguração dos objetos que seria de se esperar da força expressiva de um tropo, o que temos com essa radicalização é uma atestação da impossibilidade de dizer, inseparável da irrealização de tudo aquilo que, desse modo, fica não-dito.

Se a bateria metafórica surreal já vem falando de não-objetos, o “objet trouvé” vai mais longe, é um predecessor do “objeto a” e sua intangibilidade. Dividindo com o ditado automático a posição de conceito fundamental da escola e de veículo da surrealidade, ele faz-se presente aos mais antigos breviários do movimento surrealista. Trata-se daquele objeto que nunca radica em si mesmo, mas é sempre o anúncio de um outro. Em Nadja, um dos mais importantes textos de Breton e um dos pilares do surrealismo, a personagem central, ela mesma irreal para o narrador bretoniano, não cessa de se deparar com essa categoria insólita. Assim, por exemplo, Nadja divisa algo tão terra-a-terra quanto um portão _ o portão do Palácio de Justiça, em Paris, por exemplo _, e é todo uma onda de conexões que então se instala, não como simples evocação poética, mas como transe.

Um outro desses estremecimentos é trazido pelos “ready made ”. No Dictionnaire Abregé du Surréalisme, Breton e Éluard o definem como “objeto usual promovido à dignidade de objeto de arte pela simples preferência do artista”, e trazem como exemplo de tal objeto uma tábua de passar roupa. Há nesse trânsito da tábua de passar roupa para a galeria de artes uma desapropriação da realidade do objeto que é tão maior quanto ele é escolhido ao acaso. Isso cria um efeito de absurdo de que Breton nos dá logo a medida, ao inverter a ideia, sugerindo-nos pensar, não no banal artefato levado para o território do sublime, mas em Rembrandt tornado...tábua de passar roupa! (Breton & Éluard, 1992, p. 837).

Não bastasse tais atentados ao corpo dos objetos, a própria definição de “realidade” trazida pelo Dictionnaire vai ainda reduzi-los a cifras, vai transmutá-los em letras, exatamente como faz Lacan, quando acena com um “objeto a”, de que só se pode ter o indício mínimo. De fato, note-se a definição de “realidade” que nos dão Breton e Éluard: “A realidade está na ponta dos dedos daquela mulher que assopra nas páginas dos dicionários” (Breton & Éluard, 1992, p. 38). Toda a empiria, aqui, se semiotiza.
É consensual dizer-se que a releitura que Lacan faz de Freud vai no sentido de cancelar a alçada da empiria própria do cientificismo oitocentista e o organicismo de seu mestre. O que se tem dito menos é, primeiro, que o surrealismo tem tudo a ver com isso, segundo, que Lacan tem tudo a ver com o surrealismo.

 GOZO & SADE

Pouquíssimo investido por Freud, que se concentra na questão do prazer, “jouissance” é outro termo que ganha proporção em Lacan, a ponto de assumir posição de conceito.
O gozo não é a satisfação, ou a volúpia, ou o orgasmo, assim como o objeto não é a coisa pegável. Como no caso anterior, trata-se de uma noção excessiva, também ligada a uma vertigem ou a uma busca de absoluto. E pode-se pensar que tampouco a obsessão do gozo ocorreria a Lacan se não estivesse, antes, na trajetória destes novos malditos que, em seus jovens anos, tanto o impressionaram: os surrealistas.
De fato, sendo para Lacan psiquicamente estruturante, como a neurose o é para Freud, o martelante discurso do gozo é tão mais especificamente lacaniano quanto Lacan está cercado, por todos os lados, de sadólogos. São tantos e tais que se poderia afirmar que, somente em sua reformulação francesa, a ciência do inconsciente chega a Sade. Tanto mais que, se Sade já estava no campo das perversões freudianas, assim como Masoch, Freud pouco se importa com o fundo literário do “sadismo” e do “masoquismo”, nomenclaturas que recebe prontas da psiquiatria alemã oitocentista, sem cuidar dos artistas de que elas saem.

Já Lacan assume as dívidas literárias desses conceitos, sob a inspiração evidente de seus correligionários. De fato, há um verbete “Sade” no Dictionnaire du surréalisme, bem como uma seção “Sade” na Anthologie de l´humour noir, mostrando que Breton e Éluard estão atentos ao assunto. Mas mais que nos centros decisórios do surrealismo, é nas diásporas que se cultiva a até então censurada herança do autor. Assim, dentre os primeiríssimos cultores de Sade, temos Georges Bataille, o dissidente da ortodoxia bretoniana que vai dar ao erotismo mais absolutamente transgressivo e mais conectado ao mal estatuto de objeto não apenas pensável mas apreciável. Como prova o fato de recepcionar até mesmo o atentado sadiano ao mais barrado dos objetos  _ o corpo materno _, que é tão vilipendiado em seu Madame Edwarda quanto em A Filosofia na alcova, quando, no sétimo e último diálogo, a roda de corruptores ali em ação abate-se sexualmente sobre a mãe de Eugénie, na presença da própria filha (Sade, 1999, p. 185-198).
As relações de mão dupla entre Lacan e este renegado de Breton que é Bataille são bem mais intensas que aquelas resumidas por Elisabeth Roudinesco, seja na sua História da psicanálise na França, seja em seu Jacques Lacan- Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Elas pertencem a um arco de acontecimentos que começa, nas adjacências do surrealismo, com um notável empreendimento de reconhecimento e recuperação dos textos de Sade. Além de Breton e Éluard, isso envolve figuras de proto e para surrealistas como Guillaume Apollinaire, primeiro editor, em 1909, de uma antologia de textos de Sade; Maurice Heine, descobridor e editor, em 1929, do manuscrito perdido de Cento e vinte dias de Sodoma; Pierre Klossovski, autor de um estudo pioneiro datado de 1947, perturbadoramente intitulado Sade, mon prochain; Georges Bataille, cujo clássico de 1957 La littérature et le mal traz um capítulo sobre  Sade; e o próprio Lacan, cujo “Kant com Sade”, seção dos Escritos que nada mais é que um texto encomendado, e aliás não aceito, em 1962 para prefaciar uma edição completa das obras deste autor-monumento do século XVIII francês, só paulatinamente redescoberto pelas vanguardas francesas, na primeira metade do século XX.

Em Sade, Fourier, Loyola Roland Barthes notou a estranheza da língua sadiana, sua perfeita elegância na execução da tarefa de nomear o horror, a maneira como a narração da violência mais extrema se faz, aqui, na observância da gramática, da retórica e da lógica classificatória. Para Barthes, o que há de perturbador em Sade é que, agindo assim, tão comportadamente, ele faz com que tudo possa ser dito, ainda que nada seja plausível, nada possa ser tomado ao pé-da-letra. No fundo, é o mesmo processo das metáforas surreais, quando desfazem seus objetos.

De muitos modos, antes e depois de Barthes, foi repetido pelos comentadores mais sagazes que as ações a que se refere o texto de Sade são impossíveis, logo, que  issofala de outra coisa.

Para Claude Lefort, o que se consuma no boudoir dos castelos sadianos é para ser visto como a defesa veemente da república ideal que está sendo formulada, no momento em que Sade escreve. A filosofia na alcova, adverte Lefort, é um romance de ambição teórica e política, e a melhor maneira de ler esta enfiada de diálogos em que se constitui o romance é fazê-lo à luz do panfleto ali inserido _ “Franceses, mais um esforço”_, tomando tudo como um alerta republicano, na forma mais violenta. Nesse sentido, a iniciação ao gozo perverso é iniciação à emancipação. Na alcova, discutem-se as virtudes e os vícios da cidade, os fundamentos das religiões, os caminhos da felicidade, a distinção entre natureza e convenção. Tudo isso para levar a Revolução Francesa às últimas consequências, pela completa demolição de todo e qualquer mando, ainda que isso também signifique minar por dentro a própria construção revolucionária, porque isso cancela, ao mesmo tempo, toda ordem, toda hierarquia, toda possibilidade de governo. Para Lefort, o frenesi sádico é uma figuração desse impasse (Lefort in Novaes, 1990, p. 252).

Dentro da mesma ordem de reflexões, Bataille escrevia em  La littérature et le mal _ a primeira das exegeses sadianas que conhecemos _, que Sade é “o mais rebelde e enraivecido dos homens que falaram em rebelião e raiva, um homem monstruoso, possuído pela paixão de uma liberdade impossível” (Bataille, 1956, p. 79-80).

O que há de interessante no impossível sadiano é que ele capta a denegação que está no cerne do jogo perverso, a falsa afirmação do gozar que se ancora na pretensão a gozar, e no limite, na imitação _ e só na imitação _ do gozar, própria de toda encenação perversa.
É por esse lado que a  sadologia _  essa ciência surrealista _ pode nos ajudar a entender Lacan.

Resume J. D. Nazio em suas Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan que  há em Lacan três estados do gozo: o “gozo fálico”, parcial e balizado pelo recalque, como o prazer freudiano; o “mais gozar”, que tira seu excedente de prazer da permanente excitação em que a impossibilidade de verdadeiramente gozar deixa o sujeito; e o “gozo do Outro”, estado de felicidade absoluta correspondente à situação ideal de uma descarga completa das tensões originárias do desejo que se supõe ser o próprio unicamente do Outro, e cuja força está em ser, justamente, a prerrogativa do Outro.

Não há como não ver que boa parte dessa tripartição liga-se impacto de Sade, sobre quem lemos no Seminário 7, numa subseção sobre “O gozo da transgressão”,  que ele nos leva ao “absoluto do insuportável” (Lacan, 1988, p. 245).

SADE NO COLÉGIO DE PATAFÍSICA

Mas há mais que apenas Sade na topografia literária de Lacan, quando voltada para o gozo. Na verdade, estamos diante de mais de uma cultura da crueldade proverbial.

O também lento resgate da obra de Lautréamont, outro poeta festejado nos domínios bretonianos, e a imposição da figura finissecular de Alfred Jarry, seja ao teatro francês, através de Antonin Artaud, um surrealista que é um homem dos palcos, seja às letras francesas, através de Raymond Queneau, que, no seu Collège de Pataphysique, é um reivindicado continuador de Jarry, são outros tantos fatos interligados ao perverso lacaniano.

Aqui também há um derramamento de sangue sem culpa que não acaba mais. Junto com os corruptores de Sade, o herói pós-romântico Maldoror de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, que já traz no próprio nome sua índole malévola, e o tragicômico Pai Ubu de Jarry são outros tantos perversos que se revelam cruciais para os melhores espíritos da época da juventude de Lacan.

Na abertura do segundo volume da sua História da psicanálise na França, Elisabeth Roudinesco informa que há, na primeira geração de psicanalistas franceses, um cultor do surrealismo, certo Jean-Frois Wittmann, que publica artigos em revistas do grupo e que, num desses artigos, ele define Os cantos de Maldoror como “uma verdadeira bíblia do inconsciente”, com seus métodos associativos e todas as suas complicações” (Roudinesco, 1988, p.23 ).  As complicações a que este autor se refere não ficam muito longe daquelas trazidas pela “mais escandalosa obra de todos os tempos”, como diz Lacan, referindo-se à obra de Sade, num ponto do mesmo Seminário 7 em que põe Lautréamont e Sade em pé de igualdade (Lacan, 1988, p. 245).
Por sua vez, sendo tão cruel, violento e escatológico quanto o de Sade, o texto de Jarry acrescenta-lhe uma anarquia formal. Desfecha um ataque frontal contra a bela língua francesa, que, neste contexto, até porque Jarry está em luta aberta contra a instituição escolar _  onde o “élève” é aquele que deve ser “elevé” (elevado) acima do erro _, resulta totalmente desfigurada. Assim é que Pai Ubu troca as letras, dando-nos de saída “merdre” por “merde”: “Alors, voilà. Je tâcherai de lui marcher sur les pieds, il regimbera, alors je lui dirai: MERDRE, et à ce signal vous vous jetterai sur lui” (Jarry, 1978. P. 48).

Citações literais e remodelagens dessas palavras desfiguradas são encontráveis por toda parte em Lacan, que frequenta os patafísicos. Não só quando, saudando a maneira graciosa de Queneau anarquizar a educação nacional francesa, transcreve, em alguma parte, “l´hic et nunc”, ubuescamente, como “liquette ninque”. Nem só quando atentando contra o alemão de Freud, afrancesa o “Unbewuste”, tornado “unebévue” (um descuido, um lapso). Mas principalmente quando, em “Kant com Sade”, faz o gozo ubuesco da infração invadir e abalar o terreno da lei kantiana, convocando uma máxima derrisória de Ubu: “Ilustremos [a lei de Kant], ainda que ao preço de uma irreverência, através de uma máxima retocada do Pai Ubu: ´Viva a Polônia pois se não houvesse a Polônia não haveria poloneses`”.  (Lacan, 1998, p. 779)
Temos aí um daqueles chistes que, ferindo particularmente o raciocínio lógico, Freud teria posto nos erros de pensamento, junto com a piada do sujeito que, tendo emprestado um utensílio de alguém, e diante da reclamação desse algum de que o mesmo utensílio voltou estragado, afirma, ao mesmo tempo, que o devolveu intacto e que ele já vinha furado. Sua intervenção no final do comentário de Kant cumpre a função de sublinhar que, como simulação do gozar, a perversão envolve humor. Sem ser propriamente o louco, o perverso é um comediante.
Como o próprio Lacan _ aliás _, ele mesmo um piadista sádico, impressionado que foi por todas essas correntes do gozo transgressivo.

 FALTA & SIGNIFICANTE & METÁFORAS HUGOLIANAS SURREAIS

 Vimos que em psicanálise lacaniana o objeto do desejo é marcado por um “não”. Não se trata só do objeto. Também o sujeito que constitui para si não-objetos é um não-sujeito.

Bem antes da entrada em cena dos linguistas estruturais que, nos anos de 1960, ocuparam a primeira fila dos Seminários, em Sainte-Anne, foi uma dupla de importantes gramáticos franceses que começou a dar a Lacan, desde sempre atento às questões da língua e ao que significa falar, a idéia de um não-sujeito. Estamos falando de Jean Damourette (1870-1943) e de seu sobrinho Édouard Pichon (1890-1940). Este último um psicanalista pioneiro, ligado à primeira psicanálise francesa, além de resenhista, nos anos de 1930, do intrincado texto lacaniano intitulado Os complexos familiares,cuja incompreensibilidade deplora. Isso não o impediria de admitir o então jovem psiquiatra Lacan, que já disserta à la Freud sobre a instituição familiar, nos quadros da Associação Francesa de Psicanálise, na qualidade de seu presidente,.
É de Pichon um estudo descritivo dos pronomes pessoais franceses de que, de questões coloquiais aparentemente as mais simples, são extraídas consequências as mais inesperadas e as mais interessantes para o campo da filosofia  do sujeito, que tanto interessa a Lacan. Debruçando-se particularmente sobre o “je” e o “moi”, esse trabalho revela um mundo por trás do pronome “eu”. Como em português, a língua francesa tem dois substitutos para a primeira pessoa do singular, o “je”, pronome pessoal do caso reto e o “moi”, pronome pessoal do caso oblíquo. Mas diferentemente do que acontece com o português, em francês, ambos os pronomes podem fazer papel de sujeito, e ambos podem fazer juntos esse papel, numa operação estranhamente reiterativa (“Je vais”/ “Moi je vais”). Como entendê-lo? O que Pichon percebe é que a forma oblíqua introduz um sujeito que é mais pleno que o da forma reta, uma vez que o reforça (“C´est sûr que j´y vais, moi”). E que é na forma oblíqua que está a personalidade, o “empersonamento”, enquanto que a forma reta é vazia, tudo se passando como se referisse uma não-pessoa (Damourette & Pichon, 1968).

Sem dúvida, é este empurrão sutil da gramática, a que se somariam futuramente todos aqueles outros dados pelas linguísticas de Roman Jakobson e Émile Benveniste, que vai levar Lacan, tomando o inconsciente como uma linguagem, a falar num “sujeito do inconsciente”. O que fica tecnicamente demonstrado, assim, é que o sujeito que não é mestre em sua própria casa, como formulava Freud, já o é desde a linguagem, ou por simplesmente falar. Mas também que a língua em que Descartes formulou a certeza do sujeito pensante claro e unívoco é a língua dos dois sujeitos, ou do sujeito partido. Assim, é Pichon, no limite, quem ampara os belos desenvolvimentos do capítulo “O sujeito da certeza”, no Seminário XI, em que Lacan escreve que, se Descartes e Freud coincidem ao pressupor que um pensamento já está lá, no próprio movimento da dúvida, provando a existência do sujeito que oscila, não é da mesma coisa que os dois estão falando, porque o sonho e o lapso, como dimensões da dúvida, não provam a existência de um sujeito livre, mas, ao contrário, apontam a existência de um outro sujeito pensando no lugar do sujeito (Lacan, 1985, p. 39).

Com a linguagem assumindo tal função probatória, não é de estranhar que a psicanálise lacaniana dê tanto peso às duas figuras de linguagem a que as linguísticas gerais reduziram todo o catálogo dos tropos, vendo nelas a polaridade inerente a qualquer linguagem _ a metáfora e a metonímia _, e troque por elas a condensação e o deslocamento freudianos, numa verdadeira poetização desse instrumental psicanalítico de base. Afinal, com um sujeito assim duvidoso no comando da fala, que mais nos poderiam elas oferecer senão desconexões lexicais?
É disso que tratam os dois capítulos dedicados ao significante/significado/metáfora/metonímia do Seminário 3 sobre as psicoses. É aí que entram Victor Hugo e o poema ‘Booz endormi” do álbum La Légende des siècles, uma das referências literárias mais insistentes do conjunto dos seminários. Neste poema, no igualmente muito referido verso  “sa gerbe n´était point avare ni haineuse” (seu feixe não era avarento nem odiento), “gerbe” metaforiza Booz, de modo surreal.

De fato, ainda que tudo gire, desta vez, em torno de um verso de Victor Hugo, não se trata do romantismo francês, como poderia parecer, à primeira vista, mas, novamente, de uma discussão que se faz sob a influência do surrealismo. No segundo dos dois mencionados capítulos, “Articulação significante e transferência de significado”, Lacan não hesita em chamar a conexão gerbe/Booz de surrealista, pelo seu não-senso, depois de nos dizer que a literatura não esperou o surrealismo para fazer metáforas, ironia que significa que, sendo o surrealismo o grande produtor de metáforas, a metáfora, que é sempre, de algum modo, um nonsense, será sempre surrealista, ou completamente absurda. Nem a metáfora se separa claramente da metonímia, já que Lacan também não hesita em dizer, no mesmo ponto, que a metáfora hugolina é uma metonímia, pelo que carrega de menção subjacente ao pênis real de Booz, isto é, de significância do parcial (1).

É em meio a todas essas reversões que avança uma explanação _ de difícil acompanhamento, enfatize-se _ sobre a “identificação” e a “transferência”. Ambas são lindamente referidas por Lacan aos processos combinatórios da linguagem, tais como definidos por Jakobson e por ele remetidos à metáfora e a metonímia. Ficam então os deslocamentos do significado, que são próprios de nossa oscilante auto-constituição e de nossa perturbada constituição da alteridade, tal como a entrevê a psicanálise, por conta não apenas do trabalho da língua mas de uma convergência vertiginosa entre o inconsciente e os arsenais do verso.

Tudo isso nos aconselha a ter em mente a primeira vanguarda da história _ a romântica _ e sua desconstrução do protocolo clássico, consumada pela vanguarda surrealista, se quisermos aceder de fato ao intrincado mundo mental de Lacan

NOME-DO-PAI & FALO & FORACLUSAO& ARTAUD

Há diferentes trilhas genealógicas possíveis para a não menos intrincada teoria lacaniana da psicose.

Uma das pistas é a leitura cruzada de Freud e Lévy-Strauss, que permite a Lacan tomar a proibição do incesto, não como uma verdade tirada da experiência vivida, mas como um operador simbólico. O fato de que a mãe se conhece, necessariamente, enquanto que o pai só se pode deduzir é inerente a essa reformulação do complexo edipiano em termos straussianos, que transforma o pai em significante e leva a falar em “nome-do-Pai”, “função paterna”, “metáfora paterna”, e a pôr o desmoronamento psicótico na conta da “foraclusão”, isto é, no apagamento da “lei do Pai”.

Uma outra pista é uma outra leitura dos mesmos Damourette e Pichon, a que essa teoria deve também a idéia da “foraclusão”, originalmente pertencente ao vocabulário jurídico, em que c refere a prescrição de um direito, em psicanálise lacaniana entendida como uma espécie de apagamento ou rasura de um significante, perfeita para assinalar a renegação (Verleugnung) ou o desmentido psicótico do real.

Foi ao chamar a atenção para certos mecanismos da negação em francês, bastante semelhantes àqueles relativos ao complexo funcionamento do “je” e do “moi”, que, em 1928, num artigo intitulado “Sobre a significação psicológica da negação em francês”, Damourette e Pichon puseram Lacan no encalço da “foraclusão”. Desta feita mostrando que também a partícula “ne”, em certos casos, só aparentemente negativa, pode esvaziar-se por completo de sentido. Isso acontece em construções como “je crains beaucoup qu ´il ne vienne”, que não significa exatamente “temo que ele não venha”, mas, ao contrário, e apesar da negação, que, neste caso, parece não fazer sentido, “temo que ele venha” (Damourette & Pichon, 1968).

Considerado expletivo, até então, o “ne” costumava ser visto, até então, e em consonância, como sem função. Mas Damourette e Pichon lhe dão significado psicológico. Percebem uma conjuração na profundeza desse tipo de enunciado, em que esse tipo de “não” vale por “sim”. Sugerem lê-lo deste modo: temendo, no fundo, que a pessoa viesse, o enunciador providenciou um não, que surge aí, aparentemente, como sem função, mas que é, na verdade, pleno de significado, exprime um voto, um exorcismo, a passagem ao ato verbal de um desejo de que a coisa temida não aconteça. Trata-se, na verdade, como também perceberia Lacan, de uma negação negada ou renegada.

A terceira via é literária e nos leva de volta aos surrealistas com os quais Lacan tem seu destino cruzado..

Entra aqui a hoje conhecida dívida da tese de doutorado de Lacan, datada de 1932, para com a teoria da “paranóia crítica”, formulada por Salvador Dali e encampada por todo o movimento. Contendo uma definição original da loucura paranóide como interpretação legítima da realidade, ainda que delirante, e não como distorção da realidade, é dessa referência que o primeiro Lacan lança mão, rompendo, ainda que, neste momento, secretamente, com a ortodoxia dos médicos alienistas, no seio da qual é formado. Roudinesco tem uma nota sagaz sobre isso: “A tese sobre a paranóia era atravessada por um movimento de reapropriação das posições surrealistas. Ora, Lacan não dizia uma palavra acerca dessa influência maior. Omitia cuidadosamente suas fontes nesse domínio, não mencionava nenhum dos grandes textos surrealistas que o haviam inspirado e guardava silêncio sobre os nomes de Dali, Breton e Éluard. Preocupado com sua carreira, não queria desagradar nem seus mestres em psiquiatria, que rejeitavam a vanguarda literária, nem os defensores da ortodoxia freudiana. Cálculo errado: os primeiros a prestar-lhe homenagem serão aqueles cuja importância- ele encobria, e os primeiros a execrá-lo, aqueles a quem queria agradar (Roudinesco, 1994, 70-71))

Com este primeiro passo intelectual que se esboça, assim, timidamente, mas termina percebido pela vanguarda da época, Lacan dá continuidade à grande briga dos surrealistas com a psiquiatria de seu tempo. Rumorosa discórdia de que temos um fascinante dossiê na abertura do Segundo Manifesto do Surrealismo, para onde Breton levou a transcrição de um número do Journal de l´Aliénation Mentale, em que médicos de alienados depõem contra os surrealistas, em termos indignados. Fala aí o próprio Clérambault, psiquiatra muito interessado, no início do século passado, na classificação dos tipos de psicose, e muito mencionado por Roudinesco, com quem o formando Lacan mantém relações de amor e ódio (Breton, 1992, p.777).  Não é de estranhar que a tese que sai, em 1932, da formação de Lacan no seio desses alienistas bombardeados pelo Segundo Manifesto bretoniano seja recepcionada pelos próprios surrealistas, os únicos a lhe darem atenção. Como se sobejamente se sabe, em 1933, ela é resenhada por René Crevel na revista Surréalisme au  service de la révolution e pelo próprio Dali na revista Minotaure.

Mas entra aqui também uma outra referência: Antonin Artaud. Ainda que haja oito menções a este maldito dos malditos na História da Piscanálise na França e quatro no Dicionário da Psicanálise de Elisabeth Roudinesco, Artaud segue até hoje ignorado como mentor de Lacan. Isso não impede o fato de que a psicanálise lacaniana tenha contraído uma enorme dívida também com este surrealista da primeira hora, o mais desadaptado de todos, e logo expulso do movimento. Não que Lacan assuma essa influência. Também neste caso, trata-se de uma presença subterrânea. E tanto mais efetiva.

Ainda que, terminalmente, recue em relação aos valores patriarcais do freudismo _ ou para dizê-lo como Jorge Forbes, aos valores “verticais” e “pai-orientados” de Freud (Forbes, 2012) _, a psicanálise lacaniana é uma psicanálise do Pai. Aqui como em Freud, a lógica da loucura criminal passa por uma rasura da inscrição paterna.  Ora, na efervescente cultura da demolição patriarcal que tomou conta da literatura francesa nos primeiros decênios do século XX, Artaud é não apenas o artista que mais refere o Pai mas o que mais o refere nos termos de Lacan.
De fato, uma pesquisa acautelada revela que, muito antes de Lacan, ele já aparece desvinculando o Pai _ que também grafa com maiúscula _ do procriador. Já vê na paternidade algo mais que a função pedagógica que a cultura atribui à paternagem. Já toma o Pai como uma noção, e como uma noção fundadora de todas as outras noções. Sempre soubemos que foi Lévi-Strauss, e a  leitura de As estruturas fundamentais do parentesco, que levaram Lacan a deslocar completamente a topografia freudiana para o território do simbólico. Sabemos também que, em boa medida, o nome-do-Pai tem a ver com a experiência dolorosa que faz Lacan da paternidade, em dois sentidos: como filho esmagado pela tirania de seu próprio pai e como pai de Judith, sua filha com Sylvia Bataille, nascida quando esta se acha ainda formalmente casada com Bataille, fato que, na época, pela força da legislação francesa, obriga o casal a registrar a menina com o nome do legítimo marido, abrindo os olhos de Lacan para a questão da força do nome.

 Do que não desconfiamos é de que é graças a Artaud que Lacan põe-se a encarar o Pai como um significante, a paternidade, como o exercício de uma nomeação, a loucura, como o resultado da ausência ou a foraclusão desse significante, que vai então ser preenchido pelo delírio.
De fato, reduzir o pai a um fundamento é algo que Artaud faz muito cedo. Desde quando ainda pertence aos quadros do movimento surrealista. Fato ainda mais interessante é que o faz, justamente, ao definir o movimento, que surge no pós-primeira guerra, como uma verdadeira insurreição contra-cultural.Veja-se nesta declaração de Artaud, extraída de um de seus primeiros escritos, hoje inserido na colossal obra completa que a editora Galimard passou a editar nos anos de 1970, como, através do Pai, se insinua aí, avant la lettre, o apontamento da geração masculina da lei e da linguagem: “O surrealismo foi uma profunda, interior insurreição contra todas as formas do Pai, contra a preponderânca invasora do Pai nos costumes e nas ideias (Artaud, 1980, p. 141).  De modo muito claro, na inusitada expressão “formas do Pai” que aí temos, avança o pai simbólico, aquele mesmo que é recoberto pelo conceito lacaniano “nome-do-Pai”.

São dessa mesma fase inicial de Artaud as violentas admoestações _ os “Adresses” _ que ele envia aos representantes do Pai: o papa, os reitores das universidades, o Dalai Lama, os cientistas, sendo seguido pelos companheiros, que também mandam cartas aos médicos-chefes dos asilos de loucos. Essa tentativa de destruição da autoridade paterna ecoa Sade, cuja briga é sempre, no limite, com Deus, o alvo privilegiado da discussão política desenvolvida em A Filosofia na Alcova, onde lemos:“Sim, destrua-se para sempre toda idéia de Deus e façam-se soldados de seus padres” (Artaud, 1980, p.135). Isso continuaria, depois, nas estocadas do teatro da crueldade contra todo o teatro escrito, em meio àquela defesa da restauração do corpo, da dança e da mímica que caracteriza a revolução artaudiana, quando ele passa a investir contra Shakespeare tornado deus e pai. Em A escritura e a diferença, onde temos nada menos que dois capítulos sobre Artaud, Jacques Derrida fala, a propósito, num assassinato do Pai: “Está sempre na origem da crueldade de Artaud um assassínio, e em primeiro lugar um parricídio, esse teatro que ele quer restaurar é a mão levantada contra o detentor abusivo do logos, contra o pai, contra o Deus de um palco submetido ao poder da palavra e do texto” (Derrida, 1995, p. 159).

Mais tarde ainda, nos anos de 1940, quando Artaud continua sua obra nos asilos psiquiátricos, imprecações dessa mesma explosividade serão dirigidas aos médicos. Estas são de um interesse ainda maior para quem queira pesquisar as relações do surrealismo com uma psicanálise que, no lugar das Anna O., pôs as Aimée e as Irmãs Papin, fundando-se sobre uma saga de mulheres loucas.

Mas o fato mais interessante a assinalar, quando se busca compreender, pelo ângulo de Artaud, o peso dado à loucura pela psicanálise lacaniana, é que, de todos os surrealistas, é ele o psicótico. Vale dizer: aquele que fala da loucura de dentro. Elisabeth Roudinesco refere-se a essa dupla competência ao mencionar sua “escrita monumental da loucura” (Roudinesco, 1994, p. 569). Fascinado que estava desde o início pelo estado arrebatado de consciência das loucas _  assim como os surrealistas pelo de Nadja e Violette Nozière _ , imagine-se Lacan diante disso!

Em 2003, na abertura do primeiro número de sua nova série, a revista francesa Luna Park, importante publicação voltada para as vanguardas, editada pelo crítico, historiador da arte e especialista no movimento dadá Marc Dachy, tornou pública, com mais de 20 anos de atraso, uma  longa entrevista feita por um professor francês, em 1984, com o Doutor Ferdière, o psiquiatra que cuidou de Artaud em Rodez, administrando-lhe eletrochoques (Luna Park, 2003).  

Proposta por amantes do dadaísmo, trata-se de uma importante retomada histórica, que, por todo o anterior, é uma leitura e tanto para lacanianos!

Bibliografía

ARTAUD, Antonin. “Messages révolutionnaires” Oeuvres, Tome lI. Paris; Gallimard, 1980.
BATAILLE, Georges. La littérature et le mal. Paris: Follio, Col. Essais, 1956.
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CAMPOS, Haroldo. “O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua” IN Oscar Cesarotto org. Idéias de Lacan. São Paulo: Iluminuras,  1995.
DAMOURETTE, Jacques  & PICHON, Édouard. Essai de grammaire de la langue française. Paris: Édition d´Arthey, 1968.
DERRIDA, Jacques . A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.
FORBES, Jorge. Inconsciente e responsabilidade. Psicanálise do século XXI. São Paulo: Manole, 2012.
LACAN,  Jacques.  O Seminário Livro 3/As Psicoses.Tradução de Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge  Zahar Editor, 1985.
LACAN, Jacques. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, Jacques . O Seminário Livro 7 A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro:Jorge  Zahar Editor, 1988.
- Jacques Lacan. O Seminário, Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge  Zahar Editor, 1985.
ARRY, Alfred. Ubu, Acte I, Scène 7. Paris: Gallimard, Col. Folio Classique, 1978.
LEFORT, Claude.  “Sade, o desejo de saber e o desejo de corromper” em NOVAES, Adauto org. O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ROUDINESCO, Elizabeth. História da Psicanálise na França. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
ROUDINESCO, Elizabeth. Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
SADE.  A Filosofia na alcova. Tradução, posfácio e notas de Augusto Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 185-198.
REVUE LUNA PARK, Marc Dachy Éditeur.  Nouvelle Série, Janvier, 2003.

Notas

(1) Jacques Lacan, O Seminário/Livro 3 "As Psicoses".Tradução de Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge  Zahar Editor, 1985, p. 255.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
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