Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Delírio, linguagem e psicose:
contribuições dos primeiros seminários de Lacan
ao tratamento possível das psicoses

Michele Roman Faria

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Resumo

O artigo apresenta uma reflexão sobre o manejo clínico e o tratamento psicanalítico das psicoses a partir das contribuições teóricas iniciais de Lacan (especialmente as do Seminário 3, de 1955-56, e do texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses", de 1958). Pretende-se mostrar que a relação entre o delírio paranóico, a linguagem e o imaginário, abordada no início do ensino de Lacan, mantém-se importante indicativo das vias do tratamento possível das psicoses pela psicanálise.

Palavras-chave: tratamento psicanalítico das psicoses; psicose; paranóia; delírio; psicanálise.

 

Em sua abordagem do tema das psicoses no Seminário 3 (Lacan, 1955-56), assim como em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (Lacan, 1958), Lacan seguirá os passos de Freud. Retomará, da teoria freudiana, os conceitos que considera fundamentais para a compreensão d e seu funcionamento, e encontrará em Schreber o caso paradigmático de psicose da literatura psicanalítica.

Schreber não é, entretanto, um "caso clínico". Como lembrará Lacan no Seminário 3, "o caso Schreber, para nós, é o texto de Schreber." (Lacan, 1955-56, p.121) Embora vivessem na mesma época (Schreber faleceu em 14 de abril de 1914, aos 69 anos, no sanatório de Dösen), Freud não chegou a conhecê-lo pessoalmente. O artigo Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia, publicado por Freud apenas quatro anos antes da morte de Schreber, em 1911, baseia-se inteiramente no relato das Memórias de um doente de nervos. "Penso ser legítimo basear interpretações analíticas na história clínica de um paciente que sofria de paranóia (ou, precisamente, de dementia paranoides) e a quem nunca vi, mas que escreveu sua própria história clínica e publicou-a", afirma Freud (Freud, 1911, p.23).

As observações de Freud não são, portanto, observações de um analista de Schreber. O próprio Freud não escondia suas dúvidas a respeito da viabilidade de tratar os casos de psicose pelo método psicanalítico.[1] Assim, o que encontramos no texto freudiano não é um relato de tratamento, mas contribuições à compreensão do funcionamento psíquico das psicoses, tendo como referência a psicose desencadeada, com um delírio paranóico já bem estruturado.

O paranóico delirante (e não seu tratamento analítico) é também a referência de Lacan para abordar as psicoses em 1955-56, em seu terceiro seminário. Vale lembrar que a paranóia é justamente o tema que aproximara Lacan da psicanálise em 1932, em sua tese de Doutorado [2]

Destaca-se, portanto, na abordagem da paranóia por Freud e Lacan, a importância do delírio já estruturado como evidência clínica paradigmática das psicoses. Levará algum tempo até que a psicose comece a ser pensada como estrutura clínica independentemente do surto psicótico – o que distinguirá radicalmente a abordagem psicanalítica da psiquiátrica. A porta de entrada para a compreensão das psicoses pela psicanálise é, portanto, o delírio, e é nele que Freud e Lacan encontrarão os elementos essenciais para a fundamentação de suas hipóteses sobre a estrutura e o funcionamento da psicose.

Ao retomar a teoria freudiana sobre as psicoses, Lacan contará inicialmente com o auxílio da linguística, que rapidamente tomará o centro de seu projeto de "retorno a Freud" e lhe permitirá desenvolver conceitos que serão referência central para o entendimento da psicose, especialmente naquilo que a distingue da neurose. Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses (Lacan, 1958), desenvolverá a fórmula da metáfora paterna, essencial para a compreensão do funcionamento das neuroses e para localizar aquilo que "não funciona" nas psicoses [3]. Do lado das psicoses e suas particularidades, proporá uma interessante reflexão a respeito da relação entre o delírio paranóico, a linguagem e o imaginário. É desta reflexão que iremos nos ocupar no presente artigo.

Schreber e a paranóia

Com suas Memórias, Schreber oferece ao leitor uma rica oportunidade de compartilhar do universo delirante da psicose. Movido pela necessidade de fornecer uma explicação sobre "as aparentes estranhezas" (Schreber, p.29) de sua conduta às pessoas que iriam constituir seu círculo de relações ao sair do sanatório [4], Schreber narra com detalhes impressionantes o surgimento e a evolução de sua doença, suas internações e os tratamentos a que foi submetido. Todos esses acontecimentos são alinhavados por uma certeza: "Em consequência de minha doença, entrei em relações bastante particulares com Deus e – apresso-me a acrescentar – em si contraditórias com a Ordem do Mundo." (Schreber, p.31)

Dessa certeza, derivam muitas outras, que vão compondo um sistema delirante onde acontecimentos, situações, personagens e pensamentos ganham lugar e passam a ser compreendidos e interpretados. Até mesmo o próprio tratamento a que fora submetido sob a condução do dr. Flechsig adquire contorno delirante em sua narrativa:

O modo exterior de tratamento me parecia corresponder à intenção anunciada na língua dos nervos; mantinham-me semanas inteiras na cama, privando-me das minhas roupas para – como acreditava – tornar mais acessíveis para mim as sensações voluptuosas, que podiam ser estimuladas pelos nervos femininos que já penetravam cada vez mais em meu corpo; empregavam também meios (medicamentos) que, de acordo com a minha convicção, visavam o mesmo objetivo, razão pela qual eu me recusava a tomá-los ou, quando eram impingidos à força pelos enfermeiros, eu os cuspia de volta. (Schreber, p.67-68)

O real vai sendo costurado pelo sentido do delírio, e esse sentido passa a ser o ponto de convergência de todos os pensamentos, sentimentos e acontecimentos da vida de Schreber [5]

A doença de Schreber é, portanto, uma doença de excesso de sentido. É o que Lacan chamará, no Seminário 3, de "intuição delirante" (Lacan, 1955-56, p.17-18): nada é por acaso, para todo acontecimento há uma razão. Cada acontecimento, cada conduta de Schreber e daqueles que o cercam parece estar encadeado a um emaranhado de outros acontecimentos, sempre repletos de um sentido que Schreber se esforça em relatar detalhadamente em suas Memórias.

Estamos portanto no sentido, eixo central do tratamento analítico desde Freud. "Os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente" (Freud, 1916-17, p.305), afirma Freud em uma de suas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Entretanto, é evidente que o sentido enigmático e quase inconfessável dos sintomas neuróticos não é da mesma ordem do sentido consistente, rígido e inabalável que se articula no delírio paranóico.

Os sentidos schreberianos não possuem o mesmo mistério, sutileza e maleabilidade daqueles que vão sendo construído s e revelados na análise da fobia de cavalos do pequeno Hans, por exemplo, que deixam sempre lugar para a incerteza, a dúvida, para o surgimento de um sentido outro, exigindo constante reformulação e reordenação dos sentidos anteriores. Como lembrará Lacan, "para compreender a função do cavalo, o caminho não é buscar o equivalente do cavalo: se é o próprio pequeno Hans, ou a mãe do pequeno Hans, ou o pai do pequeno Hans. É sucessivamente tudo isso, e ainda muitas outras coisas mais" (Lacan, 1956-57, p.313)

Tais características do trabalho com o sintoma, na neurose, levarão Lacan a situar, em Intervenção sobre a transferência, a psicanálise como "uma experiência dialética." (Lacan, 1951, p.215) No Seminário 3, Lacan refere-se a tal dialética afirmando que...

...o próprio do comportamento humano é a movência dialética das ações, dos desejos e dos valores, que os faz não somente mudar a todo momento, mas de maneira contínua, e até mesmo passar a valores estritamente opostos em função de um rodeio de diálogo. (Lacan, 1955-56, p.32)

O delírio, entretanto, caracteriza-se por ser "inacessível, inerte, estagnante em relação a qualquer dialética" (Idem, p.31). Nas psicoses, lembra Lacan, "o fenômeno está fechado a toda composição dialética." (Idem, p.32) Em Função e campo, Lacan afirmará:

Na loucura, seja qual for sua natureza, convém reconhecermos, de um lado, a liberdade negativa de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer, ou seja, aquilo a que chamamos obstáculo à transferência, e, de outro lado, a formação singular de um delírio que – fabulatório, fantástico ou cosmológico; interpretativo, reinvindicativo ou idealista – objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética. (Lacan, 1953, p.281. Grifo nosso)

A fala do psicótico revela uma linguagem sem dialética, é uma fala de certezas onde tudo se esclarece pelo sistema delirante e não há lugar para o questionamento. Mesmo quando Schreber admite que suas idéias podem parecer absurdas ou "produto doentio" de sua fantasia (Schreber, p.64), é somente para, no momento seguinte, voltar a reafirmar sua certeza delirante, sustentada nas mesmas idéias fixas e inabaláveis. Como afirma o psiquiatra do sanatório de Sonnenstein em seu relatório, " (...)o paciente acha-se repleto de idéias de origem patológica, que se constituíram num sistema completo; são mais ou menos fixas e parecem inacessíveis à correção por meio de qualquer apreciação e juízo objetivo dos fatos externos." (Relatório do Dr. Weber, apud Freud, 1911, p.30)

Um dos exemplos mais curiosos dessa inabalável crença no sistema delirante, está no diálogo de Schreber com a própria psiquiatria. Tendo lido o Tratado de psiquiatria de Kraepelin durante sua internação, Schreber propõe uma distinção entre os casos de "ilusão dos sentidos" e seu próprio caso:

A ciência cometeria, na minha opinião, um grande erro se quisesse jogar no mesmo depósito de coisas irreais todos os fenômenos desse tipo como carentes de qualquer realidade objetiva, definindo-os como "ilusões dos sentidos", coisa que talvez se justifique no caso das ilusões dos sentidos tratadas por Kraepelin na p.108 e seguintes, que não tem relação com coisas sobrenaturais. (...) Parece-me de antemão psicologicamente impensável que no meu caso se tratasse de meras ilusões dos sentidos. Pois a ilusão sensorial de estar em relação com Deus ou com almas defuntas só poderá naturalmente surgir em pessoas que, no seu estado nervoso morbidamente excitado, já traziam consigo uma sólida fé em Deus e na imortalidade da alma. Mas este, pelo que ficou dito no início deste capítulo, não foi o meu caso. (...) Que se esteja atento, pois, nesses assuntos, contra a generalização não-científica e o julgamento precipitado. Se a Psiquiatria não quiser simplesmente negar tudo o que é sobrenatural e entrar de armas e bagagens no campo do materialismo grosseiro, não poderá deixar de reconhecer a possibilidade de, em fenômenos do tipo descrito ter, em certas circunstâncias, de se haver com acontecimentos reais, que não se deixam reduzir, sem mais, ao rótulo de "ilusões dos sentidos". (Schreber, p.82-83. Grifo nosso)

Novamente o delírio de Schreber se revela inacessível ao questionamento. Sequer sua confrontação com a psiquiatria, que supostamente poderia abalar a crença em seu sistema delirante, chega a tocá-lo [6]. Schreber encontra, mais uma vez, uma forma de fazer conviverem, lado a lado, realidade e delírio, alinhavados um ao outro, formando um todo compacto e fechado em si mesmo.

No caso do sintoma neurótico, ao contrário, os sentidos se desdobram e a dificuldade é inversa. Ao invés de certeza, o sujeito permanece sempre na dúvida, e parece impossível determinar o significado último, irredutível, do sintoma. É essa dúvida que o sujeito supõe, incessantemente, poder preencher com a produção de novos sentidos.

Freud mostra com clareza esse trabalho de busca de sentido na sua Interpretação dos sonhos (Freud, 1900). Não há ali nenhuma chave interpretativa, nenhum "dicionário" dos significados dos sonhos, mas um delicado trabalho associativo, no qual o efeito de sentido se produz a partir da cadeia associativa de representações, de significantes. Suas análises dos sonhos nos conduzem de uma representação a outra, de tal forma que ficamos sempre na dúvida se não seria possível prosseguir ainda mais com o trabalho, e obter ainda um novo desdobramento de sentido [7]

É o que acontece, por exemplo, com a análise do "sonho do besouro" da paciente de Freud:

Ela recordou-se que tinha dois besouros na caixa e que devia libertá-los, senão ficariam sufocados. Abriu a caixa e os besouros estavam num estado de exaustão. Um deles voou pela janela aberta, mas o outro foi esmagado pela tampa enquanto ela a fechava a pedido de alguém. (Freud, 1900, p.309)

No trabalho associativo, vemos cada uma das representações do sonho desdobrar-se em personagens, cenas, recordações: do dia anterior, da infância, da vida cotidiana. Freud nos conduz da primeira representação importante do sonho (besouros) a novas representações (mariposa, crueldade, filha, aparência, maio, casamento, felicidade, passando até mesmo por arsênico e enforcamento) para, finalmente, chegar ao que considera o sentido oculto do sonho: o desejo insatisfeito pelo marido ausente. Ao final da análise do sonho, é evidente que o sentido do sonho não está no significado de qualquer um de seus elementos significantes, mas no efeito de significação que se produz da relação entre esses elementos.

Em Instância da letra, Lacan afirmará que " (...)somente as correlações do significante com o significante fornecem o padrão de qualquer busca de significação" (Lacan, 1957, p.505) Essa significação, que se produz a partir das relações entre os significantes, será trabalhada por Lacan em sua relação com a metáfora, na qual "se produz um efeito de significação que é de poesia ou de criação ou, em outras palavras, do advento da significação em questão." (Idem, p.519)

No caso do delírio, não há desdobramento metafórico, o peso do sentido fica atrelado unicamente aos significados atribuídos a cada um de seus elementos pelo próprio sistema delirante. É o que leva Lacan a observar, já no Seminário 2, que o delírio é uma formação de linguagem que não tem as mesmas características do sonho (Lacan, 1954-55, p.136). A questão que se coloca, portanto, é a do estatuto da linguagem nas psicoses.

Essa questão será abordada no Seminário 3, onde Lacan afirmará ter chegado "ao ponto em que a análise do texto schreberiano levou a insistir sobre a importância dos fenômenos de linguagem na economia da psicose." (Lacan, 1955-56, p.185) A pergunta para a qual ele buscará resposta nesse momento é: "que função têm esses fenômenos de linguagem nas psicoses?" (Idem, p.185)

Linguagem e imaginário na psicose

Logo na primeira conferência do Seminário 3, Lacan faz referência à interpretação freudiana do caso Schreber:

Jamais houve nada de comparável ao modo como ele [Freud] procede com Schreber. O que ele faz? Pega o livro de um paranóico, cuja leitura ele recomenda platonicamente no momento em que escreve a sua própria obra – não deixem de lê-lo antes de me lerem – e dele nos dá uma decifração champollionesca, ele o decifra do modo como se decifram hieróglifos. (...) Há aí um encontro excepcional do gênio de Freud e um livro único. (Lacan, 1955-56, p.19)

A seguir, Lacan faz uma advertência: embora a análise feita por Freud possa ser considerada uma "tradução sensacional", ela "deixa no mesmo plano o campo das psicoses e o das neuroses." (Idem, p.19) Lacan está atento ao problema de que "se a aplicação do método analítico não liberasse nada mais que uma leitura de ordem simbólica, ela se mostraria incapaz de dar conta da distinção dos dois campos." (Idem, p.19). Para tentar distingui-los, Lacan se apoiará, inicialmente, nas evidências da própria linguagem.

Sua primeira observação é sobre a frequência com que os distúrbios de linguagem estão presentes nas psicoses. Formas extremas destes distúrbios são frequentemente encontradas nos autismos e esquizofrenias: linguagem inexistente ou empobrecida, pobreza de vocabulário, muitas vezes com uso incorreto ou repetição incessante de certas palavras. Lacan irá acrescentar a essas observações as peculiaridades da linguagem presentes na paranóia de Schreber.

Já que não conhecemos o sujeito Schreber, devemos de qualquer maneira estudá-lo através da fenomenologia de sua linguagem. É, pois, em torno do fenômeno da linguagem, dos fenômenos de linguagem mais ou menos alucinados, parasitários, estranhos, intuitivos, persecutórios de que se trata no caso Schreber, que vamos esclarecer uma dimensão nova na fenomenologia das psicoses. (Idem, p.120)

Lacan dará tanta importância aos fenômenos de linguagem, que afirmará, no Seminário 3, que "para que estejamos na psicose, é preciso haver distúrbios de linguagem, e é essa, em todo o caso, a convenção que lhes proponho adotar provisoriamente." (Idem, p.110) Provisoriamente, esse será seu critério diagnóstico: "devemos exigir, antes de dar o diagnóstico de psicose, a presença desses distúrbios" (Idem, p.109).

A linguística, especialmente as teorias de Saussure e Jakobson, fornecerá a Lacan importantes recursos para a reflexão sobre a linguagem e seus distúrbios, sobre o uso particular da linguagem pelo sujeito psicótico e o valor que ela adquire num sistema delirante como o de Schreber.

A narrativa de Schreber será campo fértil para essa reflexão. Nela, Lacan encontrará o modo singular de relação com a linguagem que caracteriza a paranóia. As Memórias de Schreber estão repletas de expressões peculiares, destacadas no texto pela grafia entre aspas, em itálico ou em maiúsculas: "almas provadas", "assassinato de alma", "homem feito às pressas", "conexão nervosa", "vestíbulos do céu", "construção prodigiosa", organização prodigiosa, "cozinha do diabo", coação a pensar, "Judeu Errante", Ordem do Mundo, jogo milagroso, entre outras [8]

Trata-se de um uso tão peculiar da linguagem, que chega a dificultar a tradução do texto schreberiano para outras línguas. James Strachey, editor inglês da publicação das obras de Freud, observa, em sua nota de abertura ao artigo freudiano sobre Schreber, que essa dificuldade em traduzir as expressões de Schreber está também presente nas traduções das expressões dos psicóticos de maneira geral. Para Strachey, "seria enganoso desprezar inteiramente as formas exteriores e, através de uma tradução puramente literal, apresentar um relato inculto do estilo de Schreber." (Strachey, J. In: Freud, vol.XII, p.20-21) Ele ressalta que há, no texto de Schreber, uma característica que tende a passar despercebida pela tradução, que é "o contraste que perpetuamente oferece entre as frases complicadas e elaboradas do alemão acadêmico do século XIX e as extravagâncias outré dos eventos psicóticos que descrevem." (Idem, p.21) De fato, tal sutileza se perde na tradução para outras linguas.

É importante notar que o próprio Schreber não ignora o uso particular que faz da linguagem. Ao contrário, esse uso tem papel tão importante que adquire, inclusive, função no próprio sistema delirante. Schreber considera que as expressões pertencem a uma outra língua, a "língua fundamental" (Grundsprache), que ele mesmo define da seguinte forma:

Língua falada pelo próprio Deus (...) um alemão arcaico, mas ainda vigoroso, que se caracteriza principalmente por uma grande riqueza de eufemismos (assim, por exemplo, recompensa com o sentido oposto, de punição, veneno por alimento, suco por veneno, profano por sagrado, etc). (Schreber, p.37)

Dentro desse sistema de linguagem, proliferam os neologismos, as novas expressões, apresentadas por Schreber como se seu sentido já nascesse com elas. Cada termo, cada expressão, possui um significado rigorosamente definido, sempre inquestionável e que Schreber crê ter sido cunhado, não por ele, mas desde a própria "língua fundamental":

A expressão "vestíbulos do céu" não foi inventada por mim, como todas as outras expressões que neste trabalho estão entre aspas (como, por exemplo, "homens feitos às pressas", "vida de sonho", etc), mas ela apenas reproduz a designação sob a qual as vozes que falavam comigo se referiam ao fenômeno em questão. São expressões às quais eu nunca teria chegado por mim mesmo, que nunca ouvi de qualquer outro homem, de natureza em parte científica, especialmente médica, e das quais nem ao menos sei se são de uso corrente na ciência humana correspondente. (Idem, p.37)

Trata-se, portanto, de um sistema que Schreber crê existir independentemente de sua vontade, e ao qual se submete sem nenhum questionamento. Se, nas neuroses, o sujeito constantemente se interroga a respeito dos sentidos de sua fala, de seus sonhos, de seus sintomas, sempre guiado pela dúvida e pela incerteza, nas psicoses o que se observa é uma suposição de que o sentido nasce junto com tais expressões e tem existência independente de sua vontade. O sistema é hermético, a língua é em si [9]

No Seminário 3, Lacan recorrerá ao signo para situar esse excesso de sentido na psicose: "tudo para ele tornou-se signo" (Lacan, 1955-56, p.17) Nesse contexto, o uso do termo por Lacan remete à cristalização da relação entre uma representação e seu significado: "se ele encontra na rua um carro vermelho, (...) não é por acaso, dirá ele, que ele passou naquele exato momento." (Idem, p.18) Na definição de Lacan, trata-se de "uma significação que basicamente só remete a ela própria, que permanece irredutível. O próprio doente sublinha que a palavra tem peso em si mesma." (Idem, p.43)

Significação irredutível, que remete somente a ela própria, que fixa o sentido, cristalizando-o: tal é o estatuto da linguagem que Lacan encontrará no delírio. Tomando de empréstimo uma expressão de Saussure, podemos afirmar que as expressões do delírio de Schreber impõem-se a nós como "carta forçada" [10], não admitindo nenhuma interpretação fora do sistema fechado da "língua fundamental ". Na neurose, em comparação, é preciso considerar a propriedade de "carta roubada" [11] do significante, onde seu valor só pode ser extraído da posição em que se encontra em relação aos outros significantes. Na carta forçada destaca-se o aspecto imaginário da linguagem [12]; na carta roubada, sua vertente simbólica [13]

Importante observar que Lacan também distingue essas duas vertentes da linguagem, simbólica e imaginária, quando se refere à significação. Mas a ênfase de Lacan no Seminário 3, justamente em função da preocupação com a psicose, é sobre a vertente imaginária, na qual a significação se apresenta como fechamento:

O significante como existindo sincronicamente é suficientemente caracterizado na fala delirante por uma modificação que destaquei aqui, a saber: alguns de seus elementos se isolam, tornam-se pesados, ganham um valor, uma força de inércia particular, carregam-se de significação, simplesmente de uma significação. O livro de Schreber está florido dela. (Idem, p.67. Grifo nosso.)

Para Lacan, "que a significação seja da natureza do imaginário, não é duvidoso." (Idem, p.66) O delírio de Schreber está repleto dessas significações fixas, pesadas, de valor imaginário.

Entretanto, não podemos esquecer que o termo significação se consolidará, ao longo da obra de Lacan, como uma propriedade do significante ligada ao efeito de sentido que se produz da associação entre os significantes – e portanto intimamente ligado à neurose e à significação fálica [14]. Assim, se no Seminário 3 Lacan faz referência ao aspecto imaginário da significação, é porque sua preocupação está voltada para a linguagem da certeza delirante e sem dialética da psicose.

No caso das neuroses, a significação é uma propriedade simbólica, ligada à metáfora e à função simbólica do pai, tema amplamente desenvolvido por Lacan nos seminários posteriores. É nas psicoses que a significação fixa a relação entre significante e significado, dando-lhe seu caráter imaginário, com todas as suas consequências: organizadoras, por um lado, mas não dialetizáveis, de outro lado. Ao longo de todo o Seminário 3, essa distinção do estatuto da linguagem e do significante na neurose e na psicose será enfatizada por Lacan, que considerará que Schreber desconhece a propriedade simbólica, metafórica, da linguagem, observável na relação do neurótico com o significante: "ao que se sabe, não é tido como conhecendo o caráter altamente significante que damos ao sonho desde Freud. É certo que Schreber não tinha a menor noção sobre ele" (Idem, p.240)

Não será, portanto, essa a via para situar o tratamento possível das psicoses, que deverá sustentar-se na compreensão do caráter imaginário da significação delirante. Entretanto, não será essa a principal ênfase da reflexão de Lacan nesta época. Neste período, ganharão destaque suas considerações sobre a foraclusão.

Psicose, foraclusão e linguagem

A foraclusão se manterá, durante muito tempo, como a principal referência de Lacan ao tema das psicoses. Embora a foraclusão seja frequentemente associada ao termo freudiano Verwerfung, Arrivé lembra, em Linguagem e psicanálise, lingu ística e inconsciente (Arrivé, 1999), que se trata de um termo de origem linguística. O próprio Lacan comentará, no Seminário 3, que há objeções ao uso que faz do termo Verwerfung, do qual ele teria se apoderado sem prender-se rigorosamente ao seu emprego na obra freudiana, mas sugerindo que seu próprio amadurecimento conduziu a isso. (Lacan, 1955-56, p.173)

Em seu livro, Arrivé atribui a origem do termo foraclusão a Damourette e Pichon (tio e sobrinho, ambos linguistas, o segundo tendo se tornado também psicanalista) e faz uma dura crítica ao fato de poucos analistas se referirem a essa origem linguística.

De fato, a aproximação psicanálise-linguística será de grande importância para a compreensão de certas questões ligadas à psicose. Entretanto, um levantamento cuidadoso das referências de Lacan a Damourette, a Pichon e à origem linguística do termo foraclusão, permite notar que, curiosamente, em nenhuma delas a psicose e sua relação com a Verwerfung é mencionada. No Seminário 6, por exemplo, quando refere-se à foraclusão, Lacan está preocupado com a distinção entre o sujeito do enunciado e da enunciação (que ele retomará no Seminário 15), e não há nenhuma referência à Verwerfung ou à psicose nesse momento. No Seminário 7, quando a foraclusão é mencionada na discussão sobre o emprego do ne discordancial (Lacan, 1959-60, p.83), também a Verwerfung não é lembrada. No Seminário 9, o termo aparece em reflexão sobre a característica do significante de fundar a diferença como tal, também sem qualquer referência à psicose. No Seminário 15, há um comentário sobre a função foraclusiva do pas (Lacan, 1967-68, p.196) e, novamente, nenhum comentário sobre a psicose ou a Verwerfung. No Seminário 18, Lacan chega a mencionar "alguém que era um gramático muito refinado" (Lacan, 1969-70, p.132), quando nomeia de foraclusiva uma das formas da negativa que ele escreve a partir das fórmulas dos quantificadores na lógica aristotélica mas, novamente, nenhuma referência à psicose.

Certamente, na medida em que deixa de lado a especificidade do uso do termo foraclusão para a abordagem da Verwerfung e das psicoses, é o próprio Lacan quem contribui para manter afastada a articulação psicanálise-linguística no que se refere à psicose e sua relação com a Verwerfung. Devemos a Arrivé, portanto, o resgate da origem linguística do termo foraclusão e a possibilidade fazer uma aproximação entre a foraclusão como fenômeno de linguagem e como mecanismo de defesa nas psicoses. Segundo Arrivé, em sua tradução linguística do conceito freudiano Verwerfung, Lacan nos dá um "belo exemplo de contração de duas noções, uma saída do aparato freudiano e a outra tomada por empréstimo a um aparato linguístico." (Arrivé, 1999, p.151) Para ele, "a especificidade do trabalho de Lacan sobre a foraclusão consistiu em deslocar para o campo do inconsciente uma operação previamente instalada no campo da linguagem." (Idem, p.153)

Há ainda uma outra origem do termo, lembrada por alguns autores, que é jurídica. A tradução para o português seria preclusão, termo que indica que o prazo para um determinado recu rso já passou do devido tempo. O próprio Arrivé considera que "o léxico jurídico – ao qual pertence aliás o nome da foraclusão – não é de modo algum estranho a Lacan, e pode-se, a rigor, alegar que é esse valor jurídico da palavra que é adotado por Lacan." (Idem, p.153) Entretanto, ele ressalta que a insistência de Lacan em tratar a foraclusão como teoria da negação é o que parece aproximá-la da linguística.

Talvez devamos situar esse problema a partir das próprias referências teóricas trabalhadas por Lacan em sua abordagem das psicoses. Ou seja, o sentido jurídico do termo foraclusão parece mais útil à compreensão da relação entre psicose, complexo de Édipo e castração, enquanto a referência linguística facilita a compreensão dos efeitos da foraclusão na relação particular que o sujeito psicótico estabelece com a linguagem.

Do ponto de vista linguístico, Arrivé esclarece que a foraclusão aparece em certos empregos da negativa nos quais "percebe-se que as idéias afetadas [pela negativa] (...) são como que expulsas do campo das possibilidades pelo locutor." (Idem, p.134) Entretanto, trata-se de um emprego onde "a foraclusão à qual essas idéias são submetidas não equivale de modo algum a uma negação" (Idem, p.134), seu valor referencial permanece intacto com uma substituição de termos. É o que ocorre nas seguintes frases, extraídas do livro de Arrivé: Il est peu probable que j’opère jamais plus [é pouco provável que eu opere (nunca)]. Je suis três contrariée que vous ayez jamais entendu parler d’elle [estou muito contrariada por você (nunca) ter ouvido falar dela]. Há uma tentativa de anulação, de deixar de fora, a idéia que desagrada, pelo uso da negativa. Mas tal operação não impede justamente que a idéia que desagrada apareça na frase. É como se ela entrasse "inadvertidamente" para o sujeito, exigindo uma operação para lidar com ela, deixando-a fora. Nesse sentido, a foraclusão "é uma operação do sujeito, que procede a um ato não previamente previsto pelo enunciado" (Idem, p.137). A negativa destaca o que desagrada ao locutor e que ele deseja deixar de fora. A dificuldade é justamente que o que deve ficar de fora aparece na frase, não é suprimido, o que produz um efeito curioso: aquilo que se pretende negar é afirmado.

É o que se observa, por exemplo, na narrativa da alucinação do dedo cortado pelo Homem dos Lobos. Em seu relato a Freud, ele afirma que notou ter cortado fora o dedo mínimo da mão, afirmação esta que, no contexto geral da narrativa, irá revelar-se falsa. Na realidade, ele não cortou o dedo e, portanto, não se trata de algo que ele possa ter notado. Entretanto, ele afirma ter cortado o dedo para, ao final da frase, negar sua afirmação. Se ele tivesse se expressado por um tive a impressão de ter cortado o dedo, não estaríamos às voltas com o problema colocado pela foraclusão nesse caso.

Arrivé, citando Damourette e Pichon, afirma que "a língua francesa, pelo foraclusivo, exprime esse desejo de escotomização." (Idem, p.135) Trata-se de uma particularidade da língua francesa, que não encontra correspondência no português [15]. Segundo Arrivé,

a foraclusão, fenômeno linguístico, é a "imagem" da escotomização. Esta é apenas, como faz pressentir a comparação com a foraclusão, a operação inconsciente pela qual o sujeito exclui da sua memória ou da sua consciência certas representações insuportáveis. Ela se "cega" diante delas, o que explica a metáfora oftalmológica do neologismo escotomização: o escotoma produz como que uma mancha que mascara uma parte do campo visual. (Idem, p.135)

O inconsciente estruturado como linguagem tem, portanto, na psicose, algo da estrutura revelada pelo foraclusivo. Consequentemente, essa linguagem – assim como o próprio inconsciente – obedecerá a leis diferentes quando se trata de uma neurose ou de uma psicose. O que a foraclusão representa em termos do estatuto da linguagem, e portanto do Outro para o sujeito psicótico?

O Outro de Schreber

Desde Freud, o trabalho da análise consiste em buscar um sentido para o sintoma, que se apresenta como algo desconhecido para o próprio sujeito e, ao mesmo tempo, como um enigma a decifrar. A idéia de que possa haver um sentido para o sintoma, põe o sujeito na tarefa de desvendá-lo.

No caso do delírio, entretanto, ocorre um curto-circuito em que o sentido se fecha sobre si mesmo e não deixa brecha para o enigma. A Grundsprache, língua fundamental em torno da qual gravita o delírio de Schreber, é a mais pura expressão desse curto-circuito.

Cada uma dessas palavras tem seu peso próprio, sua ênfase, sua pe sagem de significante. O sujeito as articula relacionando-as entre si. Toda vez que elas são isoladas, a dimensão propriamente enigmática da significação, por ser infinitamente menos evidente que a certeza que ela comporta, é realmente impressionante. (Lacan, 1957-58, p.161)

Se o delírio não coloca o sujeito diante da dimensão enigmática da significação, então não há possibilidade de abertura para o deciframento de sentido que visa o inconsciente do ponto de vista do recalque. Schreber posiciona-se em relação a seu sistema delirante não como sujeito para o qual a busca de sentido revela que há enigma a decifrar, mas como objeto de um Outro portador d’O sentido, de um sentido que já estaria dado de antemão e que é um sentido-todo, sem falhas, sem abertura para questionamento: "o outro só faz emissões aqui, por assim dizer, para além do código, sem nenhuma possibilidade de integrar nelas o que possa provir do lugar onde o sujeito articula sua mensagem." (Idem, p.161)

Lacan afirmará, no Seminário 3, que "o delírio de Schreber é à sua maneira um modo de relação do sujeito com o conjunto da linguagem." (Lacan, 1955-56, p.145. Grifo nosso) E mais adiante: "o que Schreber exprime nos mostra a unidade que ele sente vivamente naquele que sustenta esse discurso permanente diante do qual ele se sente como alienado (...). Mas a unidade é bem fundamental, ela domina, e ele a chama Deus." (Idem, p.145. Grifos nossos)

Esse sentido-todo, que já está dado pelo próprio sistema da língua fundamental, é apresentado por Schreber na forma de parênteses ou notas explicativas que acompanham as palavras ou expressões utilizadas por ele. Ao afirmar, por exemplo, que ele atingiria a beatitude, Schreber traduz: "a beatitude consistia..." (Schreber, p.39). Tais comentários estão presentes ao longo de todo o texto.

Há a emissão, no nível do Outro, dos significantes daquilo que se apresenta como a Grundsprache, a língua fundamental. Trata-se dos elementos originais do código, articuláveis uns em relação aos outros, pois essa língua fundamental é tão bem organizada que abrange literalmente o mundo com sua rede de significantes, sem que nenhuma outra coisa seja segura e certa nela, a não ser que se trata da significação essencial, total. (Lacan, 1957-58, p.161. Grifo nosso)

Há um sentido-todo, proveniente de um Outro-todo. No Seminário 3, Lacan comenta: "tomemos nosso caso Schreber (...), pois bem, há para ele um outro, um outro singularmente acentuado, um Outro absoluto, um Outro completamente radical (...)." (Idem, p.309)

O sentido das expressões da língua fundamental, do qual Deus é portador, é, para Schreber, o todo-sentido, que justamente dá a consistência e a fixidez do sentido delirante. Como afirma Quinet em Teoria e clínica da psicose, na psicose "o Outro do sujeito aparece desvelado, consistente e absoluto. Tal é o caso do Outro de Schreber – esse Deus feito de linguagem e gozo." (Quinet, 1997, p.27) Esse Outro-todo evidencia claramente a lógica da relação do psicótico com a linguagem, uma linguagem-toda, língua fundamental do Deus schreberiano, onipotência que não comporta limite, falta.

Consequentemente, o sujeito psicótico encontrará dificuldades para lidar com qualquer elemento que, proveniente do real, denuncie a inconsistência do lado do Outro. Enquanto o sujeito neurótico conta com o significante fálico para abordar e tratar pela linguagem essa inconsistência (chamando-a de castração, A barrado, falta simbolizável), na psicose há uma impossibilidade de apreensão do Outro enquanto A barrado. É o que se observa, por exemplo, na relação transferencial de Schreber com dr. Flechsig, na demanda maciça de cura que lhe é endereçada. Como lidar com o fato de que o dr. Flechsig, inicialmente idealizado e admirado em sua toda-potência, não seja bem sucedido em suas intervenções terapêuticas?

O recurso com o qual o sujeito psicótico conta para lidar com qualquer elemento revelador da inconsistência deste Outro-todo é o recurso imaginário, com o qual tenta fazer sutura desse ponto de inconsistência. O delírio, na psicose, ocupará o lugar do que foi foracluído, o lugar para o qual o sujeito não encontra significante que possa localizar, simbolicamente, a falta.

Daí o psicótico agarrar-se com tamanha força a sua certeza delirante. Ela é o único recurso com o qual o sujeito conta para fazer sutura de um ponto de angústia que o ameaça com o desamparo diante do nada aterrorizante em que o mundo e a realidade estão prestes a se converter.

Nas esquizofrenias, a aproximação desse ponto de angústia pode ser observado nos efeitos de despersonalização que frequentemente resultam nos delírios relativos ao despedaçamento ou inconsistência do eu; nas paranóias, nos efeitos de uma relação com o outro marcada pela persecutoriedade.

Na paranóia, o que se observa é, portanto, um Outro que oscila entre a posição de onipotência-idealizada e de ameaça aterrorizante, num esforço de dialetização essencialmente sustentado na consistência imaginária desse Outro [16]. Essa é a lógica que sutenta o par amor-ódio tão frequentemente encontrado nos delírios paranóicos. Em De uma questão preliminar, Lacan lembrará o trabalho de Freud em extrair daí "a fórmula de uma dedução gramatical para expor as mudanças de orientação da relação com o outro na psicose." (Lacan, 1958, p.548)

Segundo Freud...

...constitui fato notável que as principais formas de paranóia conhecidas podem ser todas representadas como contradições da proposição única ‘eu (um homem) o amo (um homem)’ e que, na verdade, exaurem todas as maneiras possíveis em que tais contradições poderiam ser formuladas. (Freud, 1911, p.85)

Na psicose, portanto, quando o Outro não responde com o todo-amor, não há recurso simbólico que explique essa não resposta (em termos de castração, seja a do próprio sujeito ou a do Outro) e é por isso que ele se transforma em todo-ódio, seu avesso não-simbolizado. É o qu e faz com que o dr. Flechsig passe, de médico em quem Schreber deposita sua demanda onipotente de cura, a perseguidor. Passagem, aliás, bastante comum nas paranóias, que costuma dar o tom, sempre difícil de manejar, da transferência desses sujeitos na análise [17]

No Seminário 3, Lacan lembrará que, no plano imaginário, quando há conflito, o que se configura é um "ou eu, ou o outro." (Lacan, 1955-56, p.111) Lacan retomará essa questão no Seminário 8, quando lembrará a relação entre imaginário e agressividade:

Existe uma certa dimensão do conflito que não tem outra solução além de um ou..., ou... É necessário a ele ou tolerar o outro como uma imagem insuportável, que o arrebata de si mesmo, ou quebrá-lo imediatamente, inverter, anular a posição à frente, a fim de conservar aquilo que é, naquele momento, centro e pulsão de seu ser, evocado pela imagem do outro, seja esta especular ou encarnada. O laço entre a imagem e a agressividade é, aqui, inteiramente articulável. (Lacan, 1960-61, p.341)

A reação de Aimeé no momento do ataque à atriz, pode ser interpretada como uma reação desse tipo. Uma vez que todas as suas esperanças foram depositadas na certeza de ser ouvida pela atriz em suas queixas, a recusa, porque não simbolizável, produz a reação violenta [18]

Conforme lembrará Lacan no Seminário 3 , no momento de crise, o sujeito se vê profundamente perturbado por "uma certa fissura (...) na ordem de suas relações com o outro." (Lacan, 1955-56, p.238) O efeito dessa fissura é deparar-se com "o outro puramente imaginário, o outro diminuído e decaído com o qual não pode ter outras relações que não as de frustração – esse outro o nega, literalmente o mata. Esse outro é o que há de mais radical na alienação imaginária." (Idem, p.238) Mas é importante observar "a diferença de nível que há entre a alienação como forma geral do imaginário e a alienação na psicose." (Idem, p.52) Na psicose, essa alienação produz uma relação toda com a realidade, que resulta em uma impossibilidade de lidar com a falta e a inconsistência a não ser pela via delirante, aquela na qual o outro que nega, mata.

A questão que se mantém viva, desde o trabalho de Freud com Schreber, é a do tratamento das psicoses. Freud descreveu os mecanismos de funcionamento da psicose; Lacan, ao retornar a Freud, destacou a relação entre o delírio, o estatuto da linguagem nas psicoses e o mecanismo de foraclusão. Qual a importância de tais contribuições para o manejo clínico das psicoses?

O manejo clínico das psicoses

Infelizmente não há, nas obras de Freud ou de Lacan, casos de tratamento que nos ensinem sobre as intervenções do analista e seus efeitos sobre as formações delirantes na psicose. Schreber não foi paciente de Freud. Embora o tratamento de Aimeé ofereça, assim como o caso Schreber, recursos teóricos valiosos para a compreensão do funcionamento das psicoses, em ambos estão ausentes referências acerca do manejo da clínica. E se houve tratamento no caso do Homem dos Lobos, é porque Freud supôs, até o fim, tratar-se de uma neurose. Mesmo as preciosas contribuições para o entendimento do imaginário e seu papel na clínica das psicoses que Lacan extrai do caso Dick, baseiam-se no estilo singular de intervenção de Melanie Klein. E finalmente Joyce, que acrescentará à teoria das psicoses (especialmente as não-desencadeadas) importantes contribuições, nunca foi paciente de Lacan. Como então propor uma clínica das psicoses a partir das contribuições teóricas de Freud e Lacan?

No texto Alocução sobre as psicoses da criança, Lacan afirmará que a questão, em relação aos psicóticos, "é situá-los e apreender a referência a partir da qual podemos tratá-los." (Lacan, 1967, p.360) Muito tempo antes, no Seminário 2, Lacan já afirmara: "se falamos legitimamente de psicoses na criança é porque, como analistas, podemos dar um passo além dos outros na concepção da psicose." (Lacan, 1954-55, p.135) Que passo é esse?

Em primeiro lugar, há o passo de uma concepção das psicoses que não as reduz à sua patologia. Em seu texto de apresentação à edição francesa das Memórias de Schreber, Lacan afirmará que Freud pôde "introduzir o sujeito como tal, o que significa não avaliar o louco em termos de déficit e de dissociação das funções." (Lacan, 1966, p.220) É a psicanálise, especialmente a partir de Lacan, que fornecerá as mais importantes referências para pensar a psicose não como patologia a ser eliminada, mas como um a estrutura clínica cujo funcionamento é diferente da neurose – patológico em alguns casos, mas nem sempre. Lacan mostrará que a estrutura da psicose, seu funcionamento, engloba tanto as psicoses desencadeadas, os surtos psicóticos delirantes, quanto as psicoses não desencadeadas. Devemos lembrar que o próprio Schreber só veio a ter seu primeiro surto aos quarenta anos de idade. E que Aimée levava uma vida aparentemente estável – casada e trabalhando no mesmo escritório que o marido – até engravidar a primeira vez, aos vinte e oito anos.

No Seminário 3, Lacan lembrará que muitos psicóticos atravessam a vida sem que haja desencadeamento de um surto [19]:

É assim que a situação pode se sustentar durante muito tempo, que certos psicóticos vivem compensados, têm aparentemente os comportamentos comuns (...) e de uma só vez, misteriosamente, Deus sabe porquê, se descompensam. (Lacan, 1955-56, p.233)

Lacan mostrará que a descompensação, o desencadeamento do surto psicótico, depende dos fatos com os quais o sujeito é confrontado em sua história, e dos recursos significantes de que dispõe para responder a tais fatos:

Nem todos os tamboretes têm quatro pés. Há os que ficam em pé com três. Contudo, não há como pensar que venha faltar mais um só senão a coisa vai mal. Pois bem, saibam que os pontos de apoio significantes que sustentam o mundinho dos homenzinhos solitários da multidão moderna são em número muito reduzido. É possível que de saída não haja no tamborete pés suficientes, mas que ele fique firme assim mesmo até certo momento, quando o sujeito, numa encruzilhada de sua história biográfica, é confrontado com esse defeito que existe desde sempre. Para designá-lo, contentamo-nos até o presente com o termo Verwerfung. (Idem, p.231)

Se nem todo psicótico surta, se muitos sujeitos psicóticos podem manter-se firmes em seus tamboretes com os recursos significantes disponíveis, então é possível pensar num tratamento que devolva ao psicótico uma estabilidade fora do surto, assim como é possível também delimitar direções de tratamento para as psicoses sem desencadeamento de surto.

A ênfase no funcionamento estrutural das psicoses é o que permitirá situar um manejo específico da análise para esses sujeitos. Afinal, enquanto a reflexão de Lacan sobre as neuroses aponta a direção de um esvaziamento dos significantes aos quais o sujeito encontra-se alienado, a relação entre o imaginário e as psicoses parece apontar a direção contrária. Se, no caso da psicose, as balizas imaginárias são elemento organizador de um ponto onde estão ausentes as bordas que definem os limites do próprio eu, do Outro e, consequentemente, de suas relações com o mundo, o esvaziamento das referências imaginárias, que define a direção do tratamento dos sujeitos neuróticos, pode levar, na psicose, a uma desorganização psíquica que frequentemente conduz ao surto. São os casos em que a análise pode produzir efeitos que Lacan chamará, no Seminário 1, de despersonalização.

A direção do tratamento das psicoses aponta, portanto, a necessidade de uma construção.

Em segundo lugar, há o passo da escuta a ser oferecida ao sujeito psicótico. Freud, assim como Lacan, ensinaram a importância da escuta do delírio como porta de entrada para a compreensão das psicoses. Uma escuta guiada pelo que Lacan prudentemente chamou tratamento possível das psicoses, um tratamento que deve levar em conta as características de seu funcionamento particular, e que portanto não poderia tomar por modelo o tratamento da neurose.

No Seminário 3, Lacan relacionará a incompreensão do delírio psicótico com a concepção de anormalidade do delírio, herança da psiquiatria: "estabelecem logo de saída que se trata de um fenômeno anormal, e como tal, condenam-se a não compreendê-lo." (Idem, p.144)

Mesmo nos dias atuais, essa atitude ainda predomina em grande parte dos hospitais psiquiátricos. Embora seja possível encontrar raras e animadoras exceções, a escuta dos pacientes é mais frequentemente orientada por um esforço de classificação, do qual o psiquiatra depende para medicar corretamente o paciente. Profissionais da saúde mental rendem-se todos os dias à rotina da internação no momento de crise, seguida pela terapia medicamentosa até a alta (que ocorre quando o delírio cede, efeito esperado da medicação), e do inevitável retorno ao hospital, algumas semanas, meses ou anos depois. Gravitam em torno dos serviços de pronto-socorro psiquiátrico, pacientes mergulhados em quadros delirantes que visivelmente seguem avançando, sob o peso de um tratamento que não visa outra coisa senão fazer o delírio calar. O delírio vai se tornando crônico porque a intervenção é ineficaz, mas acabamos com a impressão equivocada de que é a psicose delirante que tende a se tornar crônica, e não seu tratamento.

No Seminário 2, Lacan lembrará que "um delírio crônico demora em geral muito tempo para se constituir, é preciso que o sujeito faça um bruto esforço – em geral, ele leva nisto o terço da sua vida." (Lacan, 1954-55, p.306) Entre a primeira internação de Schreber e sua morte, ainda interno no sanatório de Dösen, passaram-se trinta anos. O delírio de Aimée se desenvolve rica e longamente durante cinco anos até seu atentado contra a atriz: "assim constituído, e apesar dos surtos ansiosos agudos, o delírio, fato a destacar, não se traduziu em nenhuma reação delituosa durante mais de cinco anos." (Lacan, 1932, p.167) Entretanto, se considerarmos as primeiras manifestações delirantes de Aimée, por ocasião de sua primeira gravidez, contaremos dez anos até sua internação, aos trinta e oito anos.

Aliás, não é incomum que psicoses delirantes graves e crônicas desenvolvam-se sem qualquer tipo de intervenção. Aimeé é claramente tomada de angústia e apresenta os primeiros sinais delirantes ao menos três anos antes de sua primeira internação [20], mas os familiares próximos apresentam uma evidente dificuldade de escutá-la e dar lugar a sua angústia. Perde-se assim a oportunidade de oferecer-lhe as referências que poderiam orientar e até mesmo conter o desenvolvimento de seu delírio. Conforme descreve Lacan em sua tese, Aimée tinha atitudes que "não podiam ser acolhidas com o discernimento que era necessário." (Idem, p.168) Ao mesmo tempo, "tentativas de explicação de seus tormentos foram brutalmente repelidas." (Idem, p.168) Sua angústia parece atingir o auge pouco antes do ataque à atriz. "É lamentável que não a tenham internado então", comenta Lacan. (Idem, p.168) Aimée se queixará da falta de escuta em carta escrita oito dias após sua prisão: "ninguém quis me escutar nem acreditar no que eu dizia." (Idem, p.170)

Assim, embora casos como o de Schreber ou Aimée levem a identificar nas psicoses perturbações extremamente graves, é preciso lembrar que tais perturbações só adquirem a forma clássica da loucura crônica delirante quando, por muitos anos, nenhuma escuta acolhe o delírio ou intervém de forma organizadora sobre ele.

São notáveis, entretanto, os efeitos da escuta do delírio. No caso Aimeé, isso é evidente. No dia em que é presa, logo após o atentado contra a atriz, ela relata a suas companheiras de cela seu drama e, pela primeira vez desde o início de seu longo processo delirante, não só é escutada, mas acolhida e apoiada. "Suas companheiras aquiescem, encorajam-na e aprovam-na", escreve Lacan. (Idem, p.170) Essa escuta – e não o fato de ter sido punida com a prisão – terá sobre ela um efeito organizador [21]. Alguns dias depois, Aimée tem uma crise de choro e, surpreendendo a todas, volta atrás em suas queixas, afirmando: "esta atriz não tinha nada contra mim." (Idem, p.170) Na descrição de Lacan, "todo o delírio caiu ao mesmo tempo, (...) toda a fragilidade de suas ilusões megalomaníacas surge para ela ao mesmo tempo que a inanidade de seus temores" (Idem, p.170)

Algo na escuta oferecida a Aimée reduz o delírio e a angústia, e parece trazê-la de volta à realidade. Por ocasião da internação, Lacan observará que "os temas do delírio em seu conjunto, e não só as queixas da doente contra sua vítima, estão (... ) completamente reduzidos." (Idem, p.153) Aimée poderá então relatar seu drama desde uma outra posição: "ao mesmo tempo em que conta, com precisão, não só os episódios principais de sua vida e suas respectivas datas, mas até suas perturbações mentais, mostra-se capaz de analisar com bastante penetração introspectiva." (Idem, p.153)

Esse efeito da escuta, somado às contribuições teóricas de Freud e Lacan à compreensão do funcionamento das psicoses, permitirá definir e orientar o tratamento das psicoses no sentido de um esforço de estabilização que considere, ao mesmo tempo, as particularidades do funcionamento das psicoses (decorrentes da foraclusão) e os recursos estruturais dos quais os sujeitos psicóticos dispõem para alcançar essa estabilização.

Delírio e metáfora delirante na estabilização das psicoses

Uma das grandes contribuições de Freud ao tratamento das psicoses foi, portanto, ter situado o delírio como uma tentativa de cura: "a formação delirante, que presumimos ser o produto patológico é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução." (Freud, 1911, p.94-95)

Tal concepção fornece indicativos importantes para delimitar a direção de tratamento, uma vez que permite compreender tanto o desencadeamento da crise psicótica como os recursos dos quais o sujeito dispõe para resolvê-la.

Quinet, em Teoria e clínica das psicoses, lembrará que, para Freud, o delírio é um remendo onde o que há, originalmente, é uma fenda na relação do sujeito com o mundo externo. (Quinet, 1997, p.30) A esta fenda Lacan chamará, no Seminário 3, real não simbolizado.

Quando, em condições especiais que deverão ser precisadas, alguma coisa aparece no mundo exterior que não foi primitivamente simbolizada, o sujeito se vê absolutamente desarmado (...). O que se produz então tem o caráter de ser absolutamente excluído do compromisso simbolizante da neurose, e se traduz em outro registro, por uma verdadeira reação em cadeia ao nível do imaginário. (Lacan, 1955-56, p.104)

O surto delirante é desencadeado pela emergência, no real, de algo para o qual falta, ao psicótico, uma resposta significante. A foraclusão é a falta desse recurso simbólico, que faz com que o sujeito se depare com o que Lacan denomina, no Seminário 3, um buraco: "a psicose consiste em um buraco, uma falta ao nível do significante." (Idem, p.229)

Um mínimo de sensibilidade que nosso ofício nos dá nos faz ver claramente algo que se encontra sempre no que se chama de a pré-psicose, a saber, o sentimento de que o sujeito chegou à beira do buraco. Isso deve ser tomado ao pé da letra. (...) Trata-se de conceber, não de imaginar, o que se passa para um sujeito quando a questão lhe vem dali onde não há significante, quando é o buraco, a falta que se faz sentir como tal. (Idem, p.230-231)

Não havendo significante que lhe permitiria abordar simbolicamente esse buraco, o psicótico se vê tomado da angústia de estar diante de sua aproximação: "Pode-se falar da aproximação de um buraco? Porque não? Não há nada mais perigoso que a aproximação de um vazio." (Idem, p.229)

É da aproximação desse vazio que o psicótico nos fala em sua angústia pré-surto. Ele se vê confrontado, como afirma Lacan, com uma "significação derrisória, que indica a hiância, o buraco, em que nada de significante pode responder no sujeito." (Idem, p.319) Segundo Lacan, "é precisamente na medida em que esse significante é chamado, evocado, interessado, que surge em torno dele o aparelho puro e simples da relação com o outro, o atabalhoamento vazio." (Idem, p.319)

Se o surto é o contato com o real ameaçador e a ausência de recursos simbólicos para abordá-lo, se o delírio é o esforço empreendido pelo sujeito para lidar com esse real que ameaça, a direção do tratamento que visa a estabilização do sujeito psicótico deverá, portanto: em primeiro lugar, situar a angústia particular de cada sujeito [22]; e, a partir daí, auxiliá-lo na construção de referências que, assim como o delírio, cumpram a função de servir de baliza e de referência organizadora desse ponto de angústia.

No caso de Schreber, Lacan definirá esse ponto específico de angústia como a dificuldade devido à não simbolização do feminino: "o presidente Schreber jamais integrou de forma alguma, tentaremos vê-lo no texto, nenhuma espécie de forma feminina." (Idem, p.102) Daí Lacan destacar o pensamento "como seria ser uma mulher no coito" [23] como fundamental no desencadeamento do surto:

Que relação há entre a emergência no eu – e de uma forma, sublinho, isso, não-conflituosa – do pensamento de que seria belo ser uma mulher sendo copulada, com a concepção em que o delírio chegado a seu grau de acabamento se desenvolverá em toda a sua força, ou seja, que o homem deve ser a mulher permanente de Deus? Cabe, sem dúvida alguma, aproximar esses dois termos – a aparição primeira desse pensamento que atravessou o espírito de Schreber, então aparentemente são, e o estado terminal do delírio (...) O pensamento do início nos parece legitimamente como a entrevisão do tema final. (Idem, p.77)

A hipótese freudiana é a de que a formulação eu o amo (que ele interpreta como um desejo homossexual recalcado) sofreria deformação e resultaria numa das formas delirantes: delírios de perseguição (eu não o amo / eu o odeio / ele me odeia / ele me persegue); erotomania (eu não o amo / eu a amo / ela me ama); delírio de ciúme (eu não o amo, é ela que o ama).

No Seminário 3, entretanto, Lacan fará uma advertência a respeito da suposta homossexualidade de Schreber:

Freud supõe uma homossexualidade latente que implicaria uma posição feminina – é aí que está o salto. Ele fala de uma fantasia de impregnação fecundante como se a coisa fosse evidente, como se toda aceitação da posição feminina implicasse além disso esse registro tão desenvolvido no delírio de Schreber, e que termina por fazer dele mulher de Deus. (Lacan, 1955-56, p.345-346)

Lacan mostrará que, na psicose, algo da própria sexualidade ficaria não simbolizado para o sujeito. Duas décadas mais tarde, em "O aturdito", ao retornar brevemente à psicose de Schreber, mencionará um efeito de empuxo à mulher presente no caso (Lacan, 1972, p.460). Mas já no Seminário 3, adiantará que o delírio de Schreber...

...logo de saída se apresenta sob a forma de uma questão sobre seu sexo, um apelo que lhe vem de fora, como na fantasia – como seria belo ser uma mulher sendo copulada. O desenvolvimento do delírio exprime que não há para ele nenhum outro meio de realizar-se, de afirmar-se como sexual, senão admitindo-se como uma mulher, como transformado em mulher. É o eixo do delírio. (Lacan, 1955-56, p.286)

A dificuldade de situar a própria sexualidade devido à falta da referência fálica já é clara para Lacan desde o Seminário 3 [24]

Ser mulher, para Schreber, não é algo que se coloque como questão ou dúvida [25], é resposta delirante que aparece com a força de uma certeza. É uma evidência clara da observação de Lacan no Seminário 3 de que, nas psicoses, a resposta veio antes da questão (Idem, p.230). Enquanto a histérica se coloca a questão o que é ser uma mulher?, Schreber responde com sua certeza delirante: sou mulher – A mulher: mulher escolhida por Deus para gerar uma nova raça de homens sobre a Terra. O que que não foi simbolizado, a ordenação dos sexos na partilha fálica, desencadeia a angústia e retorna sob a forma do delírio.

No caso Aimée, a angústia parece estar associada a um tema que persiste: "eu fiz isto porque queriam matar meu filho" (Lacan, 1932, p.154) O elemento desencadeador do delírio é, aparentemente, a gravidez e o temor que seu filho viesse a morrer. As primeiras manifestações delirantes coincidem com a primeira gravidez e giram em torno de um pensamento: "Eles querem a morte de meu filho. Se esta criança não viver, eles serão responsáveis." (Idem, p.155-156) Os mesmos pensamentos retornam na segunda gravidez e permanecem após o nascimento da criança: "Eu temia muito pela vida de meu filho. " (Idem, p.160)

Em ambos, é clara a função do delírio no esforço empreendido pelo sujeito de ordenação de um ponto de angústia [26]. Uma ordenação que tem as propriedades do imaginário: fechamento de sentido na certeza delirante; não-dialetização; relação não simbolizável com a falta que, consequentemente, toma o vulto de ameaça contra o eu, ameaça de desaparecimento, despedaçamento, morte, agressão [27]. Mas uma ordenação que, tanto no caso de Schreber quanto no de Aimée, não conta com qualquer tipo de auxílio – é um esforço solitário e errante que produz isolamento e graves prejuízos ao laço social.

Daí a importância de um manejo clínico que considere a necessidade de atenção aos efeitos sociais da construção delirante. A intervenção analítica sobre o delírio deve sustentar-se não apenas na produção de uma construção delirante que funcione no sentido da estabilização, mas, principalmente, na aposta de que tal construção cumpra a função de viabilizar a inserção social do sujeito psicótico [28]

Um exemplo desse esforço de estabilização que inclui o laço social é a produção escrita de um texto. Tanto Schreber, como Aimeé e Joyce entregam-se a essa tarefa. Acrescentemos à lista o recente caso de Donna Williams, tardiamente diagnosticada como autista (aos vinte anos de idade), que tornou-se conhecida nos anos noventa por suas publicações autobiográficas.

Williams relata em seu site a importância de seu primeiro livro, Nobody Nowhere , como tentativa desesperada de dar sentido a sua vida:

No caos e desorientação daquele tempo escrevi minha autobiografia, Nobody Nowhere, numa última tentativa desesperada de entender onde estivera e indagar se haveria alguma esperança além daquilo que eu lutara para construir como ‘vida’. O livro, primeiro de nove livros que publiquei, foi deixado para trás no Reino Unido naquela época e tornou-se um bestseller internacional por acidente, lido por milhões de pessoas ao redor do mundo, e a primeira publicação mainstream de uma autobiografia de alguém diagnosticado como ‘autista’ . (Williams, http://www.donnawilliams.net Tradução nossa)

Com uma infância marcada pelas típicas dificuldades de uma criança com um não-diagnosticado quadro grave de psicose – deficiências de linguagem que resultavam em importantes dificuldades de comunicação, problemas de comportamento decorrentes de agitação motora, desordens alimentares que deixavam-na doente a maior parte do tempo – o drama de Donna Williams é existencial: já adulta, ela dirá que, para ela, é difícil "ser um ser vivo e falar autenticamente" (Williams apud Maleval, 2009, p.9) Os tratamentos a que se submete a partir do diagnóstico de autismo seguem revelando sua dificuldade em definir-se na existência: "urrava em mim um impulso à deriva" (Idem, p.9).

É nesse contexto que o livro de Williams tem lugar. É sua "última tentativa desesperada de entender onde estivera e indagar se haveria alguma esperança além daquilo que lutara para construir como vida." Maleval comenta que "uma das motivações de sua primeira obra tinha sido o de reler sua vida, para compreender a sua ‘coerência interna’; uma pesquisa para encadear ‘os elos do passado’, a fim de construir sobre as fundações." (Idem, p.10) A publicação tem, claramente, a função de organização subjetiva, é ela que deverá trazer coerência à relação de Donna Williams com a vida.

As Memórias de Schreber, escritas durante a internação em Sonnenstein na época em que inicia um processo para recuperação de sua capacidade civil, revelam igualmente a importância e o papel da escrita em seu esforço de recuperação. Os elementos centrais do delírio dão contorno ao ponto de angústia, mas o que dá ao delírio seu eixo de estabilização é a vontade de mostrar ao mundo que se recuperara, através da publicação de sua obra. A preocupação de Schreber com a credibilidade do trabalho transforma-o, entretanto, em tarefa de consequências grandiosas:

Considero possível e até mesmo provável que o futuro desenvolvimento de meu destino pessoal, a divulgação de minhas idéias religiosas e o peso dos motivos que se imporão para o reconhecimento da sua exatidão provocarão nas concepções religiosas da humanidade uma reviravolta como nunca houve outra igual até hoje na história. Não desconheço os perigos que podem resultar de um abalo de todos os sistemas religiosos existentes. Mas confio no poder vitorioso da verdade, que terá força suficiente para compensar os prejuízos transitórios que poderiam derivar de uma confusão religiosa das mentes. (Schreber, 2006, p.225)

Grandiosa também é a tarefa de Joyce, que com sua obra pretendia manter críticos e leitores ocupados por ao menos trezentos anos. Mas enquanto as limitações de Schreber como escritor o condenaram a morrer interno em hospital psiquiátrico, com uma obra sem qualquer prestígio literário (embora imortalizado por Freud, como caso exemplar de paranóia), Joyce encontrou reconhecimento mundial como um dos maiores escritores do século XX.

Também no caso Aimeé, o lugar da escritora, da romancista famosa, aparece na função de eixo organizador do delírio, sustentado no laço social. Aimeé acredita estar destinada a ser uma carreira de mulher de letras e ciências [29], tarefa grandiosa que lhe permitirá contribuir para o "desaparecimento do reino da maldade sobre a terra" (Lacan, 1932, p.164), inclusive daqueles que julga quererem fazer mal a seu filho. Todos os esforços empreendidos para a publicação de suas denúncias pelos jornais, assim como os esforços para a publicação de seu livro (chega até a escrever ao príncipe, fazendo-lhe um apelo nesse sentido) não são apenas uma tentativa de dar contorno à angústia do temor de que algo aconteça a seu filho, mas também de dar um sentido a sua própria existência.

Aimée afirma que teria largado tudo, até mesmo o filho, para ir aos Estados Unidos em busca do sucesso. (Idem, p.157) Seus dois romances são escritos, segundo Lacan, de um só fôlego e numa "atmosfera febril" (Idem, p.176). Lacan observa que eles não possuem nenhuma particularidade tipográfica, o que os distingue da "apresentação habitual dos escritos dos paranóicos interpretantes: maiúsculas iniciais nos substantivos comuns, sublinhas, palavras destacadas, vários tipos de tinta, todos traços simbólicos das estereotipias mentais." (Idem, p.176) Tampouco possuem qualidades literárias, mas as recusas em publicá-los são entendidas por Aimeé como zombaria dos editores. (Idem, p.168) Pouco antes do atentado contra a atriz, Aimeé recebia mais uma recusa: "ela depositava suas últimas esperanças nos romances enviados à livraria G. Daí sua imensa decepção, sua reação violenta quando eles lhe são devolvidos com uma recusa." (Idem, p.168) Uma reação que é, aliás, muito comum na psicose, na medida em que é a reação diante da recusa do que poderia dar um sentido a sua existência, é seu avesso não simbolizável.

Até mesmo no caso do Homem dos Lobos, é possível atribuir à publicação de um livro um importante efeito estabilizador – ainda que não se trate de um livro escrito pelo paciente, mas do caso clínico publicado pelo próprio Freud. Quinet sugere, no livro Psicose e laço social, que Serguei Pankejeff teria encontrado, na nomeação Wolffmann, essa estabilidade, de tal forma que ele passa a assinar "Homem dos Lobos" depois de seu tratamento com Freud (Quinet, 2006). A hipótese de Quinet permite entender o efeito desorganizador da doença de Freud para o Homem dos Lobos, que resultará no episódio delirante que o levará ao tratamento com Ruth Brunswick.

Conclusões

Conforme pudemos ver ao longo deste artigo, os primeiros seminários de Lacan contém indicações fundamentais dos caminhos que o levarão a sustentar a aposta em um tratamento possível das psicoses pela psicanálise. Caminhos traçados pela consideração da particular relação do psicótico com a linguagem, efeito da foraclusão, que se evidencia no caráter essencialmente imaginário da linguagem que se apresenta nos delírios.

Se, como nos ensinou Freud, o delírio é uma tentativa de cura, a grande contribuição da psicanálise ao tratamento possível das psicoses está em ter reconhecido importância desse esforço delirante do psicótico, que indica que a cura, na psicose, diferentemente do que ocorre com a neurose, não está do lado do esvaziamento, mas da construção. Caberá à análise acompanhar o sujeito na construção de uma suplência que lhe permita lidar com o ponto de desestabilização, ou seja, com o foracluído, localizável e definível pelo trabalho da análise.

Tal é o esforço, solitário e errante, de Schreber, e também de Aimée, que mostram que nem toda construção delirante é bem sucedida nessa tarefa. E, neste ponto, a comparação com a neurose é norteadora.

Na neurose, o que responde a esse ponto de angústia é o recurso simbólico ao significante fálico, que faz com que a angústia seja ordenada simbolicamente, como temor da castração, e permite operar dialeticamente com a realidade, pela oposição falo-castração.

A função da análise será a de auxiliar o sujeito psicótico na construção de balizas imaginárias que façam suplência à função foracluída da metáfora paterna e do falo na neurose. Nesse sentido, sua eficácia será maior na medida em que a construção delirante cumprir a função foracluída do significante fálico, a de permitir uma abordagem dialética da realidade.

É o que Lacan chamará, no Seminário 3, dialética imaginária: "o estudo do delírio de Schreber tem o intere sse eminente de nos permitir discernir de maneira desenvolvida a dialética imaginária." (Lacan, 1955-56, p.105) Trata-se de uma dialetização que funcionaria em espelho, pela oposição de dois termos: " (...)o delírio nos mostra o jogo das fantasias em seu caráter absolutamente desenvolvido de duplicidade. As duas personagens às quais o mundo se reduz para o presidente Schreber são feitas uma em relação à outra, uma oferece à outra sua imagem invertida." (Idem, p.105)

Não sendo possível ao psicótico operar com o significante fálico, é necessário encontrar recursos significantes que permitam dar ao ponto desencadeador de angústia um tratamento de linguagem que lhe permita tratar como negatividade imaginária o que o neurótico aborda enquanto falta simbólica.

É nisso que o delírio cumpre sua função de suplência, distingue-se do delírio clássico do louco psicótico, e pode ser chamado de metáfora delirante.

Ademais, não é sem importância que tal construção esteja sustentada na possibilidade de inserção social do delírio, ou seja, sua capacidade de produzir laço social – tarefa em certa medida bem sucedida por Joyce e Donna Williams (e, de certa forma, pelo Homem dos Lobos), mas que fracassa no caso de Schreber e Aimée. É o que delimita a linha divisória entre a patologia e a cura na psicose.

Evidentemente, o tema não se esgota aí, uma vez que Lacan abordará essa estabilização de maneiras diferentes ao longo de seu ensino. Entretanto, o inestimável valor das contribuições iniciais de Lacan ao entendimento do funcionamento psicoses está na indicação – rigorosa e precisa, e extremamente precoce em sua obra – de que há tratamento possível das psicoses pela psicanálise.

Notas

[1] Também Lacan, no Seminário 3, afirmava: "das duas coisas uma – ou o delírio não pertence em nenhum grau ao domínio que é o nosso de analistas, não tem nada a ver com o inconsciente – ou ele está na dependência do inconsciente, tal como nós (...) acreditamos poder elaborá-lo no curso destes últimos anos." (Lacan, 1955-56, p.139) Desde Freud, e passando por Lacan, a questão se coloca: a psicose pode ser tratada pela psicanálise? Ela pode ser incluída nesse domínio que é o nosso? Se a medicação segue sendo a forma mais usual de tratamento do psicótico delirante, é porque a resposta talvez permaneça, ainda hoje, um tanto obscura até mesmo para os próprios psicanalistas.

[2] LACAN, Jacques (1932). Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Ed. Forense Universitária, RJ, 1987.

[3] Embora essa articulação seja uma das maiores contribuições de Lacan para o avanço da teoria e do manejo clínico das psicoses, situar a psicose como o que "não funciona" em relação à neurose conduz a um problema que levará muito tempo para ser resolvido teoricamente: o entendimento da psicose como uma estrutura clínica "menor" em relação à neurose, seja do ponto de vista da patologia (considerada mais grave), do desenvolvimento (considerado "aquém" da neurose), da inteligência, etc. No livro A foraclusão, por exemplo, a psicose é apresentada, poética mas inadvertidamente, como do lado da exclusão, do exílio, fora de toda inscrição: "a foraclusão é o nome da fratura que os encerrou fora de toda inscrição, fora das pegadas dos nossos sonhos, do céu dos nossos pensamentos, da casa da nossa dor ou da nossa alegria. (...) O exílio fratura a memória; as fotografias de família desapareceram, os objetos do lar foram dispersados, não há mais marcas." (Rabinovitch, 2001, p.8. Grifo nosso) Sabemos que o próprio Lacan oferecerá importantes elementos teóricos que permitirão superar essa dificuldade e pensar a psicose em relação à neurose sem, necessariamente, situá-la como melhor ou pior (que é, aliás, a tendência de toda ordenação fálica das questões, mais uma dificuldade na abordagem do problema).

[4] As Memórias são escritas em 1900, durante sua internação em Sonnenstein, na mesma época em que começa a se interessar por sua situação legal e inicia um processo para recuperação de sua capacidade civil. A função desses escritos na tentativa de recuperação de Schreber é inegável.

[5] Também no caso Aimeé, como observa Lacan, "todos os elementos tumultuados da atualidade são utilizados pelo delírio." (Lacan, 1932, p.160)

[6] O mesmo ocorre no caso Aimée (Lacan, 1932), que permanece longos anos presa a sua crença delirante. É importante lembrar, entretanto, que ocorre um abalo na crença delirante logo após sua prisão, que comentaremos adiante.

[7] Esse ponto traz questões importantes em relação ao final de análise no trabalho pela via simbólica. A questão que se coloca é: quando podemos afirmar que chegou-se ao sentido último de um sonho, de um sintoma? No Seminário 8, Lacan afirmará: "é preciso realmente admitir que não existe em ninguém qualquer elucidação exaustiva do inconsciente, por mais longe que seja levada uma análise." (Lacan, 1960-61, p.184)

[8] Reproduzimos aqui a grafia tal como aparece na tradução para o português do texto original de Schreber, Memórias de um doente de nervos. Paz e Terra, SP, 2006. 3a ed.

[9] Este sentido do qual o sujeito não se apropria e que parece vir do exterior está frequentemente presente na relação do psicótico com os próprios sonhos: o sonho não é enigma a decifrar, ele é mensagem plena de um sentido que o sujeito toma como imperativo exigindo resposta. Assim como no delírio, a relação com o sonho é de certeza. Um exemplo é o da mulher que, estando abrigada por ter sido agredida e ameaçada de morte pelo marido, acorda certa manhã anunciando: "Sonhei que ele me dizia para voltar. Preciso ir para casa."

[10] Este termo é utilizado por Saussure para abordar o uso do significante dentro de uma determinada comunidade linguística onde o que se observa é que, embora haja uma aparente liberdade na escolha do significante, uma vez que ele é escolhido não haveria possibilidade de substituição. O psicótico parece revelar com mais clareza a imutabilidade daquilo que para o sujeito se torna signo, que é o que Saussure chama carta forçada: "Diz-se à língua: ‘Escolhe!’; mas acrescenta-se: ‘o signo será este, não outro’." (Saussure, p.85) O que distingue o uso que o psicótico faz dessa carta forçada e o uso de um significante dentro de uma comunidade linguística é que, no caso da psicose, esse uso cria neologismos, foraclui o sentido social, compartilhável, do significante.

[11] Ver LACAN, Jacques. O seminário sobre "A carta roubada" (1955). In: Escritos. Jorge Zahar Editor, RJ, 1998.

[12] Presente, evidentemente, também na neurose, quando se considera o aspecto social do uso da língua, o fato de que a comunicação só é possível dentro de uma certa comunidade linguística porque se sustenta na vertente imaginária da linguagem.

[13] No Seminário 9, Lacan proporá uma distinção entre signo enquanto "representa algo para alguém" (Lacan, 1961-62, p.136) e o significante enquanto "representa o sujeito para outro significante" (Idem, p.136). Enquanto na neurose a significação é efeito metafórico que resulta da associação entre significantes (e não de seus significados), na psicose a significação (delirante) é efeito de uma relação fechada entre o significante e o significado, evidenciando o aspecto imaginário da linguagem. Se na neurose o significante substitui o sentido recalcado que o trabalho da análise irá buscar, na psicose temos o aparecimento do significante em seu valor de signo, não admitindo qualquer possibilidade de dialetização (a não ser a dialetização imaginária, da qual trataremos adiante). A evidência mais importante é o próprio delírio e o valor de signo que seus elementos portam, ou o neologismo e sua inequívoca significação para o sujeito que o produz. Significante e significado estão aderidos de tal forma na significação delirante, que impossibilitam aquela que é a propriedade mais evidente do valor simbólico da linguagem, o deslizamento do significado sob o significante. Esse deslizamento é, ao mesmo tempo, a condição da metáfora e seu efeito.

[14] Ver LACAN, Jacques. A significação do falo (1958). In: Escritos. Jorge Zahar Editor, RJ, 1998.

[15] Entretanto, na própria teoria psicanalítica, há uma expressão que poderíamos chamar foraclusiva. Trata-se de uma proposta de abordagem das estruturas clínicas na infância, sustentada pela curiosa construção: psicoses não-decididas da infância. (Bernardino, 2004) Temos, nessa construção, um interessante exemplo de afirmação de algo que, em seu contexto mais geral, é exatamente o que se pretende negar. Ora, se há um "não-decidido" na infância, porquê afirmar que se trata da psicose? A presença do termo psicose revela, paradoxalmente, na própria formulação psicoses não-decididas, aquilo que está sendo negado: que haja psicose na infância. Ao invés de afirmar que as estruturas são não-decididas na infância, optou-se pela afirmação de que as psicoses – que segundo a autora "não existem" na infância – são não-decididas. Consequentemente, o que fica foracluído é, justamente, a psicose. Ela entra inadvertidamente, ali onde se procura deixá-la fora. O sentido da construção é negativo: não existem psicoses na infância porque a estrutura, na infância, é não-decidida. Mas a frase afirma o que nega: as psicoses são não-decididas na infância. O que faz o termo "psicose" aí? Ele revela o que se procurou foracluir. Vale observar que, embora essa concepção de um não-decidido estrutural, que deixaria a criança numa "encruzilhada estrutural entre a neurose e a psicose" (Revista Psicose, 2007, p.65), seja discutível do ponto de vista teórico, há uma preocupação clínica legítima que a sustenta: o temor dos efeitos nocivos de um diagnóstico de psicose na infância. (Campanário, 2008, p.135) Mas será que em nome dessa preocupação (que de fato merece atenção e manejo cuidadoso na clínica) é necessário que abrir mão deste instrumento norteador da escuta que é a hipótese diagnóstica estrutural?

[16] Tal esforço, por não contar com o elemento fálico que dá a estrutura da articulação dialética de uma relação com o mundo sustentada no par presença-ausência, só pode sustentar-se no que podemos chamar, utilizando uma expressão de Lacan, dialética imaginária. Voltaremos a esse ponto adiante.

[17] Um exemplo dessa dificuldade é o da psicótica que, ao ser questionada em sua crença delirante de que não era preciso falar, porque a analista lia seus pensamentos, reage agressivamente, agarrando-se ainda mais à certeza de seu delírio: "eu sei que você lê meus pensamentos! Você está tentando me enganar? Está achando que sou idiota?"

[18] Sabemos que Aimée foi ao encontro da atriz com uma faca na bolsa, o que seria um importante indicativo de premeditação do ataque. Entretanto, todo o contexto que permeia o ataque – a angústia de Aimeé na ocasião, as preocupações que a tomam quando decide ir ao encontro da atriz, sua necessidade de conversar com ela – permitem situá-lo também do lado de uma passagem ao ato.

[19] São os casos que alguns analistas têm recentemente nomeado de "psicoses ordinárias" (Miller, 2005), dando um novo nome para um fato já há muito observado por Lacan: que os psicóticos podem encontrar, no mundo, na vida, muletas imaginárias que lhes dêem condição de manter uma estabilização, independente de qualquer tratamento, seja ele analítico ou não. Tais psicoses são obviamente mais difíceis de diagnosticar que as psicoses em surto, mas qual seria a vantagem de dar-lhes um novo nome?

[20] Aimée tem 28 anos quando engravida pela primeira vez. É durante essa primeira gravidez que começam a aparecer os primeiros sinais delirantes, que aumentam com o nascimento de um primeiro filho natimorto, e adquirem ainda mais importância durante a gravidez do segundo filho, que nasce quando ela já completara 30 anos. Mas Aimée não parece receber nenhuma forma de acolhimento a essa angústia ao longo de todo esse período. Será internada quando seu segundo filho, ao qual ela dedica cuidado excessivo e delirante, já completara catorze meses, três anos depois do início de seus distúrbios.

[21] O diagnóstico psiquiátrico de paranóia de autopunição faz pensar não apenas que Aimée comete o ato tendo a intenção de ser punida, mas que a punição teria, em si, efeitos organizadores. Lacan mencionará, em sua tese, até mesmo uma "satisfação da pulsão autopunitiva" (Lacan, 1932, p.278) como determinante da cura na paranóia de autopunição. Uma análise atenta do caso permite, entretanto, fazer uma leitura do ataque na perspectiva de uma passagem ao ato, o que implica considerar que não se tratou de um ato calculado, mas da resposta do sujeito (muito comum nas psicoses, aliás) diante de uma perda abrupta de seu lugar diante do Outro. Não há indicação de que Aimée tenha ido ao encontro da atriz com a intenção de atacá-la. Inicialmente, seu anseio é conversar com a atriz. "Já há algum tempo que a Sra. A tinha a intenção de pedir explicações à atriz. Atacou-a porque a viu fugir." (Idem, p.150) O ataque pode ser interpretado, nesse sentido, como ato impensado que se segue à recusa da atriz, e não ato calculado que visa punição. Vale lembrar também a afirmação de Lacan de que "nenhum alivio se segue ao ato." (Idem, p.169) É essa diferença que parece colocá-lo do lado da passagem ao ato, comparável à bofetada que Dora dá no Sr. K na cena do lago, e à tentativa de suicídio da jovem homossexual que se joga nos trilhos do trem, trabalhadas por Lacan no Seminário 10.

[22] No Seminário 3, Lacan perguntará: "Qual a significação que, no caso do presidente Schreber, foi assim aproximada? Que significante foi portanto chamado, cuja falta produziu um tal transtorno num homem que até ali estava perfeitamente conformado ao aparelho da linguagem, na medida em que ele estabelece a relação corrente com seus semelhantes? A ausência de que significante pode explicar que a repetição da fala se torne para ele o modo de relação eletivo com um outro, que a alteridade seja reduzida ao registro único da alteridade absoluta, quebrando, dissipando a alteridade de todos os seres de seu meio?" (Lacan, 1955-56, p.319) A pergunta de Lacan é: "o que será que torna subitamente insuficientes as muletas imaginárias que permitiam ao sujeito compensar a ausência do significante?" (Idem, p.233)

[23] "Um dia", escreve Schreber, "de manhã, ainda deitado na cama (não sei mais se meio adormecido ou já desperto), tive uma sensação que me perturbou da maneira mais estranha, quando pensei nela depois, em completo estado de vigília. Foi a idéia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher submetendo-se ao coito. Essa idéia era tão alheia a meu modo de sentir que, permito-me afirmar, se me ocorresse em plena consciência, eu a teria rejeitado com tal indignação que, de fato, depois de tudo o que vivi nesse ínterim, não posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por uma influência externa que estava em jogo." (Schreber apud Nasio, 2001, p.53)

[24] Com a teoria sobre o complexo de Édipo, Lacan mostrará a importância central do simbólico e do significante fálico na ordenação da sexualidade, lembrando que "as duas vertentes, macho e fêmea, da sexualidade, não são dados, não são nada que possamos deduzir da experiência." (Lacan, 1955-56, p.283) Mas vale lembrar que também a ordenação fálica da sexualidade, na neurose, não é recurso que resolva os impasses relativos ao feminino uma vez que, como afirmará Lacan em "A significação do falo", a relação com o falo "é de interpretação especialmente espinhosa na mulher." (Lacan, 1958, p.693). Tais impasses serão retomados por Lacan com o auxílio das fórmulas da sexuação, a partir do Seminário 18.

[25] Tal como acontece nas neuroses, especialmente na histeria, cujo exemplo paradigmático está na posição da Sra.K para Dora, como a representante do enigma o que é uma mulher?

[26] Na neurose, o que responde a esse ponto de angústia é o recurso simbólico do significante fálico, que faz com que o ponto de angústia seja ordenado simbolicamente, como temor da castração. É esse o recurso que Lacan afirma estar foracluído na psicose.

[27] Em O simbólico, o imaginário e o real Lacan lembrará que a relação com a morte (os rituais, o enterro dos mortos, etc) é essencialmente simbólica e que, no registro imaginário, a morte se apresenta como "elemento de nadificação final." (Lacan, 1953 (2), p.38) Do ponto de vista imaginário, é a angustia de nadificação, de desaparecimento do eu, que vem responder quando essa lógica não funciona. A lógica simbólica produz para a articulação da falta nesse ponto que seria, como afirma Lacan, " a fonte da possibilidade de transação simbólica do real." (Idem, p.38)

[28] Na década de setenta, depois de ter desenvolvido, no Seminário 17, sua teoria dos discursos (Lacan, 1969-70) Lacan definirá o psicótico como aquele que está na linguagem, mas não no discurso (Lacan, 1972), ressaltando justamente o que se passa em termos do laço social na psicose. Daí ser possível pensar que a produção delirante, que funciona no sentido da estabilização, só pode ser considerada cura na medida em que ela funcione como suplência ao laço social. É o que propõe Quinet, no livro Psicose e laço social, "lançar as bases para se pensar o fora-do-discurso da psicose e suas tentativas de laço social." (Quinet, 2006, p.10)

[29] "Sr Doutor – escreve ela ainda num bilhete de tom extremamente correto, no décimo-quinto dia de sua reclusão – gostaria de pedir-lhe para que fizesse retificar o juízo dos jornalistas a meu respeito, chamaram-me de neurastênica, o que pode vir a prejudicar minha futura carreira de mulher de letras e de ciências." (Lacan, 1932, p.170)

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