Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Rupturas familiares:
uma questão para a clínica contemporânea

Isabel Tatit

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Resumo

Esse trabalho é uma investigação sobre as implicações das rupturas familiares na constituição da subjetividade, baseada em uma abordagem psicanalítica que compreende o sujeito como um ser imerso nos fenômenos sociais e políticos. Presenciamos algumas manifestações comuns na clínica com pacientes que sofreram rupturas familiares, tais como: dificuldades no estabelecimento de laços sociais, abalos narcísicos, perda de pontos de referência e, fundamentalmente, a expressão de um desprendimento em relação às pessoas com as quais convivem e ao local onde residem. Verificamos ainda alguns fenômenos que aparecem associados ao rompimento com a tradição familiar, como a descontinuidade das transmissões dos valores e ideais entre as gerações e os sucessivos deslocamentos territoriais vivenciados por alguns de nossos pacientes. A fim de contribuirmos para a prática analítica dentro do consultório, bem como para análise psicanalítica dos fenômenos sociais relacionados aos efeitos de ruptura familiar descritos, essa pesquisa é a tentativa de realizar uma primeira uma articulação de vinhetas clínicas à investigação de ferramentas teóricas nos escritos de Freud, Lacan e de outros pensadores contemporâneos. Nesse sentido, o trabalho busca – a partir da perspectiva de um sujeito envolvido nos fenômenos sociais – contribuir para a reflexão acerca das possíveis intervenções éticas dentro da prática analítica na qual a identidade imaginária tem se revelado ainda mais inconsistente diante da ruptura com os modelos simbólicos.

 

Palavras chave: psicanálise, rupturas, família, laço social, clínica

 

1. Introdução

Essa reflexão surgiu a partir do atendimento de quatro pacientes em consultório particular, seguindo uma abordagem psicanalítica, desde o início de 2007. Em um primeiro momento, a repetição significativa de determinadas falas que refletiam em sintomas também recorrentes nos despertou a atenção. Ao longo da escuta das sessões e das discussões geradas em supervisão em torno dos casos clínicos, deparamos-nos com alguns impasses para a clínica contemporânea. Para além das repetições sintomáticas apresentadas pelos pacientes, seus relatos traziam uma outra característica comum, eram histórias de ruptura com suas famílias.

Os quatro pacientes que utilizaremos como fragmentos de casos clínicos para ilustrar nossa temática, não nasceram na cidade de São Paulo. Além desse deslocamento territorial como ponto em comum, os pacientes falavam também de modo semelhante sobre um rompimento em diversos níveis com a história familiar. Em uma dimensão geral, todos contavam, por exemplo, ter estudado mais do que os pais e, por isso, diziam ter "outros parâmetros", "outros princípios", "outros valores", ou ainda "outro jeito de ver o mundo". Já em uma dimensão particular, o paciente P(1) conta, por exemplo, ter recusado transmitir o sobrenome proveniente de seu pai para seus filhos.

Esses casos refletem o que estamos chamando de rupturas familiares e nos sugerem como proposta a possibilidade de equipará-las às mudanças de posicionamento sociocultural do sujeito, ou ainda, em termos mais psicanalíticos, de aproximarmos as rupturas familiares da noção de deslocamentos socioculturais. Essa aproximação pode ser realizada visto que o discurso dos pacientes relativo ao rompimento familiar manifesta, fundamentalmente, a condição de um novo status social, de novos hábitos, valores, crenças e de mudanças sucessivas do local onde residem. Esclareceremos mais adiante tal concepção.

Outras falas comuns que nos chamaram a atenção quanto aos efeitos da ruptura familiar expressavam a sensação desses pacientes de estarem "soltos no mundo", uma vez que se sentiam desprendidos tanto em relação às pessoas com as quais conviviam quanto ao local onde moravam. Como se vê, algumas referências e vínculos possíveis – tais como morar em São Paulo, em um determinado bairro, com seus cônjuges ou com os colegas, ou ainda, trabalhar em uma certa firma, fazer mestrado em determinada área, estudar para um concurso – aparecem apenas como vínculos circunstanciais.

P. tem cinco filhos e está casado há trinta anos. Diz que sonha mudar-se para um sítio, sozinho e "longe de tudo". Relata que o lugar onde menos se sente confortável é em sua casa, pois se incomoda a vizinhança e, apesar de não visualizar concretamente uma mudança de bairro, reitera em seu discurso que desejaria morar em outro lugar. Esse mesmo paciente já pensou em exercer sua profissão no litoral, deslocamento que implicaria em sua separação da mulher e dos filhos.

N., por sua vez, mudou-se para São Paulo há três anos e, há dois, estuda para um concurso público. A paciente afirma que moraria na cidade na qual conseguisse a vaga para o trabalho, sem sequer se reportar ao marido, com quem vive há oito anos. A paciente sonha inclusive em "ser uma pessoa que viaja muito para fora do país", e deseja conhecer ainda diversos lugares.

Outros traços análogos levantados a partir da escuta dos pacientes que haviam sofrido essas rupturas com a herança e tradição familiar se expressavam em fenômenos considerados de regressão e de aprisionamento a um narcisismo primário. Por exemplo, alguns pacientes revelaram em determinados períodos de suas vidas uma recusa ao mundo externo, alguns de forma mais radical, até mesmo abandonando por um certo tempo seus trabalhos, outros de forma menos implícita: expressaram sua introversão ao romperem com antigos amigos, e ao relatarem a criação de espaços de refúgio, reais ou até mesmo fantasiados. São recorrentes as falas acerca de não se sentirem adultos o suficiente, bem como da angústia de não terem nada mais estável em suas vidas e ainda sobre uma incapacidade de amar. A pergunta "o que estou fazendo da minha vida?" é formulada em diversas sessões por pacientes diferentes. A vulnerabilidade da imagem do corpo próprio é também um tema fundamental para esses pacientes. T., uma mulher de trinta e quatro anos descreve muitas situações de estranhamento diante de sua imagem no espelho e dos sonhos nos quais se olha de fora de seu próprio corpo.

As noções aqui citadas brevemente (deslocamento, regressão, narcisismo, imagem do corpo próprio) revelam a interlocução dos fenômenos presentes na clínica contemporânea com uma determinada abordagem psicanalítica. Nesse momento, seria interessante esboçarmos alguns fundamentos das noções citadas e como essas se articulam à nossa questão.

 

2. Fundamentos teóricos

2.1 Narcisismos e a ruptura com a família

Em "Psicologia de Grupo e Análise do Ego", Freud considera que apesar de cada indivíduo resultar de numerosas mentes grupais, já que sua constituição se dá por vínculos de identificação, tal indivíduo pode "(...) também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade" (Freud, 1921, p.163). Esse trecho tem relevância para o nosso trabalho pois revela uma autenticidade do sujeito, sem deixar de lado as influências dos modelos em sua vida psíquica, o que faz da psicologia individual, ao mesmo tempo, uma psicologia social.

Em seu texto "Sobre o Narcisismo", de 1914, Freud propõe uma genealogia do ego na qual ele d escreve a existência de uma catexia libidinal originária voltada para essa instância psíquica. O narcisismo primário está ligado ao sentimento primitivo de onipotência. Assim, a ideia de que o bebê é seu próprio ideal é fundamental para a preservação do ego que, de início, não tem uma unidade. Convém dizer que as figuras parentais servem de alicerce na constituição desse primeiro narcisismo, uma vez que a criança ocupa um lugar de ideal narcísico dos próprios pais. Seguindo em sua genealogia, Freud aponta para um desenvolvimento do ego, que se dá exatamente por um afastamento do narcisismo primário: o ego passa a deslocar sua libido em direção aos objetos, o que denota o início de um interesse pelo mundo externo.

O narcisismo secundário surge exatamente do retorno dessa libido objetal ao ego. A diferença é que, nesse momento, as identificações responsáveis por ligar o sujeito ao mundo conceberam um ideal, pelo qual agora ele mede seu ego real. Assim, as identificações são responsáveis pelo desenvolvimento do ego essencialmente por tirá-lo de seu isolamento onipotente. Desse processo decorre a formação de um ideal que, ao mesmo tempo, aumenta a exigência do ego (e, portanto, é fator de repressão) e responde por sua consistência. Trata-se, por exemplo, da tensão entre a submissão e o reconhecimento dos valores éticos e culturais que o sujeito toma para si.

O conceito de narcisismo assim como o de identificação são cruciais para se pensar as implicações de uma ruptura familiar, exatamente por nos oferecerem recursos teóricos acerca da constituição da subjetividade em sua relação com as primeiras figuras identificatórias, as figuras parentais.

2.2 Constituição do Eu e a ruptura com a família

Lacan, assim como Freud, também reconhece que o desenvolvimento da personalidade está ligado a um processo de socialização. Em sua comunicação (1949) descreve a gênese do Eu por meio do esquema conceitual do estádio do espelho no qual há uma "transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem" (p.97). Nesse sentido, Lacan recupera os estudos de Henri Wallon com os bebês, nos quais o psicólogo descreve a experiência corporal do bebê como sendo de impotência motora e de fragmentação, devido a sua prematuração biológica. A imagem diante do espelho, ou seja, uma imagem própria que vem de fora – do olhar do outro – teria um caráter indutor e regulador do desenvolvimento do Eu para os bebês. Essa imagem completaria algo que a percepção nesse estágio, tão prematuro, ainda não conseguiria apreender. É nessa direção que Lacan considera o Eu como uma ordem de alienação do desejo, na medida em que é constituído ao submeter-se a uma referência do outro, a uma referência externa.

Como vimos, fica evidente tanto em Freud quanto em Lacan que os elementos identificatórios, traços de um outro, passam a fazer parte da realidade psíquica do sujeito. Essa concepção é importante uma vez que revela o processo social de constituição do Eu, no qual ocorre uma precipitação desse Eu diante de uma matriz simbólica.

Tendo em vista nossa temática, surgem algumas perguntas a partir do que já foi colocado: o que ocorre e como lidar com os efeitos do rompimento com elementos identificatórios e primordiais? Há um abalo nas defesas contra angústia? De que forma essas rupturas se relacionam aos deslocamentos psíquicos mais habituais, como os que observamos na própria adolescência?

2.3 Deslocamentos e a ruptura com a família

Algumas reflexões de autores contemporâneos que pensam os casos de migração (Rosa, Carignato, Berta, 2007) nos trazem uma contribuição importante quando relacionam o deslocamento territorial com o deslocamento proposto por Freud como lei do inconsciente. Uma vez que os fragmentos de casos clínicos aqui utilizados parecem revelar que os deslocamentos territoriais caminham junto às rupturas sociocultural e familiar, é de nosso interesse investigar, à luz da noção de inconsciente, os efeitos subjetivos desses deslocamentos. Sendo assim, as formas de subjetividade produzidas pelo fenômeno da migração que já foram descritas por autores contemporâneos, nos servirão como ferramentas para a análise dos casos de rupturas familiares e socioculturais.

Carignato (2004) propôs que há duas maneiras de o imigrante agir ao se deparar com uma nova cultura: ou ele adota de modo acrítico os novos referentes simbólicos, ou ele os rejeita radicalmente. Uma hipótese interessante é que as rupturas permitem um momento de suspensão das certezas simbólicas e imaginárias do Eu, mas as produções subjetivas advindas dessa suspensão podem se revelar tanto como cristalização de identidades, quanto como uma possibilidade de deslocamento psíquico que se assemelha à condição desejante (Rosa, Carignato, Berta, 2007). É com base nessa reflexão que visualizamos a possibilidade do desenvolvimento de dispositivos para um trabalho clínico ético com nossos pacientes.

Parece que a ilusão de Eu que nos faria esquecer das nossas relações com a estrutura (Safatle, 2007, p. 43), ou seja, com os modelos, é comprometida em se tratando dos casos de ruptura familiar. Tal noção esclarece de alguma forma a acentuada vulnerabilidade da imagem do corpo próprio citada anteriormente e expressa pelos pacientes. Os casos clínicos que revelam esse fenômeno de nomadismo, por conseqüência de ruptura com os modelos parecem, portanto, apresentar novas modalidades de laço social. Assim, temos observado, e este é um ponto crucial desta pesquisa, que as vicissitudes da ruptura com as referências têm se revelado um impasse para o trabalho clínico, a começar da dimensão imaginária da intersubjetividade. A imagem de si apresenta-se muito instável, quando não esvaziada nesses pacientes, assim como a constituição de ideais e valores.

Da mesma forma, um outro fragmento de caso ilustra a necessidade de deslocamento e o fato de os pacientes se sentirem "desprendidos" dos vínculos atuais. Uma paciente estrangeira, que veio morar em São Paulo há quatro anos para realizar seu mestrado, revela que "moraria até na África" se lá conseguisse um emprego. Também relata em diversas sessões a vontade de conhecer outros estados do Brasil. Essa questão da mobilidade territorial, que tanto aparece nesses pacientes, nos lembra a carta de Freud à Romain Rolland ("Um distúrbio de memória na Acrópole", 1936) em que o autor descreve sua ânsia de viajar como expressão de um desejo de escapar da pressão familiar e da vontade de sair de casa. No mesmo texto – no qual Freud fundamentalmente relata uma sensação estranha ao viajar à Atenas, sensação esta ligada as suas fantasias infantis de incredulidade em relação à existência da Acrópole –, o autor ainda analisa o sentimento de culpa que o envolvia nessa viagem, em companhia do irmão, quando o psicanalista estava com 48 anos:

Pode ser que um sentimento de culpa estivesse vinculado à satisfação de havermos realizado tanto: havia nessa conexão algo de errado, que desde os primeiros tempos tinha sido proibido. Era alguma coisa relacionada com as críticas da criança ao pai, com a desvalorização que tomou o lugar da supervalorização do início da infância. Parece como se a essência do êxito consistisse em ter realizado mais do que o pai realizou, e como se ainda fosse proibido ultrapassar o pai. (Freud, 1936, p.245)

Esse sentimento de culpa em relação à superação dos pais é um elemento que deve ser levado em conta no trabalho com os pacientes, visto que parece permear as questões presentes em nossa clínica. Freud reflete sobre os sentimentos de superação e de prazer relacionados a uma ruptura familiar usual: Freud já havia se casado, e até mesmo já tinha escrito seu livro sobre os sonhos. É interessante notarmos que os efeitos do rompimento retornavam como sensações estranhas e, de acordo com sua carta, como um fenômeno de desrealização, no qual há um sentimento de suspensão da realidade e despersonalização.

Como afirma Rosa no prefácio do livro de Paladino (2005), no momento de ruptura familiar "(...) o adolescente reinscreve-se no laço social, superando, conservando e revelando o histórico do sujeito e conferindo-lhe novas significações. As ações ou acidentes, realizações (...) promovem reorganizações estruturais importantes" (p. 10). Ainda em sua carta, Freud revela que essa reinserção não é um processo pelo qual o sujeito passa incólume. Sentimentos e representações que envolveram tais rupturas parecem retornar em situações que levem o sujeito a recordar momentos anteriores a elas, ou talvez, quando novas rupturas são realizadas. Nesse sentido, é presumível que nem mesmo a ruptura familiar tenha uma consequência estanque para a formação da subjetividade, mas provavelmente os rompimentos possam ser considerados responsáveis por reatualizações, reorganizações, ao longo de toda vida, da realidade psíquica do ser.

2.4 Individualismo contemporâneo e a ruptura com a família

Segundo o psicanalista Joel Birman(2), o pensamento do século XIX que concebia a adolescência como a saída da infância seguida da "experimentação de si" disseminou-se, na contemporaneidade, para todos os tempos da vida. Vivemos em uma sociedade na qual a "adolescência" é estendida. É como se todas as gerações apresentassem as características fundamentais do que se chamou de adolescência. Grosso modo, ele acredita que há um desamparo nos dias de hoje pela falt a de reconhecimento simbólico (i.e. desarticulação da família nuclear burguesa, precariedade do Estado, falta de emprego, etc.). O efeito desse desamparo se evidencia nessa dificuldade da passagem da antiga adolescência para a antiga fase adulta, nas inseguranças narcísicas, sentimentos de impotência entre outros sintomas atuais. Birman justifica os efeitos drásticos dessa falta de referência por meio da teoria lacaniana, que sustenta a necessidade do sujeito ter algo a mais que a imagem especular, a saber, o sujeito precisa de um reconhecimento simbólico, que lhe falta na atualidade.

Calligaris (1993) também traz uma contribuição importante a respeito do homem moderno em sua relação com a ordem simbólica, ao descrever de que forma lidamos hoje com a nossa herança, bem como com a internalização das leis. Segundo o autor, a nossa cultura ocidental tem como valor fundamental o individualismo e o transmite por meio do imperativo primeiro "seja livre". É dessa forma que, para garantir-se como indivíduo, o sujeito deve necessariamente se destacar dos outros afirmando-se como diferente da própria herança. Trata-se, portanto, da transmissão de mensagens paradoxais uma vez que o sujeito herda junto ao legado histórico e cultural, a ordem de se afirmar como indivíduo e, portanto, de recusar a própria herança. Calligaris revela dessa forma algo muito característico da sociedade atual:

Nosso processo de internalização das leis, de nossa herança, implica que o indivíduo internalize a lei recusando a origem social do que ele internaliza. Ou seja, nosso processo de internalização vai junto com a recusa psíquica da origem do que é internalizado. (Calligaris, 1993, p. 187).

É interessante para essa reflexão apontarmos as possíveis consequências desse recalque da herança. O autor nos chama atenção para o fato de que, ao se esquecerem do próprio passado, os sujeitos, em um primeiro momento, tornam-se iguais, até que as diferenças retornam, não pelo canal da lembrança que se encontra obstruído, mas em forma de identidades imaginárias. Tal fenômeno nos parece relevante visto que na clínica com pacientes que sofreram rupturas socioculturais (podemos considerar até os pequenos deslocamentos socioculturais, que não implicam necessariamente uma mudança de país, mas muitas vezes só de cidade, ou mesmo uma ascensão econômica em relação à geração familiar anterior) a construção de identidades imaginárias no lugar de verdadeiras identificações reaparece insistentemente. No entanto, o que observarmos em nossa clínica não é a cristalização de identidade, descrita por Calligaris, e sim uma inconsistência e uma instabilidade notórias dessas construções imaginárias. De acordo com o psicanalista, se recalcamos a herança que poderia nos prover de identificações a fim de nos sustentarmos como sujeitos, resta agora apenas o olhar dos outros para nos dizer se somos amáveis.

 

3. A questão para a clínica contemporânea

Diante da formulação de Calligaris, qual seja, "levantar o recalque: lembrar a parte de História e Discurso que nós recalcamos, dizê-la – na vida cultural ou no divã – talvez seja pelo menos preventivo de sua volta sob a forma de identidade imaginária", perguntamos se a posição ética proposta seria sustentável em nossa clínica. Essa indagação se impõe uma vez que nos deparamos com pacientes que descrevem um vazio, uma inconsistência inclusive dessa identidade imaginária associada a profundos abalos narcísicos.

De modo mais específico, percebemos que, em nossa clínica, é preciso, num primeiro momento, trabalhar com uma construção imaginária (de identidade). Tal dispositivo poderia ser considerado antiético ou até mesmo o inverso do caminho para uma verdadeira análise. Como vimos, os pacientes parecem ter necessidade de recuperar, como ponto de partida, o que deles está espalhado nos outros, por meio de uma construção imaginária. A esse respeito, talvez venha ao caso acompanharmos um processo de simbolização de algumas ausências, já que elas talvez não puderam ter sido feitas.

E assim, chegamos a nossa problemática, na medida em que não pretendemos realizar uma prática clínica alienante que cristalize a estrutura imaginária do sujeito.

 

4. Considerações finais

Quando falamos de ruptura familiar, estamos nos referindo a ruptura com valores, com ideais e com a transmissão de uma história, elementos fundantes da subjetividade e da construção de laços sociais. Pretendemos, assim, descrever, refletir sobre o processo de constituição da subjetividade em sua relação com os fenômenos socioculturais e políticos envoltos nos desenraizamentos familiares vividos.

Talvez seja necessário que as novas pesquisas em Psicanálise se atentem a esses modos particulares de laço social apresentados pelos pacientes, com o objetivo de pensarmos em possíveis dispositivos de manejo para o trabalho clínico nesse novo contexto. Uma das tentativas é compreender o deslocamento territorial amparado pela noção de deslocamento proposta por Freud como lei do inconsciente, pois partimos da premissa que o distanciamento físico dos pacientes com suas famílias parece acarretar inúmeras outras modalidades de deslocamento, inclusive mudanças de posicionamento psíquico.

Outra possibilidade é nos atentarmos aos discursos que aparecem na clínica em tais condições de ruptura como instrumentos que nos servirão para a investigação dos tipos de discurso que nos levarão às modalidade de laço. Como esses pacientes se reinscrevem no laço social após a ruptura? Como lidam com seus ideais e com suas identificações? Os pacientes incorporaram de forma impensada suas novas referências culturais, na busca reconhecimento, ou as rejeitaram, se rebelando contra todas e quaisquer autoridades?

Essa estratégia se dá na medida em que, as análises não devem se apoiar no indivíduo, mas na noção de sujeito em sua relação com os discursos. Em outras palavras, é importante que se leve em conta a concepção de que existem modos de laços sociais, portanto, laços discursivos que produzem o sujeito. É nesse sentido que se deve investigar de que modo os discursos capturam os pacientes que encontramos em nossa clínica com esse traço comum, de ruptura familiar.

Há uma aproximação de nossa temática com a discussão sobre a crise da referência paterna realizada por autores contemporâneos e exemplificada aqui com o texto de Calligaris (1993). A partir da leitura desses autores e das ideias, sempre presentes, de Freud e Lacan, investigaremos o que há de específico nos sintomas que se apresentam na clínica com os pacientes que revelam explicitamente seu desligamento com a tradição familiar. Mais do que isso, muitos pacientes relatam que a família parecia ter em suas infâncias um papel fundamentalmente paralisante, de atraso de desenvolvimento e de obstáculo à cena social. Em alguns casos, não há referência da família como instituição protetora, em nenhum momento da vida. Como vimos Calligaris já dizia que o esfacelamento das referências que sustentavam a transmissão da lei fragilizou as formações imaginárias. Acreditamos, portanto, que os nossos pacientes revelam uma construção de caráter que expressa de maneira ainda mais enérgica algo que permeia os laços sociais contemporâneos e, dessa forma, nos deparamos com inúmeros impasses no manejo dessas manifestações.

Notas

  1. Os nomes dos pacientes foram substituídos com o objetivo de preservarmos suas identidades.
  2. Informações fornecidas durante a palestra "Adolescência sem fim? – Peripécias juvenis em um mundo pós-edipiano", no Colégio Oswald Andrade, em São Paulo, no dia 04 de abril de 2009.

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