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A voz é corpo, uma parte ou um produto que cai se desprendendo do corpo. Isso é característico do objeto a, esse objeto que cai, que se desprende do corpo, tal como as fezes que também são produtos do corpo que o deixam. A voz, no entanto, parece ter uma característica mais volátil, efêmera, o que reforça, ainda mais, a sua condição de objeto a. A voz é corpo na medida em que se corporifica enquanto a, isso quer dizer que a voz é corpo na medida em que falta, na medida em que faz do corpo não uma unidade, mas a colocação do corpo em falta. A voz representa a própria caducidade do corpo, enquanto objeto em falta, faz falta no corpo, mostra-o em pedaços, não inteiro, não uno; um corpo que se desfaz.
A voz é a fonia, é o som do corpo, um corpo que vibra, que murmura, que exala sons que produzem cacofonias, disfonias e afonias. Na experiência analítica, podemos verificar o quanto o sujeito em análise não procede a uma fala organizada de acordo com uma língua clara, objetiva, com ordenamento de idéias que respeitam um início, meio e fim. Ao contrário, o sujeito em análise murmura, gagueja, pigarreia, geme, diz coisas para no momento seguinte desdizer; enfim, coloca em cena não a língua, enquanto sistema de signos, tão pouco a fala, enquanto o uso particular desse sistema; mas, fundamentalmente, o que está posto é a voz, enquanto objeto pulsional, é o corp(oral) que pulsa, que ofega, que hesita, que se inibe, que se angústia, que faz sintoma.
O que está em jogo, na análise, é a fonação de um corpo que estremece e se expande num movimento pendular de abertura e fechamento próprio da posição do inconsciente, mas também apropriado a pulsação relativa a zona erógena, esta mesma zona que pulsa num movimento de abertura e fechamento do orifício. A zona erógena relativa ao objeto a é um buraco que abre e fecha. Todavia, aí temos uma exceção quanto ao ouvido como zona erógena da pulsão fonante, pois segundo Lacan (1988, p.184): "Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar." A zona erógena também é a inscrição no corpo dos significantes da sexualidade; marca o corpo enquanto órgão erógeno, pulsante. O significante sexualiza o corpo tirando-o da posição anatômica para colocá-lo na dimensão simbólica. Para Lacan (2007, p. 18), "[...] as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer." O corpo passa a ganhar corpo na medida em que deixa de ser apenas um "conjunto" de células para ter uma inscrição linguageira e isso é equivalente a marcá-lo com a falta, a inscrever significantes da falta, esses que o objeto a introduz e que representam a falta e fazem do ser não uma unidade, mas uma incompletude radical.
Lacan (2005), no Seminário 10, aponta que entre os objetos a, a voz é o mais original, o que parece dar um lugar de destaque para esse objeto, destaque esse que seria proveniente da sua própria inscrição. A voz não é o último objeto a se inscrever, tal como foi o último a ser trabalhado por Lacan, mas o primeiro objeto. A posição primordial advém da sua gênese, pois enquanto o infans consegue se subtrair do caráter onividente do olhar do Outro, não conseguirá obstruir os sons vocais do Outro, uma vez que o ouvido não se tapa. O caráter primordial da voz está nesta constatação da dominância da fonação sobre o infans, que antes mesmo de lhe falar lhe vocifera. É a voz de um Outro que carrega pontas de um real inapreensível que penetra o ouvido do infans. É a voz de um Outro primordial que banha esse "proto" sujeito de uma "sonata materna", para utilizar a expressão de Pascal Quignard (1987); uma lalação advinda da mãe enquanto puro som e canto, sem as inscrições da lei significante. Frente a esse real, o simbólico ira avançar na tentativa de fazer calar essa voz, fazer com que o real da voz dê lugar a instância significante. Neste viés, podemos dizer que no princípio era a voz e a voz se fez verbo.
O significante restringe a ação onipresente da voz e cria condições para instalação da lei; isso faz com que a voz dê lugar a fala, que o simbólico avance sobre pontas de real e que aquilo que era pura voz se transforme em uma voz para, endereçada a alguém, marcada pelo Outro que processa esse endereçamento; o que abre condições para as trocas simbólicas e as articulações do sujeito com o Outro. Isso é o que permite o próprio advento do sujeito, pois é somente na medida em que a voz é silenciada que o sujeito pode falar, pois a fala cala a voz. Nas palavras de Harari (1997, p.188), "ao falar, falta a voz", e é necessário que assim seja, que a voz se inscreva como esse objeto em falta e não como presença absoluta, pois é somente como objeto faltante que abre condições para que a lei significante se instale.
É necessário que o sujeito torne-se surdo frente a voz, pois assim poderá falar desde a posição de sujeito do inconsciente, ou seja, aquele que fala sem se escutar, que fala submetido a dimensão de uma equivocação, sem saber exatamente o que diz. A surdez aqui empregada não diz respeito a uma não escuta analítica, mas diz respeito a um momento lógico da constituição do sujeito em que é necessário que a voz caia para se inscrever como objeto a e para causar desejo. A voz deve ser silenciada e o sujeito deve tornar-se surdo frente a ela para se constituir enquanto tal. Vivès (2005, p.10, tradução nossa) define o que entende por esta surdez: "Ponto surdo que eu definiria como o lugar onde o sujeito após ter entrado em ressonância com o timbre originário deverá poder se tornar surdo para falar sem saber o que diz, isso quer dizer, como sujeito do inconsciente." Esse processo é necessário, caso contrário, o sujeito fica afogado na plenitude da voz do Outro primordial, sem cortes, nem silêncios e então estamos no campo das psicoses. Para Harari (2008, p. 69): "Isso explica, também, a dominância das alucinações auditivas no campo das psicoses; nelas, a fala ÿ vetor do Simbólico ÿ não consegue tornar a voz inaudível."
Em verdade, a voz é um objeto incorporado, isso quer dizer que tem a ver com o corpo, que se faz corpo. Essa incorporação é a primeira forma de identificação, uma forma que diz do fato de se fazer corpo, de ser introjetada pelo corpo. A voz como identificação ao corpo trata de corporificar a voz do pai como este representante da lei. A voz, para ser incorporada, deve ser corpo sensível ao significante. Esse significante que no campo das identificações se constitui por aquilo que ele não é. Lacan (2003) traz o texto saussureano para dizer que o significante é o que os outros não são; sua identidade é pura diferença. Essa diferença, que a rigor marca a diferença sexual, é o vetor de constituição da sexualidade e da subjetividade de modo a fazer com que o corpo se constitua para além do caráter anatômico, ou seja, para que o corpo se inscreva nos desfiladeiros da sexualidade é necessário que este seja sensível ao significante. No que tange a voz, de igual forma, esta deve ser tocada pelo significante, deve-se fazer significante, deve-se constituir como pura diferença, sendo aquilo que os outros não são. Isso produzirá efeitos simbólicos na voz, promovendo traços de identificação. "É enquanto pura diferença que a unidade, em sua função significante, se estrutura, se constitui." (LACAN, 2003, p. 49).
O corpo atravessado pela linguagem não condiz com um corpo anatomo-fisiológico e é, por assim dizer, um corpo desnaturalizado. A linguagem é o que inscreve significantes no corpo. A chuva de significantes que cai sobre o infans desnaturaliza o corpo e o marca com os sons fonéticos da mãe. A voz da mãe vai marcar esse sujeito para além da linguagem, pois o que irá soar no sujeito constituirá sua singularidade, fazendo-o um ser falante. É interessante notar, parafraseando Harari (2002), que esta "fonética" particular da mãe nos traz algo de uma "ética" singular que passa pelo "fone", pela fonação ÿ pelo som da "língua" ÿ uma "língua" muito singular e própria que em nada tem a ver com o idioma. A ética é a escuta dos sons, uma ética socrática, aquela que admite tudo menos isso. A ética da escuta de uma equivocação. Poderíamos fazer alguma espécie de violência com a palavra "fonética", escrevendo: "faunétique", que seria uma palavra-mala das palavras: éthique, phonétique e Faune. Este último que vem a ser a divindade Fauno ÿ campestre, caprípede e cornuda que anda pelos campos a tocar sua flauta. Um ser desprovido das convenções humanas, imerso no poder de transe da música de sua flauta; um deus entregue aos prazeres sonoros. O que está em jogo é a ética da fonética da lalangue e o Fauno como essa divindade musical, sonora e rítmica, cuja palavra-mala é equivalente ao faunétique , que em outros termos vem a ser esse canto singular da mãe que se inscreve fazendo suas marcas sonoras, e que irá constituir o sujeito numa outra articulação entre o simbólico e o real.
A fonação presente na lalangue é da ordem dos sons e ritmos (faunétique), que não engendra fonemas, mas traços sonoros e rítmicos de uma lalação que coloca o sujeito no campo do real, no mundo do fauno (da música), numa outra ética. Já a fonação presente na língua é da ordem dos fonemas; também sons, não mais singulares como na lalangue, mas sons de uma língua executada por uma comunidade linguística, sons que se articulam com a coletividade, com o universo simbólico da linguagem. Por consequência, sons que estão em relação com o sentido. Na lalangue, os sons não estão em articulação com o sentido, mas com o ritmo, ou seja, os sons não são coletivos, não pertencem à língua, nem mesmo são executados por uma comunidade linguística, mas são, sobretudo, singulares, fonéticos, sonoros, desarticulados de sentido e do universo simbólico da linguagem. O som da lalangue é um real que forclui o sentido, um real que não está em relação alguma. "O real, nos ilustra [Lacan] em seu Seminário, não admite, nem reconhece ligação alguma [...], é sempre por pontas, fragmentado" (HARARI, 2002, p. 240). O som da lalangue é uma fonação ritmada e desiderativa que marca o sujeito, constituindo-o e se singularizando nele. Os sons são da ordem do real que ex-siste, uma invenção não inscrita no simbólico. O real é um sem-sentido que se sustenta pelo gozo da fonação; um real impossível de ser de todo apreendido. Para Harari (2002, p.239), "[...] a produção de sem-sentido motorizado pelo gozo da fonação se junta com o real ÿ o impossível ÿ da significação, porque é uma evidência (évidence ) que esta suporta, assim, um esvaziamento (évidement)".
Vale a pena esclarecer que o ser falante não é alguém que simplesmente fala, mas um fala-ser ou, como Lacan o cunhou, um parlêtre um parler être mas também um par la lettre quer dizer, um fala-ser que se faz pela letra, na medida em que é do campo da letra, do real e não do significante que a voz da mãe marca o bebê. Prova disso, é o simples cantarolar, o ninar da mãe, o "manhês" que efetivamente está destituído de significados, mas pela letra ou pelo real da voz no seu timbre, altura, volume e ritmo inscrevem este sujeito no campo do inconsciente. Evidentemente, há que se entender a questão do timbre, altura, volume e ritmo não como uma mecanização, ou mesmo uma materialização da voz, mas como um corpo pulsional que é um corpo desejante, em falta. Para Harari (2005, p. 32):
A denominação parlêtre, que Lacan introduz precocemente falante-ser, ser de fala , não dá conta, conforme penso, do que acontece, de maneira concreta e gráfica, nas sessões. Que quer dizer isso? Que o analisante gagueja, murmura, sussurra, mussita, corta as palavras sem concluí-las quando não corta, diretamente as frases , grita, diz coisas contraditórias, e circunstâncias similares referentes ao que Lacan denominou, em 11/3/1975 , no Seminário R.S.I., "parlagem".
A voz se insere numa problemática situada nos limites da pulsão em que o simbólico atua na inscrição da voz nos desígnios da linguagem, mas, ao mesmo tempo, a voz é um dejeto do corpo, no sentido de um som corporal. A voz é um elemento de linguagem, mas também se separa da linguagem quando está articulada com o corpo e a pulsão. A voz é uma pulsão inscrita no corpo que a linguagem tenta significar, colocar significantes.
A voz é aquilo que possibilita, enquanto objeto a, a inscrição da linguagem por ser um objeto em falta. Nesse viés a voz está a serviço da linguagem, mas a voz também se situa como corpo ao mostrar que há um corpo que pulsa, há uma pulsão fonante, que faz a voz pulsionar na fronteira entre o psíquico e o somático, mostrando aí o corp(oral) da voz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, 2002.
________. O psicanalista pode não ser in-mundo? Clinamen. Florianópolis: Maiêutica Florianópolis-Instituição psicanalítica, v. 3 n. 3, p. 12-42, out. 2005.
________. O seminário "A Angústia" de Lacan: uma introdução. Porto Alegre: Artes e ofícios, 1997.
________. Psicanalista, o que é isso? Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008.
LACAN, Jacques. O seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
________. A Identificação: Seminário 1961-1962. Trad. Ivan Corrêa e Marcos Bagno. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife (publicação não comercial, exclusiva para membros), 2003.
________. O seminário 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
________. O seminário 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
QUIGNARD, Pascal. La leçon de musique. Paris: Gallimard, 1987.
VIVÈS, Jean-Michel. (dir.). Pour introduire la question du point sourd. In: Psychologie Clinique: La voix dans la rencontre clinique. Paris, nouvelle série, n. 19, printemps, 2005.