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No segundo capítulo de Análise Terminável e Interminável, Freud nos lança dois significados para a expressão " análise terminada". O primeiro desses pode surpreender aos seus leitores, por sua aparente trivialidade: (...) de um ponto de vista prático (...), uma análise termina quando analista e paciente deixam de se encontrar para uma sessão analítica (p. 235). Já o segundo significado, longe de ser banal, é mais ambicioso: o que estamos indagando é se o analista exerceu uma influência de tão grande conseqüência sobre o paciente que nenhuma mudança ulterior se realize neste, caso sua análise venha a ser continuada (p.235). Da alternativa simples, óbvia em si mesma, ao significado imponente do que seria uma análise terminada, há uma pergunta que Freud desenrola no pano de fundo de suas duas definições: quais são as condições para que uma análise chegue a seu termo?
No primeiro caso, para que um analista e um paciente não se encontrem mais em uma sessão analítica, dois grupos de condições devem ser parcialmente preenchidos: do lado do paciente, é preciso que ele não sofra mais de inibições, sintomas e angústias. Do lado do analista, Freud enumera quatro outras possibilidades:
(...) que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de se temer uma repetição do processo patológico em apreço. (Grifos nossos) (FREUD, 1937/1996, p. 235)
Do lado do paciente, percebemos que a finalidade terapêutica coincide com o término do tratamento analítico. Pois nada mais natural do que o analisando que sofre os incômodos de sintomas, pedir a o seu analista que deles os desembarace. Entretanto, Freud nos ensina que a terapêutica só ressurge como finalidade para o paciente, cabendo ao analista levar as coisas um pouco mais além da demanda de cura que lhe é endereçada.
Do lado do analista, a mola terapêutica esbarra em sua parcialidade: não é possível esgotar a totalidade do inconsciente, eliminando as fronteiras entre as instâncias psíquicas e esclarecendo tudo o que há de ininteligível nas formações sintomáticas. Há quase sempre fenômenos residuais, uma pendência parcial (FREUD, 1996/1937, p. 244). Essa impossibilidade ante uma eficácia terapêutica absoluta nos empurra ao segundo significado do que seria uma análise terminada.
A segunda definição se constrói em torno de um ideal: a terapêutica, radicalizada ao ponto limite de coincidência com o término de análise, produziria um sujeito imutável, indiferente às transformações da vida. Nesse ponto, a análise exerceria uma influência tão grande sobre o sujeito, que o tornaria inflexível a qualquer reedição dos sintomas neuróticos. Uma espécie de estado zero do psiquismo, normalidade ao limite, na qual os sujeitos não mais se deixariam abater por quaisquer vicissitudes, sejam as da vida, sejam as da pulsão. A condição para essa segunda definição de término de análise seria, portanto, a insurgência de uma normalidade psíquica absoluta, impossível nos termos propostos pela segunda tópica:
É como se fosse possível, por meio da análise, chegar a um nível de normalidade psíquica absoluta um nível, ademais, em relação ao qual pudéssemos confiar em que seria capaz de permanecer estável, tal como se, talvez, tivéssemos êxito em solucionar todas as repressões do paciente e em preencher todas as lacunas de sua memória. (FREUD, 1937/1996, p. 235)
O raciocínio seguinte a esse texto freudiano será o de provar a impossibilidade de cumprir com as três grandes ambições terapêuticas: 1. Resolver definitivamente o conflito entre o Eu e a Pulsão; 2. Impedir a reedição de novos conflitos; 3. Fazer ressurgir um conflito inexistente, com fins profiláticos. Algo se coloca como obstáculo ao cumprimento das ambições analíticas, e é exatamente a descoberta desse obstáculo o fator responsável pela dissociação definitiva entre o fim de análise e a finalidade terapêutica.
Retrocedendo no tempo, à época das Conferências Introdutórias de 1917, observa-se algo diverso. Freud, então, acreditava ser possível a cura definitiva dos sintomas e o impedimento de suas reedições em situações futuras. Na primeira tópica, a cura e a profilaxia faziam parte dos horizontes concebidos para uma análise.
Na Conferência XXVII, intitulada A Transferência, Freud parece taxativo diante das condições determinantes da eficácia do processo terapêutico. A fórmula tornar consciente o inconsciente atravessa todo o artigo e se constitui como o operador lógico tanto dos acréscimos terapêuticos quanto do término do tratamento analítico:
Aquilo que empregamos, sem dúvida, deve ser a substituição do que está inconsciente pelo que é consciente, a tradução daquilo que é inconsciente para o que é consciente. (...) Transformando a coisa inconsciente em consciente, suspendemos as repressões, removemos as precondições para a formação dos sintomas, transformando o conflito patogênico em conflito normal, para o qual deve ser possível, de algum modo, encontrar a solução. Tudo o que realizamos em um paciente é essa única modificação psíquica: a extensão em que ela se efetua é a medida da ajuda que proporcionamos. (Grifos nossos) (FREUD, 1917b/1996, p. 437)
Se fizermos um contraponto entre a citação acima e aquela de 1937, onde Freud explicita condições mais modestas para o término de uma análise, perceberemos que, em 1917, a proposta de tornar consciente o inconsciente não apenas participa como pressuposto terapêutico como também se insinua enquanto única modificação psíquica possível a ser efetuada em uma análise. Ao fim desse mesmo parágrafo, no texto de 1917, Freud ainda acrescenta: lá onde os recalques não podem ser desfeitos, não podemos esperar muita coisa de um tratamento analítico.
Entretanto, o que significa tornar consciente o inconsciente e suspender o recalque?
Sabemos que o recalque é o mecanismo que divide os componentes da pulsão: de um lado, há os caminhos para os representantes representativos da pulsão, de outro, há os destinos do afeto. Os representantes representativos da pulsão caem sob o domínio do inconsciente, enquanto os afetos podem se deslocar de representação a representação, podem condensar-se em inervações corporais ou, simplesmente, manterem-se desvinculados das representações e das inervações, caso em que assumem o colorido da angústia (FREUD, 1915/2004, p. 182).
Conforme a metapsicologia, o aparelho psíquico é regido pelo princípio do prazer, que busca rebaixar a sua sobrecarga energética, mantendo-a tão baixa quanto possível ou, simplesmente, mantendo estáveis os níveis de tensão. Nesse contexto, o mecanismo do recalque é tido como sendo o modo neurótico de defesa da ocorrência de estados de sobrecarga psíquica. O recalque será bem sucedido na mesma medida em que conseguir evitar o aumento de tensão no interior do sistema, aumento que desencadearia uma sensação de desprazer. Se um recalque não consegue impedir que surjam sensações de desprazer ou de medo, podemos dizer que ele fracassou, ainda que seu objetivo tenha sido alcançado com relação à parcela representacional. (FREUD, 1915/1996, p. 183).
Feito esse parêntese, podemos vislumbrar uma resposta a nossa pergunta: tornar consciente o inconsciente significa atualizar os representantes pulsionais que caíram sob o domínio do inconsciente, solucionando o enigma que os sintomas comportam. Pelos caminhos da fala, o sentido dos sintomas é reintegrado à consciência, processo que constitui a base dos acréscimos terapêuticos de uma análise. Podemos observar que a proposição terapêutica, centrada na fórmula tornar consciente o inconsciente, atravessa de ponta a ponta as formulações freudianas e ressurge, em 1937, como a primeira condição de término do lado do analista (que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido).
Mas o que dizer da suspensão do recalque? Seria a mesma coisa?
O recalque, por sua vez, põe em cena não apenas os destinos dos representantes pulsionais, mas nos faz questionar sobre o que teria acontecido, terminada a análise, com o elemento quantitativo da pulsão. Sabemos que os representantes são atualizados no decurso das associações dos pacientes. Resta nos perguntarmos de que modo o afeto é remanejado no curso do tratamento analítico. Na Conferência XVIII, sobre o Tratamento Analítico, Freud nos antecipa a resposta a essa pergunta:
Essa revisão do processo de repressão só pode ser realizado (sic) em parte, em relação aos traços mnêmicos dos processos que conduziram à repressão. A parte decisiva desse trabalho se consegue criando na relação do paciente com o médico na transferência novas edições dos antigos conflitos. (FREUD, 1917c/1996, p. 455)
O mecanismo de recalque impõe um rearranjo precário das quantidades pulsionais, onde toda a energia disponível no psiquismo é capitalizada em torno do sintoma. Característica comum aos neuróticos: suas incapacidades de fruir da vida, suas inibições e paralisações para as tarefas mais banais e o enorme dispêndio mental (e adicional) necessário(s) para sustentarem o ônus de seus sintomas.
Onde existe extensa formação de sintomas, esses dois tipos de dispêndio podem resultar em extraordinário empobrecimento da pessoa no que se refere à energia mental que lhe permanece disponível e, com isso, na paralisação da pessoa para todas as tarefas importantes da vida. (FREUD, 1917a/1996, 361)
Com relação ao dado quantitativo da pulsão, a análise deve proporcionar um novo rearranjo da energia psíquica, de modo que, ao fim do processo, seja ela novamente disponibilizada ao sujeito neurótico. Esse remanejo, no entanto, só se torna possível por meio da transferência.
Freud propõe que, em um primeiro momento do tratamento analítico, a libido neurótica seja retirada dos sintomas e reinvestida na pessoa do médico. Em um segundo momento, desfeita a neurose de transferência, a libido seria readmitida ao sujeito neurótico, o qual poderá dela dispor como bem queira. A proposta em liquidar a transferência ao fim do percurso analítico pressupõe que a totalidade do elemento pulsional possa ser readmitida pelo Eu, desfecho favorável à ambição terapêutica em eliminar em definitivo o conflito psíquico entre a pulsão e o Eu:
Assim, nosso trabalho terapêutico incide em duas fases. Na primeira, toda a libido é retirada dos sintomas e colocada na transferência, sendo aí concentrada; na segunda, trava-se uma luta por esse novo objetivo e a libido é liberada dele. A modificação decisiva para um resultado favorável é a eliminação da repressão nesse conflito reconstituído, de modo que a libido não possa ser retirada do ego, novamente, pela fuga para o inconsciente. (FREUD, 1917c/1996, p. 455).
Em 1917, estamos no terreno das grandiosas ambições terapêuticas: o recalque é definitivamente eliminado, o conflito psíquico é solucionado e desfazem-se as resistências entre os sistemas. Nesse mesmo artigo, Freud comparou o trabalho analítico com o de um cirurgião: as modificações empreendidas em uma análise deveriam ser de tal ordem, tão profundas, que desfilariam efeitos pelo resto da vida. A contrapartida do trabalho do "analista-cirurgião", de acordo com Freud, seria a cosmética dos tratamentos sugestivos, os quais não fariam mais do que "maquiar" temporariamente os sintomas neuróticos.
Nos vinte anos intervalares entre os textos de 1917 e 1937, que tipo de modificação teria acometido a obra freudiana para que se desmoronasse o castelo edificado com suas ambições terapêuticas?
Com a introdução de um modo de funcionamento do psiquismo em uma mais além do princípio do prazer, em 1920, Freud encontrou o limite ao trabalho cirúrgico dos analistas: não mais se torna possível esticar os efeitos cirúrgicos de uma análise ao ponto de produção de um sujeito pleno, autônomo, normal. Esse seria o ideal de normalidade psíquica, impossível após 1920.
De fato, a análise das compulsões à repetição e das neuroses de guerra demonstraram que o aparelho psíquico não consegue direcionar a totalidade do elemento pulsional. E porque a pulsão não se integra completamente ao psiquismo, as perspectivas terapêuticas devem encontrar um limite, e o fim de análise, distinto da finalidade terapêutica, precisa redefinir-se como uma tomada de posição (singular) ante o elemento pulsional.
No texto de 1937, Freud aponta um obstáculo muito preciso em contraposição à normalidade psíquica absoluta: trata-se da força relativa das pulsões. A força das pulsões em relação ao Eu funciona como um índice da impossibilidade do psiquismo em integrar completamente a pulsão. Lembremo-nos de que, na segunda definição do conceito de fim de análise, tudo se passa como se esse índice fosse zerado em prol de uma eficácia terapêutica absoluta.
Assim, na relação entre o sujeito e a pulsão, duas saídas tornam-se possíveis ao término de uma análise: ou bem o sujeito admite o elemento pulsional, situação em que o recalque seria parcialmente destruído, ou bem ele faz uma segunda negação desse elemento, situação em que o recalque seria reconstruído, diz-nos Freud, em bases talvez ainda mais sólidas. De qualquer modo, as saídas para a economia pulsional devem ser verificadas no um a um de cada análise:
A análise capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas de novo, a partir de material mais sólido. (FREUD, 1937/1996, p. 243).
Até esse ponto, todo o trajeto de nosso trabalho reflete o inestimável esforço que fizemos em trilhar, nos textos freudianos, o percurso de dissociação entre os conceitos de fim de análise e de finalidade terapêutica. Como se justifica, então, que, após a morte de Freud, esses dois conceitos voltassem novamente a coincidir? E o pior: no campo da "psicologia do Eu", a normalidade psíquica absoluta não apenas se impôs enquanto condição para o término do tratamento como também se tornou critério para a formação de analistas.
Pois se fizermos coincidir a finalidade terapêutica com o fim de análise, estaremos no terreno, tão amplamente criticado por Freud, do furor curandis, do desejo incontrolável de curar. Por outro lado, se a formação do analista coincide com o ideal terapêutico, estaremos no terreno igualmente perigoso da assunção de um analista normopata (pleno, autônomo, normal), assunção radicalizada na fórmula de que, ao fim da análise, por meio de uma aliança com o Eu do paciente, deverá haver a identificação ao Eu do analista. Nessas condições, o Eu do analista impõe-se como padrão de normalidade absoluta, e o fim de análise passa a definir-se tão simploriamente a partir da radicalização terapêutica.
A confusão entre terapêutica, fim de análise e formação do analista contribuiu para alimentar a ilusão de que os analistas seriam seres superiores, abençoados por Deus (e por suas análises didáticas), e à parte de quaisquer paixões arrebatadoras do ser. Construía-se, assim, um "sonho" de analista: o voto de que o ser do analista se aproximaria cada vez mais de um ser ideal. Lacan (1961/1992) bem nos lembrou que o contexto de publicação de Psicologia de Grupo e Análise do Eu compunha-se como uma resposta de Freud ao "sonho" do analista ou, em outras palavras, à organização das sociedades analíticas em torno de um ideal.
Se colocarmos, de antemão, a formação do analista como finalidade de uma análise, cairemos também nos riscos de acreditarmos no american dream do analista. Essa situação nos levaria a imaginar que uma análise poderia produzir um ser especial, o ser analista. Após a morte de Freud, o movimento psicanalítico andava as voltas com o que seria o ser do analista, e foi preciso que Lacan restituísse o lugar privilegiado do campo da fala e da linguagem na teoria freudiana para desfazer os engodos relativos ao ser.
Na segunda parte do nosso trabalho, percorreremos brevemente alguns textos e seminários, nos quais Lacan aponta as conseqüências da incidência do significante no inconsciente. Pois no campo em que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, não há um único significante que possa dar conta do ser do sujeito. A pergunta "quem eu sou?", direcionada ao campo do Outro, não encontra qualquer possibilidade de resposta no ato de sua enunciação, além daquela que poderá ser engendrada no percurso analítico: "deixas-te ser".
A resposta ao que sou eu? não é nenhuma outra coisa de articulável, da mesma forma que eu lhes disse que nenhuma demanda é suportada. Ao que sou eu? não há outra resposta no nível do Outro que o deixas-te ser. E toda precipitação dada a essa resposta (...) não passa de eu fujo ao sentido desse deixas-te ser. (LACAN, 1961/1992, p. 239)
O campo do Outro, definição preciosa ao ensinamento de Lacan, emerge como o lugar do código, onde a bateria significante encontra suas regras. Nesse lugar, inicialmente nada falta: os significantes, tomados em conjunto, constroem seu próprio mundo, engendram sua própria realidade. Essa é a idéia de autonomia do simbólico, comum aos primeiros seminários de Lacan, em que ele postula o lugar do código (o simbólico) em anterioridade à entrada do sujeito na ordem do significante:
Para conceber o que se passa no âmbito próprio à ordem humana, é preciso que partamos da idéia de que esta ordem constitui uma totalidade. A totalidade da ordem simbólica denomina-se um universo. A ordem simbólica é dada em seu caráter universal. Não é aos poucos que ela vai se constituindo. Assim que o símbolo advém, há um universo de símbolos. (LACAN, 1954/1985, p. 44)
No entanto, uma vez que se entra nas engrenagens do universo simbólico, uma falta é aí instituída. Pois, nesse movimento, a própria bateria significante é posta em questão, é desafiada pela impertinente pergunta sobre o ser. Na formulação dessa pergunta e no ato de endereçá-la a um Outro, paga-se um preço, libra de carne que se perde nos desfiladeiros do significante. Marca de ferro do significante no ombro do sujeito que fala (LACAN, 1958/1998, p. 636). Pagamos com o nosso próprio ser o ônus de sermos seres de linguagem.
Nos primeiros anos de seu ensinamento, Lacan acreditava que o sujeito poderia resgatar, no Outro, o sentido de seu ser, desfalecido quando em seu acesso à linguagem. Nesse percurso, a unidade entre o significado e o significante seria restituída e a comunicação inconsciente seria restaurada. Portanto, no artigo intitulado A Função e o Campo da Fala e da Linguagem, Lacan postula que toda pergunta, formulada no campo do Outro, inclui subjetivamente sua própria resposta, como se fosse possível ao Outro recompor, mesmo que de modo invertido, o buraco de nossa falta-a-ser. Assim, ao formular a questão tu és minha mulher, o sujeito recebe, do campo do Outro, sua própria mensagem de modo invertido: sou teu esposo. Exemplo de uma fala verdadeira, plena, fundada no reconhecimento dos seres em uma comunicação intersubjetiva:
A linguagem humana constituiria, então, uma comunicação em que o emissor recebe do receptor sua própria mensagem sob a forma invertida, fórmula esta que nos bastou apenas retomar da boca do opositor para nela reconhecer a marca de nosso próprio pensamento, ou seja, que a fala sempre inclui subjetivamente sua própria resposta, que o "tu não me procurarias se não me houvesse encontrado" só faz homologar essa verdade. (LACAN, 1953/1998, p. 299).
Em um primeiro momento, o percurso analítico será definindo pelo movimento que se inicia em uma fala vazia, onde a verdade do desejo está excluída, a uma fala plena, onde haverá a reintegração da verdade ao discurso. À medida que avançar no seu ensino, Lacan atestará a impossibilidade de uma fala que anule a barra do inconsciente, devolvendo ao significante o sentido relativo ao ser. Pois não basta ao sujeito reconhecer-se pelo Outro como um esposo: o domínio do ser se estende para muito além de qualquer assertiva. Ser esposo, ser mulher, ser neurótico... nenhum desses enunciados dará conta da falta-a-ser instituída pelo significante.
Onde falta um significante último, em que o ser possa agarrar-se, a neurose encontra aí seu terreno mais propício, constituindo-se, ela mesma, como uma espécie de resposta à pergunta "quem eu sou?". A histérica constrói sua resposta frente à facticidade em relação ao seu sexo (o ser mulher em questão) e o obsessivo busca incessantemente responder à sua própria existência, nos labirintos em que essa existência é lançada.
(...) na coextensividade do desenvolvimento do sintoma e de sua resolução curativa revela-se a natureza da neurose: fóbica, histérica ou obsessiva, a neurose é uma questão que o ser coloca para o sujeito "lá onde ele estava antes que o sujeito viesse ao mundo". (LACAN, 1957a/1998, p. 524)
É em torno dessa discussão sobre o ser que Lacan constrói sua crítica ao conceito de contratransferência, ponto de partida de seus seminários da década de 50. Em que ponto estava o movimento psicanalítico quando Lacan iniciou os seminários? Estavam eles no ponto de procurar o ser para além do muro que a linguagem institui.
Podemos partir de uma pergunta formulada pelo próprio Freud, na Conferência Introdutória XVIII sobre a Terapia Analítica, para nos afastar definitivamente dos engodos relativos ao ser do analista, engodo reeditado infinitamente na noção de contratransferência. Freud se pergunta: qual seria a diferença entre a transferência e a sugestão? Comparando o método psicanalítico e o método hipnótico, Freud encontra a resposta para a sua pergunta: os tratamentos sugestivos centram-se fundamentalmente sobre a autoridade do médico ou, redefinindo nos termos que Lacan nos coloca, poderíamos dizer que a sugestão fundamenta-se essencialmente sobre o ser do médico. Nesse caso, importa muito o grau de influência do médico sobre os sintomas de seu paciente.
Ironicamente, os analistas pós-freudianos pareciam retornar a um período pré-freudiano, aos tempos da sugestão hipnótica. Os analistas voltaram a se interessar pelos domínios do ser, e tanto mais eles se achavam concernidos na pergunta "o que é o analista?" menos se tornavam seguros de suas ações. Estabeleceram, esses analistas, infinitas regras envolvendo a condução de suas análises e a formação de novos analistas, excesso de formalização que só podia indicar o quão longe estavam eles de saberem o que faziam na análise de seus pacientes.
Pois o que poderia ler-se nas entrelinhas dessa ênfase exagerada no ser eram as relações de poder impostas quando o analista, ao contrário de dirigir um tratamento, dirigia o próprio paciente. Tornava-se o analista uma espécie de guia moral, o responsável por trazer o paciente aos parâmetros da normalidade psíquica (instaurados por ele mesmo). A normalidade psíquica absoluta, essa radicalização terapêutica impossível nos termos colocados por Freud, ressurgia como critério em que se apoiava não apenas o ser do analista, mas também o do paciente, identificado ao analista.
Freud nem sempre parece haver-se muito bem com isso, nos casos que relata. E é por isso que eles são tão preciosos. Pois ele reconheceu prontamente que nisso estava o princípio de seu poder, no que este não se distinguia da sugestão, mas também que esse poder só lhe dava a solução do problema na condição de não se servir dele, pois era então que se assumia todo o seu desenvolvimento da transferência. (LACAN, 1958/1998, 603)
O que dizer, então, do que é o ser do analista?
Ao modo de um sintoma neurótico, o ser analista também se constrói como uma tentativa de resposta à pergunta "quem eu sou?". Ser analista é, portanto, um sintoma. Moustapha Safouan (J. Lacan e a questão da formação do analista) bem nos faz recordar que os sintomas são formações do inconsciente, e não formações das escolas de psicanálise. Eis aí, de acordo com o autor, o sentido mais preciso do que seria a formação do analista.
Diante dessas questões, resta-nos perguntarmos que tipo de modificação uma análise produziria na relação que o sujeito estabelece com o seu sintoma, tendo-se em vista a fixidez de ser que o sintoma institui.
Ali onde o sintoma impõe um sentido ao ser, a análise supõe que um sujeito possa advir, marcado, como todo sujeito, pela falta irremediável de uma resposta ao domínio de seu ser. Lacan se aproveita da homofonia entre a palavra alemã ES, o Isso freudiano, e a pronúncia da letra francesa S, utilizada para representar o sujeito do inconsciente. No lugar em que se formula uma pergunta sobre o ser (Est-ce?) - as palavras ES, S e Est-ce? (é?), em francês, soam do mesmo modo -, é nesse ponto em que há a possibilidade do advento do sujeito do inconsciente. Outro modo de dizer a famosa frase freudiana Wo Es war, soll ich werden, traduzida por Lacan como "Lá onde isso estava, eu, como sujeito, devo advir ".
Essencialmente neste nível, se vocês permitem um jogo de palavras, o S se coloca verdadeiramente não somente como o S que se inscreve como uma letra, mas também nesse nível como o Es da fórmula tópica que Freud dá do sujeito, Isso. Isso, sob uma forma interrogativa, sob a forma na qual, se vocês metem aqui um ponto de interrogação, o S se articula "é?". Está aí tudo o que neste nível o sujeito formula ainda dele próprio. (LACAN, 1959/2002, p. 399)
A conseqüência inevitável do endereçamento do sujeito de uma pergunta ao campo do Outro é a constatação de que, a esse Outro, também falta um significante. Pois se foi preciso pagar com o ser para ter acesso ao simbólico, o retorno do investimento não é garantido: o Outro não pode me devolver a verdade concernente ao meu ser. No ponto em que o Outro ressurge enquanto castrado e igualmente marcado pela falta significante, uma nova pergunta se articula: que quer o Outro de mim? E para o enigma do desejo do Outro, também não existe resposta possível.
Nesse intervalo, é entre a linguagem pura e simplesmente quesitiva e a linguagem que se articula em que o sujeito responde à pergunta do que é que ele quer, em que o sujeito se constitui em relação ao que é é nesse intervalo que vai se produzir algo que vai se chamar nomeadamente o desejo. (LACAN, 1959/2002, p. 190)
Pelas vias do enigmático desejo do Outro, meu próprio desejo poderá ser articulado no inconsciente. No ato de formulação do aforismo o desejo do homem é o desejo do Outro, Lacan não fez mais do que nos desviar dos domínios do ser, da relação intersubjetiva, conduzindo-nos novamente às vias do desejo (caminho por excelência da construção teórica freudiana), mas, agora, colocando-o em acordo com o campo da fala e da linguagem.
Pois desde os primeiros tempos da psicanálise, os caminhos da palavra são os únicos viáveis para a desestabilização do sentido fixo dos sintomas, cujo efeito principal seria a restituição do desejo inconsciente. As conseqüências das formações sintomáticas são a interrupção da comunicação inconsciente, na medida em que o sintoma subtrai da fala a verdade referente ao desejo. Nesses termos, o sofrimento neurótico carrega um enigma, relacionado ao desconhecimento do desejo, e o bê-a-bá freudiano nos ensina que a elucidação do enigma dos sintomas, e a conseqüente restituição do desejo inconsciente, é a mola mestra dos acréscimos terapêuticos. O que a análise provoca, portanto, por intermédio da fala, é um longo deslize, que tem início no ser e se encaminha ao desejo.
Os efeitos da análise sobre o sintoma ser analista devem permitir a restituição do desejo inconsciente, agora parcialmente desconectado dos domínios do ser. Após Lacan, não mais se torna necessário nos perguntarmos o que é um analista: a pergunta encontra sua reformulação no campo do desejo (o que é o desejo do analista?). E é preciso tomar o desejo ao pé da letra.
Em A Direção do Tratamento, Lacan propõe um deslocamento do operador que encaminharia uma análise ao seu termo: do ser do analista ao desejo do analista. Essa modificação, muito mais do que técnica, teria implicações éticas: "cabe formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista" (p. 621).
Enquanto a noção de contratransferência afundava a direção do tratamento na ênfase ao ser do analista, o deslocamento teórico realizado pelo conceito de desejo do analista desobrigou os analistas a corresponderem ao "sonho" de uma normalidade psíquica absoluta. Pois que se esteja mais ou menos atravessado pelas paixões do ser, que se deseje ir às vias de fato com o analisando, jogá-lo pela janela ao tomá-lo nos braços (LACAN, 1961/1992) nada disso corresponde a um (des)controle dos fenômenos de contratransferência, os quais supostamente deveriam ser enquadrados em uma análise dita de controle (supervisão). Nada de intuir sobre os sentimentos em jogo em uma análise, já que, para além do muro da linguagem, não mais se torna necessário perscrutar sentidos ocultos. Nesse ponto, torna-se mais do que necessário escutar o que o analisando tem a dizer, ao contrário de auscultar os comportamentos e afetos do lado de lá do significante:
Que seja para além do discurso que se acomoda nossa escuta, sei disso melhor do que ninguém, quando simplesmente tomo o caminho de ouvir, e não de auscultar. Sim, isso mesmo, não de auscultar a resistência, a tensão, o opistótono, a palidez, a descarga de adrenalina (sic) em que se reconstruiria um Eu mais forte (resic): o que escuto é por ouvir. (LACAN, 1958/1998, p. 622)
Lembremos que, para Freud, a única análise verdadeiramente interminável era aquela que teria por objetivo a formação de um analista. No domínio da análise didática, a formação do analista seria esticada para mais além do fim de análise. No capítulo VII de Análise Terminável e Interminável, Freud nos diz que a análise didática, de formação de um analista, será bem-sucedida apenas se fornecer ao "candidato" uma firme convicção da existência do inconsciente. Nenhuma exigência, portanto, de normalidade psíquica absoluta: os analistas são pessoas que aprenderam a praticar uma arte específica; a par disso, pode-se conceder-lhes que são seres humanos, como quaisquer outros (FREUD, 1937/1996, p. 264).
Se, por um lado, o fim de análise ultrapassa as perspectivas terapêuticas, por outro, a formação do analista ultrapassa o próprio fim de análise. Os efeitos de "desontologização" proporcionados pelo percurso analítico produzem um novo desejo, o desejo do analista, em conexão íntima com as formações do inconsciente. No entanto, a análise não garante que se possa assumir uma função em relação a esse desejo. A passagem a psicanalista não coincide, portanto, com a passagem para a profissão. Em um mais além da produção do desejo do analista, há o percurso teórico, há o reconhecimento social do desejo (pelas escolas de psicanálise?) e a sustentação, sempre renovada, do ato analítico.
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