Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O si(g)no emudeceu...
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Os Sertões de Euclides da Cunha
Paulo Medeiros

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The bell then beating one
O sino soando uma hora
1

Karaíbas
Brasil
O Sinal em Cruz
O Novo-Mundo
O ensino de Lacan
O traço unário/único
Apagar do mapa

 

Prezados Karaíbas, Boa noite.

Permitam-me dizer-lhes, à guisa de introdução, algo sobre o qual já pode ser constatado: não fala-rei na língua francesa. Isso não deve ser considerado como sendo um desrespeito à sua cultura, mas sim um limite deste que lhes fala, e também por considerar oportuno falar em minha própria língua aquilo que pretendo lhes dizer.

Tradução é uma recriação literária, e quem está a traduzir esse escrito, ora lido para sua escuta, assim deve ser considerado: um recriador desse texto, compartilhando de sua trama, con-firmando aquilo que Lacan disse sobre ser o autor uma ficção. Afinal de contas, os heróis são as personagens, não os escritores.

As dificuldades para uma tradução são inúmeras - o próprio título para esse escrito - O SI(G)NO EMUDECEU... - experimentou-as, pois as palavras sino e signo, na língua que falo, dis-tinguem-se tão somente por uma letra, permitindo que, em sendo colocada entre parênteses, a leitura da palavra sino ressoe num duplo sentido, impossível em francês. Porém, em contrapartida, a palavra emudeceu; em sua forma verbal francesa, s'est tue, oferece a oportunidade de conjugar o verbo taire, calar, num tempo cuja ressonância o aproxima do verbo tuer, matar, conjugado no mesmo tempo, propiciando uma associação à temática desse escrito.

O aforismo italiano Traduttore, traditore nos serve não para indicar as falhas naturais decorrentes da passagem de uma língua para outra, mas para associar as palavras tradução à traição e também à tradição, todas próprias para esta ocasião.

Por certo conhecem as observações anotadas por Freud a partir de suas considerações filológicas, as quais permitiram a Lacan retomá-las ao nível lingüístico para ressituar o sonho enquanto estrutura de uma frase. Mas é um bom momento este para trazer à lembrança uma nota de rodapé existente no segundo capítulo da onirologia freudiana. É aquela que ele escreveu dizendo ser impossível traduzir um sonho numa outra língua que não a falada pelo sonhador. Esse princípio aplicar-se-ia à sua obra princeps, o escrito sobre os sonhos, mas onze anos mais tarde o próprio Freud reconheceu a tradução feita para o inglês pelo Sr. Brill.

Os dissabores da tradução dos textos de Freud para a língua portuguesa, a partir não dos originais, mas da tradução dos textos em inglês, feita de modo precário e descuidado, são inúmeros, e tornam impossível uma leitura aprazível. E vocês também experimentam tais dissabores em sua leitura de Freud em fran-cês. Felizmente Lacan vem sendo tratado de forma mais respeitosa no que diz respeito às traduções, e podemos afiançar-lhes que acompanhamos com muito interesse e atenção as publicações dos textos de Lacan, na maior parte das vezes comparando versões em francês, como, por exemplo, as comerciais com os policopiados mais antigos e, sobretudo, com as versões da Association freudienne Internationale. Quanto aos Escritos, continuamos aguardando uma tradução completa e mais condizente com as nossas exigências culturais e com o valor da própria obra 2.

Ao receber o honroso convite para estar aqui hoje, a preocupação sobre o que trazer para lhes transmitir impôs-se. Considerei que não seria o mais próprio falar-lhes sobre Lacan e seu ensino em seu aspecto formal, mas sim lhes mostrar minimamente a maneira como o aplicamos. Afinal, muitos dentre vocês testemunharam seu ensino por muitos anos, enquanto pertenço à geração daqueles que receberam seu ensino por intermédio de outros testemunhos, os daqueles que conduziram esse ensino para além-mar. Apreciaria, pois, ao invés disso, poder ouvir-lhes falar de Lacan e de seu ensino. E o que poderia lhes ser oferecido em troca? Aquilo que representa de forma mais particular e significante uma cultura: sua Literatura, que, no caso do Brasil, é comparável ao que de melhor já foi produzido no mundo.

Esse, então, deveria ser o meio privilegiado escolhido para transmitir algo de equivalente ao que é recebido aqui. Partindo dessa premissa, restaria escolher o texto literário mais próprio para esta ocasião. O raciocínio a ser seguido deveria ser bastante simples para a escolha. Assim, consi-derando quais poderiam ser, para um não-brasileiro, os textos a serem lidos para se começar a formar alguma noção de brasilidade em sua expressão linguageira, as recomendações seriam, dentre outros, os textos Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa e Os Sertões, de Euclides da Cunha. O motivo está em que ambos situaram no lugar mítico dos sertões os traços que inscreveram a história da língua em sua dimensão épica, cuja epopéia narra momentos trágicos da história de um povo. Por certo, essa indicação é polêmica, e deveria conter, ao menos mais um, o livro Macunaíma, de Mário de Andrade, texto básico do movimento cultural artístico brasileiro de resistência às influências alienígenas e de valorização da cultura brasileira.

Os autores previamente indicados para uma leitura primeira sobre o Brasil apresentam versões que se conjugam numa apreensão daquilo que os alemães designam como sendo Geistesgeschicht. O primeiro deles relatou a epopéia, isto é, a palavra em sendo feita enquanto fato de linguagem, na língua falada nos Gerais dos Sertões do Brasil. Já o segundo, Euclides da Cunha, documenta a épica do ethos de um povo num dado momento em que se transformou na página mais dramática de sua história. Naturalmente, assim como no sujeito uma identificação total é impossível, enquanto conjunto das identificações incons-cientes, num povo ocorre o mesmo. É impossível indicar uma nacionalidade por meio de uma identificação completa a qualquer modelo; nenhum texto contê-la-ia. No entanto, os textos que lhes indico, são leituras dos traços subjacentes às identificações culturais existentes no Brasil, e os sertanejos foram os que inscreveram tais marcas, por serem a resultante radical das raízes de uma cultura que não é mais européia nem nativa, mas brasileira.

A saudação introdutória com o termo Karaíbas requer esclarecimentos. Karaíba era a maneira respeitosa, mais que respeitosa, temerosa, com que os ameríndios saudavam nossos ancestrais europeus, e estes não souberam nomear os nativos. Chamaram índios aos que pertenciam a uma grande nação que ocupava quase todo o litoral das terras a serem colonizadas, cujas tribos fala-vam a língua tupi-guarani, uma língua cuja estrutura fonética pode ser comparada à do grego arcaico, como se pertencessem à mesma origem. Os sinais pré-históricos encontrados no Brasil chegaram a induzir alguns estudiosos à hipótese de que seriam restos de uma escrita muito antiga e universal, e que estaria na origem de todos os sistemas atualmente existentes.

Os nossos antepassados europeus foram nomeados Karaíbas numa língua que desco-nheciam. Atualmente conhecem o termo como topônimo, pois o território que foi denomi-nado Guiana Francesa é banhado pelas águas do Mar das Antilhas ou das Caraíbas, conhe-cido como Caribe. Pois há o tupi kara'ua, caraíba, que é uma palavra composta por uma letra equiva-lente ao nosso k latino, correspondente ao kapa grego arcaico e fenício. O sinal gráfico tupi-gua-rani designa o signo de uma imagem humana observada de perfil, e refere-se aos grandes nomes de família guerreira poderosa ou aos grandes chefes; equivaleria a um brasão moderno, marca de uma dinastia nobre. O K seria um sinal nobiliárquico: ao Kario nativo corresponderia o Dario pérsico, ou o Kacique, chefe de tribo; quer dizer, aquele que é superior, senhor, majestático, homem valente. As correspondências universais podem ser encontradas, por exemplo, nos Cananeus, de Canaã, ou nos Cabilas, da Cabília, na Argélia. O Kara, ou Kari, ou Kará, é um trata-mento majestático, designando saber e poder. Os incas respeitosamente referiam-se aos seus antepassados por Kari, Inca, Ataualpa. Encontramos no Brasil todas essas referências, as de seres dotados de algo mágico, divino, nobre. E existiram os Karas, possivelmente de origem asiática, e que se intitulavam filhos do sol e da serpente, e formavam as tribos Karaíbas ou Caraíbas. Seus remanescentes, aculturados, ainda habitam a serra dos Cariris, no interior do Estado do Ceará, no Nordeste do Brasil, itinerário obrigatório para as peregrinações religiosas populares que influenciam até hoje a região - e verdadeiro campo de batalha entre movimentos populares espontâneos, surgi-dos de crenças seculares sincréticas -, e os militares, representantes do poder político e eclesiástico . O protagonista da crônica romanceada e sociológica de Euclides da Cunha por certo conheceu todos esses movimentos e essas histórias, até tornar-se um líder de um deles, pois sua origem está um pouco mais ao norte da região dos Cariris.

O desejo está articulado ao termo Karaíba na forma da morte. Os europeus foram designa-dos Karaíbas num misto de admiração e temor. Os nativos Karaíbas que habitavam o noroeste da América do Sul emprestaram aos espanhóis tal termo para compor a palavra canibal, de caribal, do caraíba. Isso quer dizer que há toda uma conotação antropofágica no termo. Os Karaíbas comiam carne humana. Eram temidos. Admirados também pelo seu valor guerreiro, como valentes e corajo-sos. A antropofagia não era uma dieta alimentar, era um ritual. Os tupinambás, habitantes do litoral, quando da chegada dos europeus, também eram antropofágicos. Era essa uma prática comum, cultural, alterada pelos colonizadores, eles mesmos tendo sido considerados canibais pelos nati-vos. Não era demérito. Ao contrário, isso os enaltecia. A identificação primeva, primeira , primária, aí está no termo Karaíba, identificando nossos ancestrais europeus à mesma estrutura lingüística que estabelecia uma relação entredevorativa na rede de linguagem.

Brasil

Para o nome Brasil prevaleceu a versão mercantilista relacionada à exploração de madeira-de-lei denominada pau-brasil. É necessário, no entanto, fazermos uma tentativa de recupe-ração de uma outra leitura possível para determinar a origem da palavra. Deveu-se aos jesuítas a tentativa de nomear-se os nativos com o nome de brasis, empregado pelo padre Antônio Vieira. Era assim que ele os chamava, de brasis e não de índios 3. Não prevaleceu essa sua nomeação, permanecendo até hoje o nome impróprio índios. Ainda que os fatos lingüísticos aqui apontados ao redor do nome BRASIL careçam de comprovação científica mais rigorosa, entrego-lhes como hipótese e também como forma literária. A intenção é a de tão-somente indicar a primordiali-dade do uso nativo, sua anterioridade, contra a versão mercantilista mais difundida.

Ao decompormos o nome BRASIL, para efeito de análise de sua etimologia, deparamos com o fonema B que, com os fonemas R e A, forma a sílaba BRA, acrescida da sílaba SIL, o que resulta no nome Brasil; isso torna possível identificar alguns traços componentes de uma constelação lingüística nativa, ao nível onomatopaico, cujos sinais gráficos representativos estão registrados nas rochas de nossos sítios arqueológicos. A letra BÊ, assim designada em nosso alfabeto, adviria do som da palavra beita ou bê-ita, termo empregado para designar morada de pedra, no sentido de terra habitada, terra como lugar, casa, a casa da luz, ou do deus da luz, casa do senhor. Corresponderia ao termo que entre os babilônicos e assírios soava como bitu ou biti, e entre os palestinos seria bethel, relacionado à palavra babel. Bab-el queria dizer casa do Senhor, no sentido daquele lugar que, na mitologia hebrai-ca, Jacó repousou e sonhou, recostando sua cabeça numa pedra, numa versão associada à diver-sidade de línguas. Existe, no Brasil, exemplar de objeto cerâmico proveniente de Marajó, no Ama-zonas, cuja forma lembra uma campânula, um sino, e que poderia ter sido um objeto sacro habita-do por alguma divindade, denominada Babal. Assim, a imagem que o B da palavra Brasil sugere é a de uma casa muito grande e forte como pedra, habitada pelo Deus da Luz, em referência ao Sol. O termo beita foi vulgarmente incorporado à língua brasileira na forma de baita, para designar alguma coisa grande. O segundo conjunto associativo, RA, poderá até lhes soar como algo familiar, pois seria da mesma raiz que o RE egípcio. Está, contudo, no Brasil, relacionado a UYARA ou YA-RA, uma divindade feminina, a Mãe-d'água, sereia dos rios e dos lagos, que encantava e seduzia os jovens com os seus cantos, arrastando-os para as águas. Equivaleria à Senhora, Senhora das Águas. Na cultura africana, incorporada ao sincretismo religioso na cultura brasileira, corresponderia à divin-dade Yemanjá. Portanto, B mais RA sugere agora a imagem de uma casa muito grande e forte onde habitam o Deus da Luz e a Senhora das Águas. O terceiro conjunto, que formará a segunda sílaba, SIL, estaria relacionado ao vocábulo TZIL, correspondência gráfica ao som dos coriscos e das estrelas cadentes. A imagem dos raios associ-ada ao som dos trovões era a própria imagem do poderoso Senhor, Deus da Luz e do Fogo, ori-gem também do termo Tupã. A imagem serpenteante do raio de luz recebeu a réplica sonora de TZIL, e passou a ser escrita na forma de um Z. Em hebraico tzedek quer dizer estrela, e o som é muito próximo ao de tzil; entre os gregos, corresponderia ao antropomórfico Zeus, o Senhor do Olimpo.

O Sinal em Cruz

A composição gráfica de certos sinais apostos pelos colonizadores europeus, ordenados em seqüência por conjunto de temas, revelaria que o primeiro deles seria uma cruz na nossa leitura, ou um X, dependendo do ângulo de visão. É da maior relevância destacarmos que dois traços entrecruzados, formando uma cruz, designava a atribuição divina suprema: a luz. Tal sinal corresponde ao atributo divino por excelência. Narra o lendário europeu que Constantino viu um sinal nos céus na forma de uma cruz enquanto marchava para um combate. Tal visão tê-lo-ia feito adotar o lema: IN HOC SIGNO VINCES, ou seja, COM ESTE SINAL VENCERÁS. O valor do signo para Constantino estaria mais próximo do valor atribuído àquele signo pelos padres jesuítas que aportaram na Terra do Senhor da Luz, Brasil, mas o contexto que atribui valor ao signo, cujo sinal é o mesmo, dois traços entrecruzados, não permite uma mesma leitura. Se são radicalmente originários de um ponto-de-estofo que se fixou como ponto-de-cruz no bordado dessa tessitura infinita do deslizamento da significação, isso não quer dizer que se trate de um signo que comporte uma mesma leitura.

A extensão do mal-entendido, podemos avaliá-la, foi enorme. Foi um baita mal-entendido havido entre o sinal dos aborígines em forma de cruz e o sinal-da-cruz dos cristãos. A surpresa foi mútua, mas causou maior admiração aos recém-chegados, os quais deveriam encontrar alguma explicação para a presença de um sinal que consideravam próprio a eles e o qual deveriam transmitir. Que anterioridade era essa então? Como explicá-la? Mais uma questão se impunha aos europeus.

Dentre os nomes surgidos para batizar por intermédio do Simbólico da cultura européia as terras a serem colonizadas, os de Terra de Santa Cruz ou Vera Cruz despontaram. A leitura da versão oficial situava-os a partir do sinal-da-cruz, a cristã, vera, verdadeira, pois não admitira o valor do sinal em cruz de um outro contexto cultural. A custódia, por exemplo, onde é guardada a hóstia sacra, é um objeto adornado por uma cruz envolta por desenhos figurativos do resplendor prismático do espectro da luz. Entre os nativos, existia registro semelhante dentre aqueles sinais inscritos no conjunto designativo do deus da luz. Os europeus deparavam-se com inscrições que poderiam estar na origem dos seus conceitos e não os reconheciam; eram traços apagados, irre-conhecíveis. É sempre um motivo de surpresa para qualquer estudioso o fato de que culturas milenares em todo o continente americano não houvessem subsistido diante do confronto com a Weltaschauung européia.

O Novo-Mundo

O chamado novo-mundo impôs à cultura européia novas questões. Há sempre reversibili-dade no encontro de diferenças. A ideologia teológica predominante na Europa teve que rever seus conceitos, e, em 1537, obrigou ao Papa Paulo III esclarecer se os nativos ameríndios seriam ou não humanos 4. A bula papal, de então, resolveu positivamente a questão, declarando que os nati-vos daquelas terras possuíam alma - douta ignorância, pois já a tinham, e desde sempre, e sabiam para onde iriam após a morte; os guaranis, por exemplo, enterravam seus mortos em posição horizontal, com os pés sempre voltados para o nascente; o morto, em espírito, caminharia pelo caminho do Sol, o Deus da Luz, seguindo a orientação de seus raios luminosos; o espírito do morto deveria ir para YVY'MARÁ EY'M, a terra sem males, o paraíso mítico; e esse espírito chamar-se-ia ANGA, e queria dizer alma. O Papa Paulo III não sabia disso, ao que parece, e atribuiu então existência ao existente reco-nhecido por outra cultura que não a dele. O Simbólico só era admitido enquanto sendo europeu. A noção de anga, alma para os ameríndios, estava associada a toda uma rede cultural complexa que até hoje não encontra reconhecimento. O Simbólico europeu prevaleceu, e, a concordarmos que o conceito mata a coisa, desde o início, pois, os colonizadores foram associados ao desejo-de-morte, através da nomeação de Karaíbas.

As migrações européias alteraram o Simbólico europeu, na medida em que suscitaram novas questões. Esse movimento migratório conduziu a religião cristã, a religião resultante do sin-cretismo religioso dos povos do Oriente Médio, conceitualizada através da tradição greco-romana, e interpretada pelo renascentismo tomista. Mas, se o Renascentismo instrumentalizou a cultura euro-péia com o pensar científico que se propunha universalista, a Igreja Católica, contudo, em Portugal e na Espanha, por intermédio dos jesuítas, alterou o conteúdo renascentista, formando uma ideo-logia ibérica que promoveu uma outra vertente, esta em direção ao tomismo aristotélico, escolás-tico, desviando-se do curso da história das idéias que iria desembocar num Bacon e num Descar-tes.

O ensino de Lacan

Se nos detivermos em meandros que parecem filigranar a questão da Psicanálise no Brasil, é porque, afinal de contas, o solo que foi propício ao cultivo do ensino de Lacan, especialmente no Nordeste do Brasil, foi fertilizado pela Teologia, pois ex-padres, e jesuítas, estavam entre os primei-ros a transmitir tal ensino. Naturalmente a Psicanálise estará sempre contaminada pelo que a antecede no percurso da formação de analistas, sendo porto de chegada para navegadores de muitos mares, não havendo por que abandonar tais componentes do pensar em nome de ideologias voltadas para uma cientifici-dade resultante de certos efeitos discursivos ainda mais obscurantistas.

Se a Literatura antecipa e particulariza os movimentos do espírito humano, a Filosofia impõe rigor às tentativas de se universalizar os conceitos apreendidos em tais movimentos. Assim é que, no movimento psicanalítico, Jacques Lacan surge como uma possível retomada da vertente do movimento renascentista deixado ao léu no século das descobertas marítimas, sobretudo a partir daquele que possibilitou a formulação contemporânea da Psicanálise francesa, Descartes. Freud aportou no Brasil fora dessa linhagem, pois até o início deste século não existia ainda o que se contrapusesse com rigor ao positivismo comtiano e ao tomismo aristotélico-jesuítico, as linhas mestras de influência na história das idéias no Brasil. As novidades que chegam da Europa, e isto aconteceu também a Lacan, tanto quanto a Freud, aportam naquelas paragens como se surgissem do nada, e não enquanto cometidas numa história das idéias, como se houvesse hiatos nessa história.

Esse escrito que aqui trago não é garantia de algo melhor, mas indica tentativas de fazer da escrita o campo mais próprio para ressaltar as inscrições que marcam os traços de nossas diferenças, fazendo história. Além do mais, a Psicanálise não se presta a muitas coisas fora do âmbito em que é aplicada, isto é, do divã. Para os analistas, o fenômeno mais intrigante ainda deve ser o da transfe-rência, nosso campo de trabalho. No mais, só podemos compartilhar com os outros nossa per-plexidade diante da vida, da morte e da Cultura. Assim, esse escrito mantém uma certa história, um percurso de leituras e de elementos de uma cultura. Não é uma leitura aca-dêmica, mas, marginal, no sentido de não se ater às versões oficiais ou ao saber universitário.

Em Recife, Região Nordeste do Brasil, havia um grupo de pessoas que se reunia para estudar Freud e Lacan; atualmente existem vários. O grupo originário reunia-se num lugar bucólico, próximo às margens de um dos rios brasileiros que forma o Atlântico. É meia-verdade, claro, vocês sabem, isso de o rio Capibaribe formar o Oceano, mas, se Marcel Proust tentasse descrever o lugar, comprovaria aquilo que os literatos já há muito vêm demonstrando: o que há é meia-verdade, pois é impossível haver uma descrição exata do que quer que seja a denominada realidade. Do mesmo modo como um analisante tenta descrever nas suas narrativas a cena de um sonho sem esgotar-lhe todas as possibilidades, sem atingir o núcleo do Real, onde a Coisa zomba de nós; mente pouco quem a verdade toda diz, afirma nosso escritor Guimarães Rosa.

O grupo de estudos em referência histórica, de inspiração lacaniana, foi o primeiro a tomar forma na cidade. O nome daquele grupo era Literatura e Lendas Brasileiras, existindo atualmente vários outros grupos, reunidos sob temas de interesse da Psicanálise. Assim, esse escrito mantém uma certa história, um percurso de leituras e de elementos de uma cultura. Não é uma leitura aca-dêmica, mas, marginal, no sentido de não se ater às versões oficiais ou ao saber universitário. Consideramos a Literatura e a Psicanálise trabalhos artesanais, sítios de cultivo da Arte, mais do que da técnica ou da ciência; estas se colocam como instrumentos daquela, e, dentre as Artes, a literária precede a psicanalítica. Aos literatos cabe as primícias do acompanhamento dos movimentos da alma, e não resta aos psicanalistas senão tentar segui-los neste orbitar incessável ao redor da Coisa inapreensível, através dos tropos de palavras na linguagem. A originalidade proposta nesse trabalho pode ser atribuída às tentativas de resgate de nossa história, por meio de leituras possíveis do desejo inscrito nas lendas e na Literatura.

O texto visado nesta ocasião, intitulado Os Sertões, escrito por Euclides da Cunha, foi pensado no contexto da leitura que estava sendo feita no momento do Seminário de Lacan sobre A Identificação. Trata-se de um livro que retrata muito bem as idéias prevalecen-tes no Brasil de então, cujo background era formado basicamente pelo tomismo e pelo positivismo. O primeiro no âmbito da Igreja Católica, e o outro, enquanto pólo de oposição, na formação militar.

Corroborando aquilo que Freud indicou na relação existente entre a Literatura e a Psicaná-lise, foi Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros, quem, mediatamente, nos sugeriu a leitura de Os Sertões no contexto de A identificação. Quando, à época da Guerra de Canudos, narrada em Os Sertões, a opinião pública era conduzida pela imprensa a formar partido com o governo, ele ousou colocar sob suspeição tudo o que então se publicava a respeito. Levantou uma questão tipicamente psicanalítica: Que vínculo é esse, escreveu, que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro? Foi, portanto, esse literato quem primeiro começou a protestar contra o etnocídio que se praticava com o consentimento público, sob a determinação do Estado, aplaudido pelos políticos, incentivado pela Igreja, e efetuado pelo Exército. Aí está, contida nessa frase de Machado de Assis, uma pergunta que poderá vir a ser abordada pela Psicanálise, cujo primeiro esboço de resposta é tentado através desse escrito.

Há um princípio socrático, concernente ao desejo enquanto instaurado pela falta, que não sei se seria aplicável aos europeus em relação aos sertões. Os sertões não existem aqui na Europa, e nem mesmo existe uma palavra própria para nomeá-lo na língua francesa, pois os sertões não são desertos. Os Sertões , de Euclides da Cunha, estão sendo trazidos levando também em consideração que o Projet France-Brésil de rencontres psychanalytiques espera que les analystes brésiliens ont assez fait l'épreuve dans leur chair de ce nouage entre subjectivité et vie sociale pour que nous espérions qu'ils nous éclairent sur ce point 5. É o que afirma o seu programa de trabalho, coincidindo, num momento opor-tuno, com alguns estudos que ora fazemos em Recife, no Brasil.

O traço unário

A aproximação aqui buscada está sendo feita através do conceito traço único/unário, de Jacques Lacan. Devem estar lem-brados do Seminário sobre A Identificação. Ele mesmo não se lembrou disso. Nesse Seminário Lacan destacou, numa frase de Freud, as palavras einziger Zug, elevando-as ao nível conceitual no conjunto do seu ensino. Colocou-as sob a primazia do significante para indi-car que identificação é identificação ao significante, sendo o Outro a determinar a função do traço unário, significante primeiro, o entalhe num osso, de acordo com o exemplo que trouxe. Relembremo-nos de alguns pontos a respeito, em Freud e em Lacan, para esclarecer a aplicação proposta.

Destaquemos o osso, o osso do hominídeo primevo, instrumento de marcação, registro, através do entalhe, para registrar traços, não ainda constituídos em contagem ou enumeração, mas como marca diferenciadora a identificar a morte. A morte de um não era a morte de outro. A marca demarcava um e outro, na morte. O próprio osso sugere a morte, resto de um corpo qualquer, sua parte mais duradoura, mais renitente. Aí se traçou uma marca, um traço. O traço virou letra e o osso virou toro sob a topologia lingüística do nosso saboroso caraíba Lacan.

O traço unário marca a morte, única; traço único, ímpar, a fundamentar o sujeito do inconsciente a partir do que lhe é impossível saber, o real da morte, dado absoluto que constituirá o não-saber próprio ao desejo, e que nunca se tornará conhecimento para o sujeito, pois, por mais marcas que se faça no osso, a sua marca só poderá ser feita por outro. Desejo de morte, primordialmente indicado pela morte do pai no desejo neurótico, significante mestre referente ao pai simbólico. A morte é o grande buraco a circunscrever o que, ao seu redor, será traçado, a exem-plo do que faz o oleiro gerando formas ao redor do vazio, vazio cujo epicentro é a Coisa, e ao redor da qual as nomeações instaurarão a dimensão Simbólica, numa fala onde o sujeito está emaranhado nessa articulação desejante implicando a morte e a sobrevivência pela via do desejo sexual.

O entalhe naquele osso, desencavado por Lacan, marca, por um traço, o registro primeiro de um recorte no Real, no Real da morte, que permitiu a grafia posterior de dois traços entrecruza-dos, contemporâneos a nós, que, sob o nome de cruz, erigimos nas sepulturas. Tais traços, entre-cruzados, indicavam, nas culturas anteriores à nossa, o pai, a exemplo de Schreber, identifi-cando- os aos raios solares enquanto deus-da-luz dos nativos ameríndios.

Em Die Verneinung, A Denegação, aprendemos com Freud que as idéias, as imagens con-cebidas, situam o Imaginário, no campo simbólico, no âmbito da alucinação do objeto referido - obje-to que será sempre inatingível e inabordável, núcleo da ética de Lacan. Esse primeiro traço, resultante já da alucinação do objeto, começa situando a dimensão humana, constituída, por essa via, então, alucinato-riamente. O traço único é já alucinatório; e, além de referir-se à morte marcada por outro, esse traço veio a ter seu campo de identificação ao nível do sujeito marcado pelo nome próprio, ao qual a coisa-sujeito se identificará, havendo sido também marcado por outro. Toda a exterioridade do sujeito, sua ex-sis-tência, compõe-se a partir de tais traços.

A constelação do universo humano é delirante, sendo o delírio variável, desde os que são compartilháveis — estará este escrito sendo? —, até aqueles que são absolutamente próprios a um único dialeto falado por alguém, e ninguém mais, na loucura. Se é possível à Psicanálise fazer alguma leitura sintomática no social, poderia ser a partir do delírio de alguém, pois o coletivo é encontrável num sujeito. Sujeito colocado no meio de todas as contingências — a morte, a mulher, o pai. (...) Isso constituiu uma volta às fontes, e mal merece o título de ciência (Lacan, 1953). E é no exercício do escrever que se pode testemunhar, enquanto secretários do alienado (Lacan, 1956), uma certa leitura do que se ouve.

O einziger Zug freudiano nos sugere uma relação possível à mulher, além de sua vincula-ção à morte. Zug, para Freud, estaria imbricado a uma rede de significantes, se ampliássemos a rede até a palavra trem, comboio de trem. O sexo, enquanto origem para o nascimento através do corpo da mulher, e a morte, enquanto o ir-se embora, partir, origem do Simbólico desde o fort-da, que, em português, equivaleria a dizer foi embora-voltou. O ir-se embora de Freiberg associou-se para Freud à ferrovia vista pela primeira vez no exílio da família em direção a Viena. "Partir" numa viagem é um dos símbolos de morte mais comuns e mais confirmados, escreveu Freud em referência aos sonhos relacionados a trens, no texto Traumdeutung, no qual, a seguir, comparecem os trens como conotativos da atividade sexual masturbatória, e isso por intermédio de pontes verbais: Zahn-ziehen(Zug), arrancar um dente, pertencente à mesma raiz trem e arrancar. E no Brasil, tanto quanto na Áustria de então, os sonhos com dentes que estão sendo arrancados, são interpretados na cultura popular como significando a morte de algum parente.

Se ampliarmos um pouco mais a rede associativa, poderemos relacionar Zug à palavra Bahnung, outro termo destacado por Lacan, e que foi aplicado por Freud no Projeto de 1895. Encontraremos aí traços que poderiam compor uma rede de significantes, através de uma rede ferroviária. A palavra Zug, empr egada por Freud com uma conotação equivalente a traço, tam-bém é referente a comboio de trem. Bahnung foi traduzida para o inglês como facilitations, e transposta literalmente do inglês para o português facilitações. Mas Lacan nos indicou que trilhamentos seria a palavra mais própria, e, seguindo essa pista, podemos constatar que tanto Bahn em alemão quanto trilhos em português conduzem a caminho de ferro, trilhos de trem. Freud passou cerca de doze anos sofrendo de uma fobia pelas viagens de trem.

A mulher que comparece associada a trem foi aquela que ele acompanhou na viagem para Viena, após uma escala de praticamente um ano em Leipzig. Contava à época quatro anos de idade, e era sua mãe aquela mulher observada pela criança em sua nudez no compartilhamento de uma cabine de trem. A mãe nua requereu uma escrita em latim, matrem nudam, como que velando classicamente, numa língua não falada, aquele corpo interditado, como fez Hanold em relação à sua Gradiva. A frase de Goethe: O Eterno Feminino nos atrai deslocou-se para a Terra Prometida, jamais pisada por Moisés, num sonho onde Freud narrou que o trem se pôs em movimento e ele não conseguiu pisar na cidade. Também este trem-traço comparece, através de seus trilhamentos, no esquecimento do nome Signorelli numa viagem que fazia, de trem, natural-mente.

A Literatura situa o Feminino no âmago de sua própria constituição, o que não podemos esperar da Filosofia. Na Literatura, o Feminino é enaltecido na mulher, da poesia homérica ao nosso trovadoresco europeu, origem do nosso romance e de nossos cordéis, numa mistura entre amor cortês, guerras heróicas e escatologias messiânicas.

Apagar do mapa

Esse escrito pode ser um roteiro inicial por onde o einziger Zug, em Freud, associado ao traço único/unário, em Lacan, passa por Canudos, nos Sertões do Brasil, por onde os trens não chegavam. É também um convite para conhecerem Antônio Conselheiro, e traços da sua epopéia, como personagem central da Guerra de Canudos, ocorrida há quase meio século em nome dos mais altos ideais humanitários inspirados pelo mito da Revolução Fran-cesa de 1789. Aí, nesses sertões, o 14 de julho foi comemorado de forma a se tornar uma data nefasta para a população daquela cidade, que nem ao menos tinha uma noção de referência naquela data. Mas, em 1897, nessa data, os militares se reuniram para traçar planos de ataque que se consumariam quatro dias depois.

Canudos foi formada cem anos depois da Revolução Francesa, crescendo às margens de um rio chamado Vaza-Barris, a partir de uma velha fazenda de criação de gado que fora abando-nada. Naquele local costumavam aglomerar-se pessoas suspeitas e ociosas, que, armadas até aos dentes, ficavam a beber cachaça e a pitar uns cachimbos de barro colocados em longos canudos de um metro de comprimento. O nome do lugarejo adveio destas solanáceas, plantas ribeirinhas crescidas às margens daquele rio. Aí se instalou Antônio Conselheiro, conduzindo em procissão os seguidores de seus conselhos, para virem a ser, algum tempo depois, dizimados.

A cidade de Canudos tornou-se importante na história do Brasil não por suas atividades produtivas, apesar de manter uma economia que ia além do nível de subsistência da sua popula-ção, pois até a Europa recebia seus produtos de exportação, que eram peles de animais criados no local, mas sim pela tragédia que se abateu sobre toda a população. Hoje já não existe mais na car-tografia contemporânea e encontram-se dificuldades para chegar ao sítio onde existiu, se procurá-la pelo nome de origem. Apagar do mapa faz parte da linguagem e do ideário brasileiro como expressão de uso corriqueiro com o sentido de fazer desaparecer ou, simplesmente, matar. Canudos foi duplamente apagada do mapa: o primeiro apagamento ocorreu com a chacina de toda a sua população, em 1897; o segundo, durante a mais recente ditadura militar, com a construção de um açude, o de Cocorobó, que inundou os restos da cidade, a qual fora bombardeada, numa tentativa vã de apagar da memória do povo os vestígios de uma atrocidade. Podemos conceber a idéia de o governo francês inundar o bosque de La Saudraie de Victor Hugo? Ou imaginar o extermínio completo de toda a população de Nantes? Mas aqueles que experimentaram as atrocidades do nazismo e de todo e qualquer tipo de governos autoritários podem avaliar tais horrores.

O traço que fixa o que orbita ao redor da Coisa, da morte, exige repetição, na tentativa de reencontro do que se marcou como existente. O traço se apaga, mas, em se apagando, torna-se mais presente, insistindo através das inúmeras tentativas que o sujeito faz para resgatá-lo. A fun-dação da cidade de Canudos foi uma dessas tentativas que Antônio Conselheiro fez, a derradeira, para recuperar os traços de sua história.

Temos a marca do nome: Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido por Antônio Conselheiro. Nome não se dá; nome se recebe, no escrever de Guimarães Rosa. Esse escrito não aponta para nomes já conhecidos universalmente, na Literatura ou na Filosofia; comporta, sim, outros nomes, e se em Paris ainda não os conhecem, algo de excelente lhe falta. Pois bem, Antônio Conselheiro foi o protagonista do romance-ensaio do escritor Euclides da Cunha por haver sido um herói para a cultura brasileira — ainda que tentem apagá-lo —, mas um anti-herói, pois não se lhe pode ser atribuída as qualidades da excelência grega, a arethei. Mas sem dúvida ele construiu uma Tróia, ainda que de taipa. O nome Antônio, difundido por Portugal por intermédio de Santo Antônio de Lisboa, ou de Pádua, é, no entanto, grego, e quem o fez remontar à origem helênica foi Plutar-co, como pertencente à família dos Heraclidas, descendentes de Anton, filho de Hércules; esse deveria ser o traço mais apagado do nome do nosso Conselheiro, mas o seu sentido de oposição, anti, talvez nem tanto, pois fez oposição à maior força armada do continente sul-americano.

Quando nasceu, foi nomeado, por invocação ao Santo Antônio, numa fazenda do mesmo nome, Santo Antônio do Boqueirão, de propriedade de um senhor que assim também se cha-mava, Capitão Antônio Dias Ferreira, localizada em Vila Nova do Campo Maior do Quixeramobim, no território do Ceará Grande, um povoado que passou à categoria de Vila, em 1789, e cresceu à volta da capela erigida pelo capitão Antônio, que a dedicou, e não poderia ser a outro a não ser a Santo Antônio. É pela repetição no nome que se fixa o traço que o identifica. Afinal de contas, o nome, ou prenome, forma um conjunto finito com poucas variáveis. É um dado fixo, ou constante, se o compararmos às variáveis possíveis que compõem outros vocábulos. Ascende à casa dos milhões os portadores de um mesmo nome. Encontramos nisso exemplo do que, em agrupamen-tos lingüísticos de origem comum, o arbitrário do signo revela como possibilidade de não haver variação da imagem acústica em relação a um dado significado. Não é, contudo, aleatória a marca do nome. Antônio ou Antoine revelar-nos-ia a grafia de determinados fonemas, assim como o nome Cleoptera os revelou a Champollion. O nome mata a coisa e sobrevive na repetição. O sujeito-coisa nomeado identifica-se a quê no nome? Ao desejo nele contido. A relação entre o nome e o ser do sujeito como a ignorar?

O nome que se repete a Antônio Conselheiro lhe arbitrou um destino de santidade: Seguirei para onde me chamam os mal-aventurados, disse certa vez a um antigo amigo de infância. A composição do nome Antônio Vicente indica, no primeiro, a sua trajetória histórica: a de ser um peregrino condutor de fiéis pelos sertões; o segundo, Vicente, era o nome de seu pai, comerciante bodegueiro, que bebia mais aguardente que seus fregueses, o que levou mais tarde seu filho a escolher justamente o local de ajuntamento de ociosos e beberrões, à beira do rio Vaza-Barris, para organizar uma cidade onde a bebida alcoólica foi banida. Foi uma de suas maneiras de lidar com o pai: negar-lhe a bebida através da sua proibição a muitos outros. Um pai que morreria louco e arru-inado, e que seria enterrado na mesma capela onde batizou o filho, a capela de Santo Antônio, que assim era, no dizer de uma testemunha (João Brígido):

[com] seus assoalhos laterais, hermeticamente fechada, como uma igreja mal-assombrada, que devia afetar os cérebros, sobretudo à noite, a inalação de emanações cadavéricas, condensadas, diremos armazenadas em o pequeno recinto que fazia de cemitério há mais de setenta anos. Daí os assombramentos...

Quarenta anos depois da morte do seu pai, distante daquela capela em sua cidade natal, onde foi batizado e onde foi enterrado seu pai, Antônio Conselheiro tentou erguer sua obra-prima, o Templo Novo de Canudos. E, quando o bombardeio a atingiu, viu o seguinte:

tombarem as igrejas, arrombado o santuário, santos feitos em estilhas, altares caídos, relíquias sacudidas no encaliçamento das paredes e — alucinadora visão! — o Bom Jesus repentinamente a apear-se do altar-mor, baqueando sinistramente em terra, despedaçado por uma granada, o seu organismo combalido dobrou-se ferido de emoções violentas. Começou a morrer. Requintou na abstinência costumeira, levando-a a absoluto jejum. E imobilizou-se certo dia, de bruços, a fronte colada à terra, dentro do tempo em ruínas.

Estava morto, no interior da igreja que estava construindo, e essa obra constituiria a tentativa derradeira de recuperar na realidade o traço do Real não simbolizado da morte do pai. É possível que a cena, conforme a descrição feita pelo escritor Euclides da Cunha, tenha transformado este de estudioso positivista num escritor.

O nome próprio designa o sujeito, isto é, o des-signa, fazendo-o saltar dialeticamente do signo ao significante, instaurando a primazia deste através do Simbólico, do Outro, enquanto pri-mordial, pré-histórico, em referência ao pai. Nesse sentido podemos ler também na história do escritor Euclides da Cunha, num evento narrado de passagem por um de seus biógrafos, um sinal indicativo de um traço na identificação, na sua relação para com o Antônio Conselheiro. No dia em que Euclides da Cunha morreu, num duelo com seu rival, dirigiu-se bem cedo à casa de uma tia viúva, onde também moravam seus primos, um dos quais havia sido seu colega de trabalho; inda-gado sobre o motivo da visita, naquele dia e numa hora incomum para visitas, ele afirmou que fora buscar um revólver emprestado para matar um cão hidrófobo. Todos estranharam, e, durante a conversa com um dos seus primos, esse lhe lembrou ser aquele dia a data de aniversário da morte do pai deste. Do Tio Antônio? Que coincidência!, teria afirmado Euclides da Cunha. Nessa ocasião, seu próprio pai estava doente, e fazia parte dos seus planos cuidar dele; mas não o fez: preferiu morrer num duelo à bala, com o pretexto de salvaguardar a honra de marido enganado.

A marca do traço de morte que perpassou os significantes de ambos, historiador e histori-ado, destinou –os à guerra contra os militares. Euclides da Cunha, havendo sido militar, perdeu sua mulher para um outro militar, que era campeão de tiro, tornando-se alvo para as balas do seu desafeto. Gesto tresloucado, próprio de um suicida, o de duelar com um campeão nas armas escolhidas. Provocou sua morte diante da iminência da morte do próprio pai. E mais tarde seu filho incorrerá no mesmo erro, tentando matar o amante de sua mãe, que já matara seu pai. Euclides da Cunha desejou ser morto por aquele que desejou e foi desejado por sua mulher. Era Anna seu nome, que quer dizer cheia de graça, o que não deixa de ser uma ironia, tal a desgraça que se abateu sobre sua vida. Ela era, por sua vez, filha de um dos militares conspiradores do grupo que derrubou a Monarquia e proclamou a República. A República no Brasil foi promovida por um golpe militar, e o pai de Anna, Solon Ribeiro, foi o oficial encarregado de despachar o imperador deposto, D. Pedro II, para o exílio.

Os Sertões, de Euclides da Cunha, enquanto tentativa de recuperação do fato histórico mais dramático, registrado pela cultura brasileira até agora, revela o evento que foi a materialização cruenta do embate ideológico-cultural travado numa ex-colônia européia. E, se conseguíssemos retomar os trilhamentos dessa epopéia cultural identificada com as origens européias, seria provável sermos conduzidos a algo designado como resultante do confronto entre o tomismo aristotélico e o positivismo comtiano e a cultura brasileira moldada pelos sertões. A Igreja e o Exército aliados contra a cultura popular. A Psicologia das Massas, de Freud, é sempre muito atual para os latino-americanos, pois a Igreja e o Exército são as instituições que podem ser consideradas estáveis numa sociedade em crise política permanente, e o poder político só conse-guindo ser exercido com o consentimento de ambas. O massacre de Canudos foi efetuado pelo Exército com o consentimento da Igreja.

Antônio Conselheiro, que contrariou a ambas as instituições, foi um sertanejo semi-letrado que liderou milhares de pessoas em procissões religiosas pelos sertões do Nordeste do Brasil até fundarem uma cidade que deveria ser regida pelos ditames da vontade divina de acordo com a interpretação dele. Líder carismático, popular; religioso e político, mais religioso que político, por-quanto a política era exercida para organizar a cidade que formavam e para corroborar as idéias religiosas professadas. Ele era o intérprete da vontade divina para aquelas pessoas, porém fora da instituição eclesiástica e da ortodoxia romana. A igreja não se constituía ameaça para os lati-fundiários, ao contrário, mas alguém que fosse capaz de fundar uma cidade em pleno sertão, mesmo sendo em terras devolutas, em nome de Deus, constituía-se, no entender do Exército e da Igreja, uma ameaça a toda a sociedade. O poder político, mais sagaz, procurou minimizar a ques-tão, e, no início, tentou interná-lo num hospício, o que revela bem a função dos asilos para loucos, a mesma que as prisões. Mas a versão sobre aquela população como não sendo de gente civili-zada, ênfase positivista, prevaleceu, e o protagonista da história de Canudos foi, literalmente falan-do, um proto-agonista.

A leitura que os estudiosos do fenômeno Antônio Conselheiro têm feito não ressalta a sua relação com o desejo, o sexo, as mulheres, e o apresentam como um misógino; porém, conside-rando que o Simbólico da Cultura se compõe sobretudo da tradição oral, passemos a histórias contadas. Os habitantes da região falam sobre os motivos da peregrinação mantida por Antônio Conselheiro por mais de duas décadas pelos sertões, e, junto ao esforço de se lembrarem do que acontecera, as narrativas, embora de forma velada, coincidiam num ponto: o beato havia praticado um duplo crime - matricídio e uxoricídio, isto é, havia matado a mãe e a mulher. A história narrada foi a seguinte: certa vez a mãe de Conselheiro o alertou para o fato de que sua mulher o traía com outro, e que ele poderia comprovar o fato simulando uma viagem, mas permaneceria próximo a sua casa no dia aprazado para a viagem, observando. Seguindo a orientação materna, assim procedeu: lá pelas tantas horas, notou um vulto masculino aproximando-se de sua casa. Não contendo seu ódio, foi até aí e matou a ambos. Ao verificar quem era esse outro deparou com o corpo de sua própria mãe, vestida em trajes masculinos. Fora a mãe quem o enganara, traves-tindo-se de rival, e levara-o a praticar o crime. Desde então, podemos concluir, como que em obediência à instrução materna para fazer simular uma viagem, não parou mais de peregrinar.

Contudo, o fato criminoso não ocorrera, restando para nossa interpretação como desejo, pois na realidade ele era órfão de mãe desde os seis anos de idade. Já adulto, sua esposa abandonara-o, e por um soldado de polícia do interior. Antônio Conselheiro combaterá então o Exército até à morte, como se este estivesse substituindo as mulheres, pois a lenda as reúne, mãe-mulher, morte e mulheres, colocando, singularmente, a ambos, exército e mulheres, em campos identicamente rivais. Para Eucli-des da Cunha, a imaginação popular, como se vê, começava a romancear-lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade trágica. Mas o fato é que, passados cem anos, o povo daquele lugar ainda narra a tragédia familiar como tendo sido a responsável pela peregrinação de Antônio Conselheiro pelos sertões. Ora, a história que mais deve nos interessar é a da tradução oral, a que é narrada nas lendas e nos mitos. O mais é mera versão científica que tende a desen-raizar os fatos para enquadrá-los em modelos teóricos. Isso é inescapável, é certo, mas existem vários modelos. De imediato, surge-nos Lacan, com o modelo do Outro, e, em Formações do Inconsciente, o Outro é indicado onde o sujeito se vê traído pelo desejo, que dormiu com o significante. A traição é o engano inerente ao significante, próprio ao Simbólico, que, quando não traduzido, conduz ao crime, mesmo não praticado, mas tornando-se constitutivo do desejo de morte. E o que a lenda nos indica na história de Antônio Conselheiro é que o Outro Absoluto, a mãe, o traiu.

Em Canudos, reza ainda a lenda, narrada como fato por Euclides da Cunha, que o Conselheiro:

nunca mais olhou para uma mulher (...) Esboça uma moral que é a tradução justali-near da de Montano: a castidade exagerada ao máximo horror pela mulher, contrastando com a licença absoluta para o amor livre, atingindo quase à extinção do casamento (...) Falava de costas mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem sátiros.

Porém, se, por um lado, mantinha-se avesso às mulheres, dedicou, doutra forma, à Mulher, dirigindo à Mãe Maria, Mãe de Jesus, vários manuscritos, escrevendo que a nossa felicidade está nas mãos da Senhora. E o nome de sua mãe foi Maria, Maria Joaquina de Jesus. Maria, que se traduz por Senhora, em português, senhorinhou-o até à morte, num longo processo de peregrinação em que procurou ser reconhecido como filho, através dos passos de Jesus, filho de Maria, ele próprio. Mas os escritos do Conselheiro, suas Prédicas, são assunto para outro trabalho, pois são exemplos daquilo que pode ser considerado sob o ângulo do amor cortês, dedicado à Dama inacessível.

Sob o desejo-de-morte, sob a renúncia às mulheres, em nome d'A Mulher e sob a Lei de Deus, o Pai, fundou-se uma cidade cujos habitantes estavam destinados à morte. O vínculo que uniu os conselheiristas ao Conselheiro foi um pacto de morte inconsciente.

Tudo isso ocorreu num fim-de-mundo, num pedaço de terra desconhecido, e, sob a pers-pectiva urbanística, Antônio Conselheiro, ainda que fosse um bom mestre-de-obras, só conseguiu transmitir a noção de Favela ao aglomerado urbano pobre formado nas cidades, pois o morro da Favela, próximo à cidade de Canudos, abrigou as tropas que a destruiram, e os soldados, ao retornarem para as suas cidades de origem, começaram a difundir o nome favela para designar os casebres urbanos, e a significação cultural do nome favela passou a formar socialmente a rede designativa para pobreza, marginalidade e morte.

A Igreja Nova de Canudos era a única construção sólida do lugar, e é uma homenagem ao sineiro dessa igreja o título desse escrito: O SI(G)NO EMUDECEU..., pois, mesmo sob bombardeio, ele fazia repicar o sino daquele campanário até ser atingido pelo canhoneiro. Somente sua morte poderia emudecer aquele sino, tornando-o signo na escrita de sua história. A construção daquela igreja, mesmo tosca, deve ser com-parada, em termos de memória histórica, à Votirkirche austríaca, à Abadia de Westminster inglesa, ou à Notre-Dame francesa, pois, se não se constituiu um marco em termos de noção cultural equi-valente, deve ser erigida como traço monumental para a memória de um povo constantemente ameaçado por golpes militares.

Os militares exumaram o cadáver de Antônio Conselheiro para lhe decepar a cabeça, como se fossem Perseus gloriosos, e mandaram-na para estudos frenológicos, a fim de que, no dizer de Euclides da Cunha, a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, escreveu, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura... Deceparam-lhe a cabeça como se pudessem apagar sua gesta da história através da degola.

E o que fizeram aquelas pessoas em Canudos para se tornarem objetos de tal requinte de crueldade? Plantaram, criaram, roubaram algumas coisas de vez em quando, edificaram e rezaram. Os canudenses rezavam. Muito. Quase todo o tempo. Toda a cidade era um imenso templo religioso, com seus cinco mil e duzentos casebres, habitados por cerca de vinte e cinco mil almas, vestidas com mortalhas de azulão de brim, como que a esperar o momento de serem enter-radas. Dentre os poucos sobreviventes da carnificina final — cerca de trezentas mulheres e crian-ças e meia dúzia de velhos —, um deles, ao contemplar a cena, chorava. Os demais sobreviventes, feitos prisioneiros, foram degolados.

Não houve ainda na história do Brasil outro movimento tão extenso na sua significação quanto o movimento promovido pelos seguidores de Antônio Conselheiro. A comparação proposta pelo próprio Euclides da Cunha com a Vendéia francesa, narrada por Victor Hugo em Noventa e Três, não é a mais adequada, pois os insurretos na Bretanha eram de fato monarquistas, e o bosque de La Saudraie dificilmente poderia ser comparado aos sertões de Canudos. Victor Hugo, no entanto, mostrou, tanto quanto Freud o fez em Mal-estar na civilização, a natureza sublimada na sociedade humana, enquanto Euclides da Cunha revelou a dimensão criminosa do processo civilizatório e, poderíamos concluir de sua leitura(,) que os militares foram aqueles que a sociedade elegeu para exercitar o crime em nome do progresso. Ordem e Pro-gresso é o lema comtiano que tremula, inscrito na bandeira do Brasil.

Relembrar aquela história talvez impeça que a Psicanálise se comprometa institucionalmente com sua repetição sob outras formas, como, por exemplo, quando, no período mais inclemente da mais recente ditadura militar instalada, houve um psicanalista nos quadros do Exército atendendo os torturados, mantendo-se sob a guarida de uma instituição psicanalítica internacional. Para estarmos sempre nos lembrando dessas e de outras histórias, e evitarmos os deslocamentos de nossas rivalidades, é que escrevemos sobre esses fatos da história, pois, se há possibilidades identificatórias para os psicanalistas na dimensão Simbólica, uma delas é o lugar Imaginário ocupado pela via literária, por se reportar sempre ao Real.

E vocês, digam-me, o que ouviram do que lhes falei? Ou: Quem definirá um dia essa Mal-dade obscura e inconsciente das coisas, que inspirou aos gregos a concepção indecisa da Fatalidade? (Euclides da Cunha, Carta a Vicente de Carvalho).

Paris, junho de 1989,
Maison de l’Amérique Latine
,
a convite da Association Freudienne Internationale.

Notas

1 Hamlet (I, 1, 39)

2 Publicados no Brasil pela Jorge Zahar Editor, RJ, em 1998.

3 Neste ponto esse trabalho poderia receber mais um item temático, o da presença dos jesuítas no Brasil desde o primeiro momento da colonização européia, bem como tratar essa presença nos primórdios do movimento psicanalítico lacaniano no Brasil, e, de modo específico, em Recife.

4 Aquele Papa, por sinal, estaria envolvido pelo menos numa outra questão relevante, de ordem anátomo-sexual, sobre o clitóris, na obra De re anatomica, de Mateo Colombo, obra que foi parar nos Indices librorum prohibitorum, e seu autor quase queimado em fogueira pública.

5 [....] que os analistas brasileiros tenham provado na própria pele desse enodamento entre subjetividade e vida social, pelo que esperamos que nos esclareçam sobre esse ponto.[....]

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 25 - Diciembre 2008
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