Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Como fazer um psicanalista amador?
Sonia Leite

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Há alguns anos atrás assisti a uma exposição das aquarelas de Roland Barthes. Além da surpresa, ao descobrir esta outra faceta criadora do importante pensador francês, chamou-me especialmente a atenção o sugestivo título dado à exposição: Artista Amador.

De imediato, o significante amador conduziu-me ao sentido instituído em nossa cultura, ou seja, de alguém que entende superficialmente de alguma coisa e que aponta, simultaneamente, para uma situação social não muito valorizada. O surpreendente, no entanto, foi o modo pouco usual que Barthes resgatou a idéia.

Destaca que, amador, do latim amatore, é aquele que ama o que faz, isto é, o amante que se dedica a uma arte ou ofício por prazer, e que visa tão-somente ao gozo do fazer, sem se mover pela necessidade de expor o produto acabado ou impor a imagem pública do artista. Por causa desse vínculo peculiar, ressalta ele, o amador acaba por se transformar na coisa amada.

A partir disso uma idéia se me impôs, a do psicanalista amador, da qual o percurso freudiano nos deu um verdadeiro testemunho. Com efeito, o processo de transformação na coisa amada (a psicanálise) que nos foi legado pelo percurso freudiano está claramente delineado no pós-escrito ao seu estudo autobiográfico, na passagem em que ele afirma o entrelaçamento irredutível entre a história de sua vida e a história da psicanálise, destacando o fato de que sua vida só interessaria em suas relações com a psicanálise (FREUD, 1935).

Mais recentemente, essa idéia ressurgiu, quando assistia a uma entrevista do poeta brasileiro Ferreira Gullar. Ele se referia à poesia como o lugar de transformação do banal, no sublime. Afirma: A poesia emerge, ela é surpresa. Eu aprendo fazendo. Considera, a seguir, que as artes, em geral, possibilitam a expressão do indizível e, por isso, não poderia existir um poeta profissiona l. Surpreendo-me a cada dia, prossegue, com o fato de ter conseguido sobreviver dessa arte.

Desta vez me veio à lembrança a recomendação freudiana de tomar cada caso como se fosse o primeiro indicando que a escuta analítica não se sustenta em nenhum acúmulo do saber e, muito menos, numa mera aplicação teórica, mas na capacidade do analista se surpreender com a fala do analisante.

Um psicanalista amador, nessa ótica, pode ser pensado também como um entusiasta, isto é, alguém que ainda mantém o frescor da entrada em um determinado campo da experiência humana. Efetivamente, a palavra grega enthousiasmós, refere-se a um estado de exaltação, que se caracteriza por um sair de si mesmo por inspiração divina o que indica aí uma relação vital com o que Lacan denominou o Real.

Esta questão ele o expressa, no texto de 1973, Nota italiana, ao articular à possibilidade da passagem de analisante a analista ao crivo deste ser um rebotalho da humanidade. Indica que, se ele não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance (LACAN, 1973, p.313).

Tais pontuações, por sua vez, levaram-me a pensar que uma das formas contemporâneas de resistência à psicanálise se expressa, exatamente, em torno da temática da profissionalização do psicanalista. ¿O amador não seria o avesso do expert, isto é, do especialista ou técnico que domina um determinado saber, numa área específica?

O essencial da psicanálise se encontra no fato de o próprio campo sofrer os efeitos da castração e da presença do Real, não havendo, possibilidade de um domínio do saber aí implicado. O que se destaca, como indica Lacan (1964, p.119), no Seminário 11, é que a arte de escutar — que delineia a presença do analista — equivale quase a de bem dizer, na qual o analisante é convocado, pois, a situação do desejo está profundamente marcada, unida, a uma função da linguagem, a uma certa relação do sujeito ao significante que se apresenta, exemplarmente, na evocação poética.

A questão é a de como sustentar esta arte da escuta que viabiliza, em ultima instância, a existência do próprio campo psicanalítico.

O titulo do trabalho, Como fazer um psicanalista amador? se reporta ao tema da transmissão no campo psicanalítico e da função da Escola de Psicanálise no trabalho de sustentação da presença do analista e, conseqüentemente, da experiência do inconsciente.

Desejo original: desejo de Freud

Quanto ao desejo de Freud, afirma Lacan (1964, p.20), coloquei-o num nível mais elevado. Eu disse que o campo freudiano da prática analítica permanecia na dependência de certo desejo original que tem sempre papel ambíguo, mas prevalente, na transmissão da psicanálise. Não se trata aqui de um desejo em posição de subjetividade, esclarece Lacan, mas do desejo em posição de objeto.

Esta posição se explicita naquilo que Cottet (1982) denomina de paixão freudiana pelo real. Paixão que sustentou o criador da psicanálise na construção do campo psicanalítico, fazendo-o avançar para além do campo médico de sua época e, consequentemente, da política dos bens sociais instituídos

A paixão freudiana pelo real pode ser pensada tendo-se em vista a presença ininterrupta, ao longo de sua obra, de uma busca orientada, não em direção a um início, no sentido clássico da anamnese, mas em direção a uma origem. Na realidade é a própria idéia de origem que se transforma, quando da passagem da teoria da sedução para a teoria da fantasia. Após o abandono da "neurótica", as pesquisas freudianas orientam-se para um real, independentemente do fático. Na teoria da fantasia, é a narração, a ficção, o mito que adquirem valor de verdade suplementar e fornecem índices do real a (des)cobrir, pois, sendo o real o impossível, o que se resgata são fragmentos da realidade reordenados pelo véu da fantasia (LEITE, 2006).

Aqui, encontra-se a definição de práxis, ou seja, uma ação humana que viabiliza o tratamento do real pelo simbólico. De maneira similar à experiência estética, a experiência freudiana originária e, conseqüentemente, cada nova experiência psicanalítica, assume os contornos de uma revelação, isto é, um des-velar, uma retirada de véus, um reencontro com o real mobilizador de uma re-escritura.

O que importa destacar é que o núcleo da experiência psicanalítica, enquanto passagem de analisante a analista, envolve uma repetição simbólica do percurso freudiano. Ou seja, o que aí retorna é o real enquanto impossível delineando-se uma repetição que se inscreve na historia do campo psicanalítico.

A estrutura do campo psicanalítico e a função da Escola

No trabalho intitulado, O mito individual do neurótico, Lacan (1953, p.46) faz a seguinte afirmação: A psicanálise, devo lembrar em preâmbulo, é uma disciplina que, no conjunto das ciências, se apresenta com uma posição verdadeiramente particular(...) Prossegue dizendo, que ela não é propriamente falando uma ciência, mas também não é simplesmente uma arte, como se costuma dizer, se entendermos esta última como uma técnica, um método operacional. Mas não é um erro, indica, se empregarmos esta palavra, uma arte, no sentido em que se empregava na Idade Média, quando se falava de artes liberais.(LACAN, 1953, p.46). Considera, de forma radical, que, na atualidade, a psicanálise pode ser considerada a única disciplina comparável a estas artes.

O conceito de artes liberais é oriundo do período clássico (Antiguidade Clássica) mas, a sua divisão e estabilidade ocorrerá, efetivamente, na Idade Média. As artes liberais são compostas de sete disciplinas cuja função é, prioritariamente, a formação de um homem livre, de um livre pensador. As artes liberais desligadas de toda preocupação profissional e utilitarista se contrapunham às chamadas artes mecânicas, ou seja, às disciplinas cujo objetivo seria a atividade prática.

Para prover esta formação, as artes liberais eram divididas em Trivium e Quadrivium. O Trivium compunha-se das três artes da linguagem (a lógica, a gramática, e a retórica) que visava o "treino da mente" para o estudo da matéria e do espírito, ou seja, do que se chamava a substancia mesma da realidade. O Quadrivium, por sua vez, viabilizaria o estudo cientifico através das quatro artes da quantidade, pertinentes à matéria (a aritmética, a música, a geometria e a astronomia). Estas disciplinas seriam o fundamento de todo e qualquer estudo superior na época Medieval, pois as sete artes liberais visavam um tipo de transmissão cujo foco era o aprimoramento da mente, capacitando-a para a criação de idéias. O que chama a atenção é que Lacan, ao longo de sua obra, de um modo ou de outro manteve a referência a estas sete artes para sustentar o ensino e a transmissão da psicanálise.

O que ele coloca em destaque, ao aproximar as artes liberais da psicanálise é o fato de que ambas sustentariam em primeiro plano aquilo que se pode chamar uma relação fundamental da medida do homem consigo mesmo (LACAN, 1953, p.46). Relação cíclica que não se esgota jamais e que comporta, por excelência, o uso da linguagem e da palavra.

É por isso que a experiência psicanalítica não é objetivável, no sentido que o são as ciências. Por outro lado, é na ordem mítica, trágica e ficcional que se encontram as formas discursivas capazes de viabilizar um valor de verdade, ao caminho percorrido pelo analisante durante o trabalho analítico.

Trata-se de uma posição especial ocupada pela psicanálise que se deve ao fato de que o analista é parte indissociável da estrutura, ou, como afirma Lacan (1964, p.121), A presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente. Manifestação que se traduz em uma pulsação temporal, que só se abre para, imediatamente, se tornar a fechar. O ritmo e o movimento, próprio à manifestação do inconsciente, que caracteriza a estrutura da experiência psicanalítica se inscreve na tessitura do campo psicanalítico. E é, por isso, que testemunhamos de tempos em tempos a emergência das resistências à psicanálise, não só na clínica, mas, também, no campo psicanalítico.

Indica-se aí que se, do lado do analisante, é necessária a assunção de uma responsabilidade por aquilo que o determina, isto é, o inconsciente, do lado do analista, uma outra tarefa se apresenta, como resultado de uma passagem que se produz em sua análise, da qual ele não deve recuar, qual seja, a responsabilidade pela psicanálise no mundo.

Tendo isso em vista, Lacan, na década de 50, envereda em uma crítica à institucionalização da psicanálise, insistindo daí por diante na idéia da construção de condições institucionais que viabilizem a existência de uma Escola fundamentada na psicanálise em intensão, ou seja, na experiência psicanalítica. Trata-se de um verdadeiro resgate do movimento psicanalítico, tal como nomeado por Freud (1914), paralisado em função da institucionalização da psicanálise.

Conclui-se, assim, que a existência da Escola de Lacan é impensável quando desvinculada da questão: como transmitir a experiência do inconsciente insistindo em uma continuidade entre experiência e instituição psicanalítica? É essa perspectiva que vai permitir uma transmissão que não se sustente unicamente no recalque e que tenha como efeito dois princípios fundamentais para a permanência do campo psicanalítico (JULIAN, 2006) :

O segundo princípio aponta para o fato de que o analista (re)constrói seu lugar no mundo no confronto com as outras ciências (medicina, psiquiatria, sociologia, etc) que teriam como função colocar à prova o desejo pela psicanálise.

Cabe, então, retomar o título deste trabalho indagando como construir um lugar em que o desejo de Freud seja continuamente re-experimentado e onde o analisante possa não só fazer o luto de seu analista, como compartilhar sua experiência com analistas transformados em seus pares.

Acreditar na possibilidade de transmissão da psicanálise, por uma via diferente da do recalque, faz da Escola o lócus de experimentação permanente, ou seja, refúgio (LACAN, 1964a) capaz de acolher o mal-estar que emerge do encontro com as diferenças e com o não-saber radical. Nesse sentido o passe, mais do que um dispositivo institucional deve ser tomado como um significante indicador da experiência do despertar, do encontro fugas com a Outra coisa, que poderá emergir em diferentes situações institucionais (seminários, supervisão, etc) viabilizando, na Escola, o retornar-se um psicanalista amador.

Para finalizar resgato a provocação de Lacan lançada no seu artigo, Função e campo da fala e da linguagem, de 1953a: (...) manifestaria a psicanálise uma ambição desmedida ao aplicar seus princípios à sua própria corporação (...)?

Notas:

Trabalho apresentado na VII Jornada Brasileira de Convergência, em 5 de maio de 2007, no Rio de Janeiro, Brasil.

 

Referências Bibliográficas:

COTTET, Serge (1982) Freud e o desejo do psicanalista. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1989.

FREUD, Sigmund(1914) A história do movimento psicanalítico. In: Edição Standart das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro:Imago, vol.XIV, 1977.

______________(1935) Pó-escrito a Um estudo autobiográfico. In: ESB, Rio de Janeiro:Imago, vol.XX, 1977.

JULIEN, Philippe (2006) A transmissão da psicanálise. In: "Lacan e a formação do psicanalista", org: JORGE, Marco Antonio Coutinho. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2006.

LACAN, Jacques (1953) O mito individual do neurótico. Lisboa:Assírio e Alvim, 1987.

______________ (1953) Função e campo da fala e da linguagem. In:Escritos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1998.

______________ (1964) Seminário 11 Os quatro conceitos fundamentais.Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1993.

______________ (1964) Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2003.

______________ (1973) Nota italiana. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2003.

LEITE, Sonia (2006) O psicanalista amador e os três desejos – sobre o desejo do analista. In: "Lacan e a formação do psicanalista", org: JORGE, Marco Antonio Coutinho. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2006.

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Número 25 - Diciembre 2008
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