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"Um e Outros" poderia servir de sub-título ao diálogo de Platão, Parmênides, texto instigante para o tema De um analista a outro , de um analista a outros. Em "Proposições sobre a causalidade psíquica" de 1946, Lacan qualificava este diálogo de "admirável" (1966:193). E, no Seminário 19 ...Ou pior, ele convida os interessados em "ocupar a posição de analista" a "quebrar os dentes", trazendo "algo de si", na leitura do Parmênides (17.05.72).
O tradutor e comentarista Auguste Diès escreveu uma longa introdução para a edição francesa. Em dado momento, ele cita Isocrate que refere-se à divergência entre os antigos sofistas "sobre o número de seres": "para algum, uma infinidade; para Empédocles, quatro; para Íon, somente três; para Alcmeão, somente dois; para Parmênides e Melissos, um; para Gorgias, absolutamente nenhum" (1974: 11).
O sábio idoso Parmênides afirma o um, a unidade de cada idéia, mais do que propriamente um ser. O quarentão Zenão nega o múltiplo, apoiando assim a tese do um. O jovem Sócrates considera banal o posicionamento de Zenão e anseia por um discurso "maravilhoso" sobre a maneira das formas, idéias, (eidé em grego), "se entrelaçarem em oposições de mil maneiras" (1974:129e). Parmênides assume a tarefa, colocando várias hipóteses a partir de "se um é um", "se um é" e "se um não é". Ele indaga-se a respeito das conseqüências de cada hipótese sobre o próprio um e sobre "os outros". Todas as hipóteses são abordadas através de oposições, entre outras, "semelhança-não semelhança", "igualdade-desigualdade", "movimento-imobilidade", "contato-não contato", "mais novo-mais velho". Estas díades têm, conforme Lacan, a função do "ponto de queda, ali onde tudo passa, onde tudo foge". Elas pressionam "a forjar esta idéia do um da idéia, da forma, este um [...] inapreensível" (21.06.72).
Há tempo, Lacan diferenciava o um, amor unificador, imaginario, do um, simbólico, traço unário da repetição. Aqui em ...Ou pior, ele sublinha no um de Platão o real, o sem-sentido do "um" matemático. Dali, ele parte para o um da exceção à castração, o pai, o "pelo menos um". Dizendo não à castração, o pai, por este dizer, faz "acontecer" o universal do homem submetido à castração. Na última sessão, de 21.06.72, Lacan questiona os defensores do lema "o ground é o corpo". Ele os critica por desinteressar-se de "observações sobre a ambigüidade total do universal, seja afirmativo ou negativo, e também do particular". Para Lacan, o essencial em Freud, a sobredeterminação, acaba situando o "ground", o fundamento, na articulação dos quatro elementos do discurso, o gozo fálico,a verdade, o semblante e o mais-do-gozar. Assim, o próprio um do corpo, aliás "semblante do corpo", é remetido a "outros" elementos, pois "não é articulável senão a partir do discurso". E o discurso analítico propõe a interpretação, sendo "o analisante o interpretante", cabendo ao analista o lugar de semblante de a, "de-ser de ser o suporte, o dejeto, a abjeção", causa de um "nascer do dizer". A última página de ste Seminário volta ao tema do pai, este "pelo menos um" dizendo não à castração :"é em redor daquele que umnega (unie), que diz não, que pode fundar-se, que deve fundar-se, que não pode senão fundar-se tudo o que é universal.Mas quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizamos a palavra irmão, entramos vento em popa no nível dos bons sentimentos.[...] O que está crescendo, ainda não percebido até suas últimas conseqüências e que,ele, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Deste, não terminaram de ouvir falar!". Ora "o primeiro surgido" é o discurso do mestre que consegue "pegar corpos" pelos "bons sentimentos", "pelos afetos" . Ao contrário, o discurso do analista nos faz "irmãos de nosso paciente, enquanto, como ele, somos filhos do discurso". O pai "que diz não" torna o dizer acontecimento. A diferença sexual não é de corpo, mas de referência toda ou não-toda ao falo. É somente o dizer, acontecimento, que pode relativizar a frase do texto "Joyce o sintoma": "deixemos o sintoma àquilo que é, um acontecimento de corpo" (2001:569)."O acontecimento não se produz senão na ordem do simbólico. Não há acontecimento senão de dizer", lemos em Les non-dupes errent, (15.01.74).
O um recusa o ser
Lacan vai buscar no um de Platão o grande aliado no questionamento ao ser (être), à ontologia, ao discurso do mestre (maître) e sublinha a homofonia em francês entre maître e m´être. O um é o instrumento privilegiado para confrontar o ser : "Antes de Aristóteles, [...] o um já havia falado [...] no Parmênides [...] quando diz o que ele tem a dizer, vemos para onde isso vai: em qualquer caso, à total recusa de qualquer relação ao ser" (17.05.72).
Na leitura do Parmênides, Lacan destaca: "O ser, ele é um, sempre em todos os casos, mas que o um não saiba ser como ser, isso é perfeitamente demonstrado no Parmênides. É bem historicamente de onde saiu a função da existência [...] Ex-sistere, não se sustentar senão de um fora que não é, é bem disso que se trata no um" (15.03.72) "Historicamente, esta noção de existência não surgiu senão com a intrusão do real matemático como tal". "Real é que justamente, nem o verdadeiro, nem o sentido ali dominam" (17.05.72) "O que constitui o um [...] é que ele não começa senão de sua falta (19.04.72). Parmênides declara: "Não há senão o um a fazer um; não pode haver dois" (1974:149d). Isso serve para Lacan dizer : há um, "não há dois", "não há rapport sexual" (17.05.72). Há um e não há o ser como tal, não há relação sexual, não há proporção entre os sexos. "Tento fixar o que supre ao que chamei a impossibilidade de escrever a relação sexual, é bem na medida em que, [...] dois termos se confrontam, um sendo "existe" e o outro sendo "não existe" (19.04.72).
O desenrolar das hipóteses do texto de Platão "permanece problemático de algum modo, um objeto de escândalo", deixando "o discurso universitário em apuros", afirma Lacan. Ele destaca o "caráter não histórico" do texto, - a história é cheia de sentido - e reconhece neste diálogo de Platão "algum primeiro assento de um discurso propriamente analítico ". "Estando no nível da produção", o significante um oferece a "oportunidade de centrar muito precisamente não sobre o número mas sobre o significante um" (19.04.72). De fato, a leitura deste diálogo de Platão serve de inspiração para a prática analítica : "Trabalhando o Parmênides [...] o real matemático [..] aproximando-se deste real [...] isso permitiria ao analista interpretar, renovar o sentido, dizer coisas, deste fato, um pouco menos curto-circuitadas" (17. 05.72). Comparados aos "significantes sexuais", os "significantes matemáticos" "detêm um estatuto que morde de outro modo sobre o real" (15-12-71).
Algo novo surge na posição subjetiva do analisante, por exemplo, quando ele termina sublinhando a repetição do número 3 em seus desastres escolares e amorosos. O terceiro ano desastroso do colégio, da faculdade, do namoro e do casamento remetia aos 3 anos de idade, época do trauma causado pelo nascimento do irmão.
Umnegar e outros
Os interlocutores do "um" Parmênides, isto é, "os outros", esperavam uma demonstração em redor de algum objeto real. Parmênides vai mais além do esperado, mostrando o real da idéia, da forma, mais real de que algum objeto, pois remete ao real do um, do não-sentido, em detrimento do ser, do ser pleno de sentido.
Gostaria de sublinhar aqui o seguinte: a primeira hipótese, "o um é um" domina o debate, pois é seguida de quatro hipóteses sobre "o um é" e de quatro hipóteses sobre "o um não é ". Assim, "o um é um" enquadra dois conjuntos "o um é" e "o um não é". Neste aspecto e mais do que o próprio Lacan imaginava, o Parmênides de Platão anunciava as fórmulas da sexuação. Destacando o necessário de escrever a referência ao falo por ser impossível a escrita da relação sexual, estas fórmulas nos mostram dois conjuntos, o primeiro, fechado, em que "o um é" submetido à castração e o segundo, aberto, onde "o um não é" todo submetido à castração.
Temos o Um em oposição não ao Outro, pois não há propriamente o Outro, A mulher, mas em oposição a outros, as mulheres, uma a uma, que Lacan chama "um a menos". Aliás, o leitor do Parmênides constata que Platão opõe o um não a outro, mas a outros. Cabe ao plural "outros" a oposição própria ao um singular.
De vez em quando, Lacan afirma estar no lugar do analisante. Em ... ou Pior, ele diz : "estou no lugar, o mesmo e nisso é lugar de ensino, estou no lugar do analisante" (8.03.72). Neste lugar, ele está procurando um significante que morde sobre o real. Freud era atento à novidade trazida por cada analisante, que, afinal, podia ensinar ao analista. Lacan denuncia a resistência do analista usando o próprio saber como obstáculo ao saber novo do analisante. Nos últimos Seminários, ele convida a "inventar" com James Joyce e, em L´Insu, pergunta: "Por que não tentar formular um significante que teria contrariamente ao uso que se faz habitualmente, que teria um efeito? [...] um significante novo" (17.05.77). Aqui, em ...Ou pior, a posição ensinante de analisante, de falante, leva Lacan a procurar, via Parmênides, um significante novo que "morde sobre o real".
Isso começa com o título ...Ou Pior. Falta algo no título? Os três pontos representam a própria falta. Lacan refere-se ao "lugar vazio", "a única maneira de dizer algo com a linguagem" (8.12.71). Assim, o título poderia ser "a falta ou pior". Mas, como o um "não começa senão de sua falta", o menos um (a falta) se revela necessário ao surgimento do um. E Lacan pergunta: "o que ocupa este lugar vazio"? E responde "forçosamente um verbo [...] mas é um verbo elidido pelos três pontos" (8.12.71). Logo depois, lemos: "O verbo na ocasião, não é difícil a encontrar, basta virar a letra que começa o termo pire, ça fait dire".O verbo é dizer. "Dizer ou pior" pode ser um ótimo título. Mas dizer não corresponde a um significante novo mordendo sobre o real. A indagação do início da primeira sessão do Seminário pode estimular o leitor a ir além, a reviver o ambiente de inquérito policial digno da "carta roubada", la lettre volée, que serve de abertura ao livro Escritos. Que significante pode ser criado por este "dizer"? De dizer, passa-se ao "dizer não", ao "pelo menos um" que diz não à castração, o pai. Via imaginário, o um une (unit na língua francesa). O verbo unir é o mesmo nas línguas latinas. A partir deste verbo, Lacan inventa "unier", umnegar : "pode-se criar umnegar". Mas ele faz uma ressalva : "um que diz que não , isso não equivale em tudo a negar"(14.06.72). É um negar dobrado por um dizer.Assim, abrindo ao surgimento do um, a falta permitiria reescrever o título do Seminário 19 "...unier ou pire", "...umnegar ou pior". No começo do Seminário, o verbo elidido no título é "dizer", dizer sobre a não relação sexual. Dizer ou pior (dire ou pire). Este dizer abre ao "dizer não", e então ao um que diz não. Pelo fim do Seminário, o falante, o analisante Lacan transforma um "dizer não" em significante, unier, umnegar.
O analista não se autoriza senão dele mesmo e de alguns outros
O título da revista Acheronta 25, De um analista ao outro, pode deslizar para a famosa frase de Lacan "O psicanalista não se autoriza senão dele-mesmo" (9.10.67) "e de alguns outros" (9.04.74). A expressão "só se autoriza por ele-mesmo" seria a tradução de "s´autorise seulement de lui-même". Ora a frase em francês é mais sutil, mais reticente : "Le psychanalyste ne s'autorise que de lui-même", "não se autoriza senão dele-mesmo". Na época, esta declaração representava uma ruptura com a instituição tradicional,detentora exclusiva da autorização de analistas. A frase de Lacan poderia ser aproximada de uma outra dele em 21.06.64, embora situada em registro diferente : "Fundo - tão sozinho quanto sempre fui em minha relação à causa psicanalítica- a Escola francesa de psicanálise". Presente no momento do Ato de fundação, René Major fala de uma "encenação" pois os presentes ouvem a voz de Lacan num gravador e, logo depois, o vêem em "brusco aparecimento em carne e osso" (Didier-Weill, 2007:212) . O analista não se autoriza senão dele mesmo e de alguns outros. O "um" analista não deixa de ser dividido entre praticar a análise e teorizá-la. E o analista Lacan, autorizando-se a fundar uma escola, aparece dividido entre voz e corpo. A presença de muitos analistas na casa de François Perrier no momento da Fundação da Escola testemunhava de um dizer que é "acontecimento" neste Ato de um "fundo tão sozinho". A solidão necessária à autorização e à fundação não exclui os outros. Pelo contrário. E precisa-se de um autorizar-se para ser fundador.
O Seminário ...Ou Pior nos revela o analista Lacan não se autorizando senão dele-mesmo e de alguns outros, o mais antigo destes outros sendo o sábio Parmênides de Platão.
O Parmênides sublinha o um e "o que ele tem a dizer", levando "à total recusa de qualquer relação ao ser" (17.05.72). Entre um analista e outros, não se trata de uma relação de ser. Já em "Função e campo da fala e da linguagem", Lacan questionava o ser do analista como critério do trabalho analítico (1966:243 e 249). Considerado o primeiro assento do discurso analítico, o Parmênides de Platão encaminha a produção do um, a produção de um analista. Sobre o passe, Lacan afirma : "Qualquer acesso ao título de analista da Escola é em primeiro lugar contribuição efetiva ao progresso da teoria psicanalítica" (École Freudienne de Paris, Annuaire 1977:19). Isto é, o passe não é o fim da análise, mas a produção provocada por este fim. E este "passe" de Lacan elaborar algo que faz avançar a psicanálise - não funciona em redor do ser, mas do um, da produção do um.
Para qualquer "um" analista em relação a outros chamados analistas da transmissão, do passe ou da supervisão, não se trata de uma relação de ser . Trata-se de algum um, algo único, de determinado analista. E propriamente, via Parmênides, o um recusa qualquer relação de ser.
Há uma nota de Lacan, em 1975, sobre "...Ou pior". Em dado momento, ele critica a confusão entre ser e um nas abordagens de Plotino e de Leibniz (2001:547). Em Una lectura del Parmênides de 13.01.94, Michel Sauval questiona a continuação desta confusão em certa abordagem psicanalítica de hoje. De fato, se evocarmos a homofonia francesa "être-m´être" (ser-mestre), o passe considerado relação de ser pertenceria ao discurso do mestre.
Lacan nos convidou a "quebrar os dentes" na leitura do Parmênides. E o quebrar os dentes não deixa de sugerir algum tipo de incorporação". Se não for incorporação do um, ...é pior.
Bibliografía
1 - Didier-Weil, A. Weiss, E., Gravas, F. , Quartier Lacan. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2007.
2 - École Freudienne de Paris, Annuaire. Paris, Les Presses Artistiques,1977.
3 - Lacan, J. ...ou Pire. 1971-1972, (Inédit).
4 - Lacan, J. L´Insu. 1976-1977 (Inédit).
5 - Lacan, J. Les non-dupes errent. 1973-1974. (Inédit).
6 - Lacan, J. Autres écrits, Paris, Seuil,2001.
7 - Lacan, J. Écrits, Paris, Seuil, 1966.
8 - Platon , Parménide, Paris, Les belles lettres, 1974.
9 - Sauval, M. Una lectura del Parménides, Revista Acheronta nº 1.