Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Transmissão, queda de saber
Welson Barbato

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A experiência de discutir e produzir a partir de um tema no dispositivo do Cartel deflagra inevitável embate entre o uso normativo da semântica e das representações clássicas daquilo que se elege como ponto de trabalho. O Cartel, como instrumento tático e estratégico crucial da transmissão da psicanálise, escancara o hiato inerente entre a lógica gramatical na sua vertente aristotélica e outra lógica construída por Freud, reinventada e alicerçada singularmente por Lacan.

É da condição da práxis da psicanálise autorizar sua interpretação no seio de outros discursos, discursos esses que lhe são, simultaneamente, alheios e avizinhados na sua estrutura. Isto é, o discurso psicanalítico só se viabiliza e encontra seu lugar, na medida em que exerce seu estatuto a partir da hermenêutica da mestria e, por certo prisma, da ciência tradicional, sustentando-se na contradição, pois promove descontinuidade em relação a eles.

Por legitimar-se enquanto discurso e prática na referência e no paradigma do discurso fluente, a psicanálise encontra seu primeiro ponto de estofo, de intersecção e de "furo" exatamente na semântica clássica das representações.

O movimento do primeiro tempo de uma análise ou primeiro tempo da interpretação pode ser assim alegorizado . O analista, na experiência de oferecimento da ética de seu discurso e do seu fazer, depara-se, via de regra, com seu avesso¹, como frisou Lacan na formalização dos matemas dos quatro discursos, como quatro modos de provocação. O que seria esse avesso, senão a proliferação de consistências que anulam os efeitos de Sujeito e, assim, evitam qualquer distância entre o falado e o dizer? Ao interpelar clinicamente os efeitos das consistências imaginárias (intrínsecas à linguagem), nas queixas e nos pedidos iniciais de análise (demarco aí a diferença conceitual com a demanda), o analista vetoriza sua política como um lógico, como aquele que substitui a realidade pela estrutura, exatamente onde acontecerão operações que permitirão tratar uma linguagem e não simplesmente trabalhá-la na sua realidade usual preexistente. O analista, dessa forma, oferece o vazio (vazio de referência), para que o candidato à análise voz ao saber de como se faz para o Outro e, assim, estabeleça, como primeiro tempo da retificação, sua (su)posição fálica².

É essa a porta de entrada do estabelecimento das condições basais para que o discurso analítico viabilize modalizações aos imperativos categóricos que caracterizam e suportam a linguagem distante de qualquer interpelação analític a.

O saber. Amor ao saber. Não seria exatamente em torno dele que giram a lógica da linguagem usual e a linguagem lógica (sintática semântica)? A transitividade desse verbo adquire na psicanálise valor objetal distinto da equação clássica que outorga ao saber seu objeto intrínseco, natural. Tal valor não se concentra, portanto, nessa transitoriedade que, por conseqüência, pede um objeto, mas, sim, na separação do saber em relação à verdade. Separação essa que se institui como efeito de eventuais cálculos táticos do analista.

Nesse contexto e por artifício de escrita, parece plausível estabelecer pareamento com o tema de transmissão da psicanálise. A priori, ensino e transmissão estão ligados a um saber, saber suposto que, por condição, é mapeado na análise desde os diversos estilos de demanda e sustentado pelo Sq da transferência.

Mas o saber no bojo do discurso analítico não se configura como um fim e nem se conecta com qualquer objeto que lhe dê substância. Grosso modo, tem o caráter de propiciar passagem para um segundo tempo analítico, onde a atribuição que o analisante outorga a si mesmo é convocada à implicação e à queda, queda do saber que subjetiva, que essencializa e, por conseguinte, mostra-se refratário à verdade. Como se dá essa oposição? Exatamente quando o saber é lido e interpretado como sinonímico à verdade. Além do mais, a distinção entre saber e verdade encontra paralelismo em outras demarcações fundamentais na trilha analítica: Real e Realidade, Causa e Razão, por exemplo, tidas como escansões estratégicas privilegiadas.

Estamos aí, propriamente, no campo do gozo, campo lacaniano por excelência, que inventa o impossível do Real como categoria clínica nodal. E Lacan nos convida reiteradamente a lembrarmos que o que deve ser feito na análise é a instituição desse outro campo energético que se instaura por possibilidades de posicionamento em relação ao gozo, numa reavaliação capital da noção de S ujeito – marcado pelo vazio – na sua relação com o campo topológico do Real. Campo sem palavras, sem representação³. A pergunta pela transmissão toca aí em bom impasse, pois o ato de transmitir evoca como referente do fazer do analista, operações de matematicidade, no exato ponto onde o discurso psicanalítico é exercido. Daí, temos uma passagem operacional: do saber como paradigma e referência de uma lógica, para a verdade como paradigma de outra.

Onde e como esses deslocamentos se imprimem? Nas operações lógicas que permeiam, por exemplo, as passagens dos tempos de uma análise, a reinvenção da sintaxe e da semântica nos quatro tempos verbais, a produção do Real e do Vazio. Sabemos que o Real, por sua vez, não se demonstra, pois é produzido pela via da contradição, o que aponta mais uma vez para o vazio de referência no discurso analítico. Tal qual o Sujeito do inconsciente, o Real é efeito de mecanismos de cálculo (combinação de operações e categorias logicizadas) do analista. O cálculo remete, então, ao estilo como cada analista modaliza sua práxis.

A transmissão, portanto, faz balizamento ético com a montagem - de forma e estilo - que cada analista executou do seu gozo, desde a particularidade do seu processo, como aquilo que pôde teorizar de sua própria análise, do exercício de sua clínica, formalizando, assim, sua prática, singularizada em cada análise que dirige. A partir das operações lógicas que relativizam as conceitualizações tradicionais, o analista faz funcionar seu saber em termos de verdade, o que o exime de amá-lo, remetendo-o às condições de abarcá-lo na estrutura do desejo. Trata-se, antes de tudo, de desejo de saber.

Mas o que se transmite? A formalização é objeto de transmissão ou exprime um imperativo do discurso universitário? O verbo "transmitir" em psicanálise exige complemento? Se o tornarmos na sua intransitividade, evidenciando ação ou qualidade que não transita, que não permite objeto para um sujeito, deparamo-nos com a assertiva: " A psicanálise se transmite". Ponto final. A estrutura da frase alude à intransitividade. Interessante quando atentamos para a raiz latina do significante "intransitivo ": intransitivu – cuja significação é de intransmissível, enfim, que não se pode transmitir a outro.

A transmissão requer a formalização como um dos seus instrumentos de base, mas não a tem como objeto pleno e que garante a passagem de algo de um lugar a outro. Nesse sentido, o transmitir faz enlace com a escrita naquilo que essa alude à representação do vazio. A escuta e a transmissão, então, se inscreveriam como conseqüência do lapso, do semi-dizer da verdade e do limite da linguagem. Produz-se aí uma fenda que convida à determinadas suplências, pois não há consonância coeza entre o que se quer transmitir e o que efetivamente se transmite. É possível ler os efeitos da transmissão, mas não necessariamente traduzir com linearilidade suas causas e suas razões. Essas só se fixam por retroação, como na arquitetura mesma do saber que a conduta analítica imprime.

O vetor dessa constituição, por conseguinte, inverte a dinâmica da lógica clássica, pois parte do sintoma como estilo discursivo, das relações semânticas e do significante como referente precário da verdade, dirigindo-se ao silêncio lingüístico do objeto a.

Dessa forma, o que está no ventre da causa da transmissão – mas que não a toma na sua totalidade – é o gozo do analista/transmissor, gozo esse que opera desde o desejo de saber, promovendo equivalência lapidar com o gozo feminino, naquilo que revela a inexistência da relação sexual no ser que fala e nas inoperantes causas de intenção. Cabe a pergunta: quem ou o quê é o "outro" do feminino? Como se formula esse "outro", receptáculo de desejos que, como tais, não se presentificam em respostas consistentes? A clínica psicanalítica - e sua transmissão - depara-se com a urgência dessa teorização, vinculada, antes de tudo, ao saber impossível da castração.

Notas

1. Lacan, Jacques – O Avesso da Psicanálise – Seminário 17 – Jorge Zahar Editor.

2. Villalba, Ivete – Seminário "As Operações Analíticas" – São Paulo, Setembro de 1999.

3. Lacan, Jacques – As Formações do Inconsciente – Seminário 05 – Jorge Zahar Editor.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 25 - Diciembre 2008
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