Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A escrita inconsciente:
Uma leitura renovada do não/aprender
Marcia Siquiera de Andrade

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Resumo:

Este artigo pretende discutir os distúrbios de aprendizagem da língua escrita frequentemente identificados junto às crianças e adolescentes encaminhados por profissionais do ensino e da saúde para atendimento na clínica psicopedagógica.

O espaço terapêutico psicopedagógico tem se revelado um espaço de acolhimento das angústias inconscientes que impedem a saudável simbolização do objeto, objeto da escrita/objeto do desejo, pelo sujeito com problemas de aprendizagem.

O psicopedagogo clínico tem sido aquele cujo olhar, através do processo diagnóstico, se permite enxergar o sinal da demanda subjetiva que aparece sob a forma de sintoma, podendo atuar de forma a favorecer a resignificação do conflito inconsciente que impede a aprendizagem normal.

Nesse sentido cabe o estabelecimento das diferenças existentes entre erro construtivo, como erro que permite a apropriação do objeto de conhecimento e sintoma, enquanto momento de paralisação da aprendizagem da palavra escrita, que dá lugar a enunciação da palavra inconsciente.

Summary:

This article intends to discuss the learning disturbances more commonly identified the children and adolescents guided by professionals of the teaching and of the health for clinical attendance.

The therapeutic space has been revealing a space of reception of the unconscious anguishes that impede the healthy to symbolize of the object, object of the writing / object of the desire, for the subject with problems of learning of the language writing.

The therapist has been that whose to look at, through the process diagnosis, allows to see the sign of the subjective demand that she appears under the symptom form, could act in way to favor the elaboration of the unconscious conflict that impedes the normal learning.

In that sense the establishment of the existent differences fits among constructive mistake, as mistake that allows the appropriation of the knowledge object and symptom, while moment of stop of the learning of the word writing, that gives place the enunciation of the unconscious word.

 

Palavras - chaves: Distúrbios de aprendizagem, Psicanálise, Aprendizagem, Escrita, Símbolo

Key words: Learning disturbances, Psychoanalysis, Learning, Writing, Symbol

 

1. Algumas indagações sobre distúrbios de aprendizagem

Passados mais de vinte anos trabalhando na clinica psicopedagógica com crianças e adolescentes que não aprendem a escrever, ou que, apesar da alfabetizadas apresentam muita dificuldade em produzir um texto coerente, trago algumas considerações, fruto de estudos e reflexões que buscam compreender os possíveis aspectos relacionados a essa dificuldade. Penso, desta maneira, contribuir para iluminar caminhos possíveis de serem trilhados por essas crianças que sofrem de um mal que as coloca à margem da sociedade, tirando-lhes a possibilidade de participar de seu destino e de fazer história.

Por outro lado, ouvindo professores da rede pública sobre o sentimento de fracasso que experimentam ao se depararem com o atual quadro da educação fundamental, que abriga nas últimas séries um número significativo de alunos analfabetos ou alfabetizados funcionais, eu questiono: porque na mesma classe, com o mesmo professor bem ou mal preparado, com a mesma situação social, econômica e familiar difícil, existem alunos que aprendem a ler e escrever ao lado daqueles que falham? O que os diferencia?

Essa não é uma situação restrita ao Brasil, nem tampouco uma indagação cuja resposta já esteja solucionada. Pelo contrário, são inúmeros os pesquisadores que tem se ocupado dessa questão.

...a elevada procura de atendimento para problemas escolares na área da saúde mental, fenômeno que parece ocorrer em diversos países da América Latina, impõe a necessidade de aprofundamento na detecção de características dos problemas apresentados por esse contingente de crianças encaminhadas com queixa de aprendizagem, de tal forma que permita levantar os indicadores específicos para cuidados psicológicos e diferenciar, para fins de tratamento, possíveis quadros clínicos associados à dificuldade de aprendizado.

( MATURANO,1993:36)

Ao controlarmos as variáveis sociais e econômicas por semelhança, temos Fernandéz (1989) pontuando aspectos presentes em cada aprendizagem: o organismo, a inteligência, o corpo e o desejo.

A aprendizagem é uma construção individual, interna, produto da própria natureza, da herança genética e biológica mais o condicionamento do meio ambiente que o rodeia. Entretanto, por ser específica de cada um, realiza-se através do corpo num processo histórico, pessoal e social.. Dentro desse diacronismo existe um corpo, em sua instância orgânica, fecundado pela significação simbólica. O desenvolvimento cognitivo e afetivo são as duas faces do desenvolvimento intelectual. Toda conduta estará implicada por estes dois aspectos sobre uma base de motivações inconscientes.

Por conta disso estaremos considerando o processo de aprendizagem numa perspectiva da epistemologia genética e da psicanálise por entendermos que estes dois referenciais teóricos podem lançar alguma luz sobre as questões que nos intrigam. A epistemologia genética trata da gênese do conhecimento, das questões relacionadas ao cognitivo, busca delimitar o que é comum a todos os seres humanos no processo psicológico de construção do conhecimento.

Para iluminar o sujeito epistêmico de forma a particularizá-lo, focando o sujeito particular, vamos trazer as questões da psicanálise que se interessa pelo que é específico, particular nesse sujeito, constituído na relação com os pais, através de sua história de vida.

2. Revisitando a literatura especializada:

A questão do fracasso escolar se define pela aprendizagem da leitura e da escrita. Inúmeras pesquisas vem se ocupando dessa aprendizagem específica e podem ser classificadas em quatro níveis:

Vários trabalhos buscam estudar a relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita.

Capovilla 1 (1999) considera importante da rota fonológica nos estágios iniciais da alfabetização e demonstra que o fornecimento de instruções fônicas explícitas às crianças facilita a aquisição da leitura e da escrita.

Maluf et col. 2 (1997) encontraram correlação positiva significativa entre os níveis de consciência fonológica e aquisição da língua escrita independentemente do sexo e idade dos sujeitos.

Gesueli 3 (1994) ao estudar o processo de alfabetização de crianças surdas cuja fala não estava desenvolvida, contraria a tese da relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita na medida em que verifica a capacidade dessas crianças de pensarem sobre a escrita, levantando hipóteses muitas vezes semelhantes àquelas observadas em crianças ouvintes. O trabalho sugeriu que através da escrita o sujeito pode chegar à fala.

Cunha 4 (1990) verifica junto a 120 sujeitos da série inicial do ensino fundamental que as variáveis mais importantes para a aprendizagem da leitura e da escrita são o desenvolvimento conceitual e psicomotor por servirem de mediadoras das variáveis externas necessárias às atividades de representação.

Giusta 5 (1990) ao investigar as relações entre processos cognitivos e fracasso escolar observa que os conteúdos desenvolvidos na série inicial do ensino fundamental pressupõem a posse, pelos alunos, de uma série de habilidades mentais, conservação de quantidades, classificação e seriação, sem oferecer os meios necessários ao exercício do processo de abstração reflexiva.

Pires 6 (1988) pesquisando as relações entre o acesso às estruturas operatórias concretas e o desempenho das crianças nas atividades de leitura/escrita verificou que o êxito nessa aprendizagem está associado ao progresso revelado pelos sujeitos no desenvolvimento das operações de classificação realizando a hierarquia inclusiva.

Tiosso 7 (1989) verifica junto a 19 sujeitos com dificuldades de aprendizagem da leitura e escrita que a habilidade perceptivo-motora revela-se comprometida em função da presença de conflitos na dinâmica pessoal e familiar.

Ide 8 (1990), ao analisar o desenvolvimento da escrita por sujeitos de uma classe especial coloca o papel do professor como peça fundamental do processo, considerando as relações intersubjetivas dos envolvidos.

Bezerra 9 (1990) confirma a importância da relação professor/aluno no processo de construção da escrita pela criança que desempenha um papel no jogo da construção do saber mediado pelo mestre, possibilitando a ambos se conceberem a si e ao outro como sujeito.

Fonseca 10 (1996) realizou estudo dos efeitos da não aquisição da linguagem verbal sobre a realidade psíquica utilizando material analítico de uma criança de seis anos portadora de deficiência auditiva congênita. Concluíram que o acesso à linguagem escrita permitiu um incremento nas funções do pensamento e da simbolização, levando à reorganização do mundo interno.

Priszkulnik 11 (1993) analisa o distúrbio psicomotor na aquisição da linguagem escrita, apresentado por crianças com inteligência normal, ou até superior. Articula o conceito de distúrbio motor e psicanálise e concebe a dislexia-disortografia enquanto sintoma de transtornos maiores da vida da criança, sintoma com valor de linguagem, segundo formulações lacanianas.

Duas questões principais têm chamado minha atenção pela presença constante naqueles que buscam o atendimento psicopedagógico : a primeira delas diz respeito a dificuldades da ordem da comunicação, basicamente na fala e na escrita. Já a segunda indica um comprometimento significativo na formação da imagem corporal.12 A compreensão e a articulação destas duas questões remete ao desenvolvimento do sujeito humano decorrente da qualidade da relação estabelecida entre mãe e bebê desde a concepção, ao nascimento, até a mediação realizada pela mãe de todo o processo de castração vivenciado pela criança.

Acredito, portanto, que os distúrbios de aprendizagem cujo sintoma mais comum está relacionado à escrita, sejam decorrentes de dificuldades de sublimações das castrações humanizantes.

...os signos representativos dos fonemas – a escrita, a leitura -, os signos que representam os números, são sublimações, ou seja, fruto de todas as castrações anteriores e que assumem seu sentido na orientação do menino e da menina para uma vida genital futura, esperada como uma promessa e preparada pelo prazer de adquirir conhecimentos e poderes, técnicas... (DOLTO, 1984:60)

Quando um paciente apresenta problemas de aprendizagem relacionados à escrita e procura ajuda psicopedagógica trazendo consigo a queixa de que come letras, troca letras, é necessário que se verifique se estamos diante de um erro construtivo, isto é, se essa produção é fruto do sujeito genérico e portanto, é constitutiva do processo, ou se estamos diante de um sintoma.

 

2. O significado do sintoma

Em psicanálise o conceito de sintoma, como outros, foi sendo elaborado em diferentes momentos, portanto não pode ser conceituado de uma única forma .Para a maior compreensão desse conceito temos que nos reportar a diferentes momentos de articulação teórica pois entendendo sintoma como manifestação de um conflito fica claro que a sua evolução está relacionada às modificações conceituais de conflito e por isso abordaremos cinco momentos básicos de diferentes concepções.

Inicialmente verificamos em Freud, na obra Estudos sobre a histeria (1893) uma concepção traumática de sintoma que é entendido como

...expressão indireta da representação com seu afeto concomitante, proveniente da experiência traumática e retidos, por intoleráveis, no plano inconsciente. (FREUD,1983 )

Nessa concepção o sintoma remete a uma recordação traumática e, portanto, desaparece quando a correspondente recordação traumática é devidamente recuperada e verbalizada.

Num momento seguinte vamos encontrar em Projeto de uma psicologia para neurologistas (1895) uma concepção de sintoma físico-energética definida por Freud como :

Transformação direta da tensão física em fenômenos de ansiedade (FREUD,1895)

O sintoma é entendido como resultante de uma acumulação física de exitação, de tensão sexual, que não é descarregada adequadamente.

Em suas últimas elaborações da obra Estudos sobre a histeria, em 1895, Freud entende o sintoma como

...consequência da tensão criada por uma energia sexual psíquica que não pode ser adequadamente descarregada (FREUD,1995)

A partir de Homem dos lobos, em 1918 sintoma é entendido como:

A expressão de uma fantasia inconsciente do indivíduo enfermo e de uma situação de conflito entre forças opostas de seu próprio mundo fantasmático reprimido. (FREUD,1918)

Finalmente, em A interpretação dos sonhos , em 1900, a definição que o autor dá é a seguinte:

O sintoma é a expressão simbólica de um conflito psíquico entre tendências contraditórias incompatíveis entre si. (FREUD,1900)

Apesar de existir diferentes momentos na evolução do conceito de sintoma, em todos eles as características essenciais não mudaram. As constantes através das diferentes concepções de sintoma são a etiologia sexual e a origem traumática. Todo sintoma tende a um fim: a realização simbolicamente disfarçada de um desejo

Vamos considerar sintoma, neste trabalho, como sendo o sinal de um conflito inconsciente, um descompasso entre a demanda subjetiva e a produção objetiva. Nesse sentido, muito próximo da perspectiva médica, o sintoma não é a doença em si, mas mostra um desequilíbrio entre organismo e subjetividade. O sintoma indica a direção do desejo, é a resposta do ego diante da ameaça da ocorrência de uma situação traumática, de uma situação interna de perigo, envolvendo a perda ou separação do objeto amado, a possibilidade de desamparo decorrente de um acúmulo de desejos insatisfatórios.

Desta forma, não tratamos do sintoma, do problema de aprendizagem, mas buscamos interpretar esse sinal, descobrir seu significado metafórico, identificando a situação traumática que se esconde por trás do simbólico. O sintoma é percebido então no seu aspecto positivo, um pedido de socorro, que denuncia um conflito que o sujeito, conscientemente, não pode exteriorizar. Caberá ao psicopedagogo, enquanto orientador do processo terapêutico, garantir o espaço para a manifestação simbólica dos significados resguardados no inconsciente, bem como identificar a lógica que mobiliza a formação da estrutura sintomática enquanto linguagem.

3. A linguagem como sintoma: a elaboração da castração

Partindo da hipótese apresentada de que a origem dos distúrbios relacionados à escrita em crianças eutrópicas tem origem em confitos inconscientes, da ordem do processo de castração mal elaborados, vamos resgatar, a seguir, algumas questões teóricas que permitam explicitar a lógica implícita nessa afirmação.

3.1. A perda estruturante

Ao nascer vivenciamos a inauguração do processo de castração, que para Lacan configura-se no processo de separação mãe/criança, no corte produzido por um ato que cinde o vínculo imaginário e narcísico entre a mãe e o filho. A elaboração adequada das perdas vivenciadas como conflitos inconscientes permitirá a instalação da capacidade simbólica inserindo a criança na cultura humana.

O ser humano nasce para aprender a conviver com a perda, com a consciência de sua incompletude e insignificância . A ilusão de onipotência sofre um rude golpe com a perda do paraíso, com a perda do útero materno, lugar em que as nescessidades são satisfeitas antes mesmo serem percebidas.

O paraíso é aqui entendido como um estado de plenitude, em que o sujeito, por ter suas necessidades humanas prontamente satisfeitas, não experiencia frustrações. Ao ser expulso do paraíso, isto é, do útero materno, se dá conta de sua real humanidade e busca o retorno àquela sensação de plenitude, instalando-se aí a possibilidade de aprender. Iniciam-se as inscrições primordiais que vão possibilitar o recortar o corpo da criança, provocando o registro de uma falta, um lugar para falar.

É a linguagem, portanto, que simboliza a castração do nascimento, que denominamos castração umbilical; esta linguagem vai repetidamente marcar a audição do bebê como o efeito de seu ser no impacto emocional de seus pais, ao nível das sílabas sonoras, das modulações e dos afetos que ele percebe de maneira intuitiva, sem que saibamos exatamente como pode percebê-los. É como se todos esses afetos acompanhados de fonemas encarnassem um modo primeiro de ser narcísico. ( DOLTO, 1984:75)

A falta do útero materno é preenchida pelo seio que, inicialmente alucinado, vem satisfazer o desejo, tomando o lugar do objeto. O aleitamento é a ocasião de um contato estreito entre a mãe e o bebê, ao mesmo tempo físico e afetivo, que adiciona à satisfação da necessidade oral diversas outras sensações de prazer. É nessa ocasião, igualmente, através das manipulações de que é objeto, que chegam ao lactente as primeiras mensagens através das quais sentirá a disposição amorosa, hostil ou angustiosa da mãe. Porém, por mais amorosa que seja a mãe, o seio não será somente fonte de satisfação mas também de privação suscitando não somente a beatitude da saciedade, mas também o sofrimento, a decepção e a raiva quando a mãe tarda a aplacar a fome do filho, pois o seio, fonte de gozo, não faz parte do corpo infantil, não existe para a sua satisfação, remete ao outro.

A perda do seio, o desmame, é o momento em que o pai, invade o espaço simbiótico mãe/bebê, quebrando o vínculo primário. O pai, terceiro elemento, significa para a mãe que ela, ao ter o filho, não tem o falo, ao mesmo tempo em que sinaliza para o filho que ele não é o falo- desejo da mãe. Acontece aí uma castração recíproca, castração simbolígena conforme Dolto (1984), pois a partir da separação corporal mãe/bebê, ambos deverão encontrar outros meios para a comunicação e o intercâmbio de prazer, diferente do corpo a corpo vivenciado até então. Surge, nesse hiato corporal, nesse recorte, nessa outra inscrição, a palavra que humaniza a angústia difusa sentida pelo bebê, ampliando-se a possibilidade simbólica. A palavra, tornada possível pelo Nome do Pai, passa a ser, então, a retomada do vínculo mãe/criança nesse nível reparador de substituição do objeto perdido. Essa mesma palavra, posteriormente, deixa de ser apenas enunciada e, favorecida pela sublimação, passa para o registro gráfico, a escrita.

Para Lacan, o inconsciente se estrutura como uma linguagem e se manifesta na língua falada pela mãe: a língua da pele, de tudo que é relativo ao corpo, denominada alingua. Nesse sentido a escrita tem mais afinidade com alingua como estrutura carregada de sentido, do que com a lingua.

3.2. A perda de si mesmo

Posteriormente a criança se encontra no espelho, na visão especular do outro se percebe inteira, porém finita, aquilo que não é, suas limitações e possibilidades. Eu, separado do outro, fruto de um desejo que não é satisfeito, que se frustra; e na frustração se realiza, incompleta, castrada.

É apenas a experiência do espelho que dá a criança o choque de captar que sua imagem do corpo não era suficiente para corresponder, para os outros, a seu ser conhecido por eles. Portanto ela não é total...Essa ferida irremediável da experiência do espelho pode ser denominada por nós de buraco simbólico, do qual decorre para todos nós, a inadaptação da imagem do corpo e do esquema corporal – da qual numerosos sintomas visarão, doravante, reparar o irreparável estrago narcísico. (DOLTO, 1984:124)

Estaremos considerando a fase do espelho como um momento de castração por entendermos, em concordância com Dolto (1984), que o corpo que sofre o impacto do espelho não é despedaçado e fragmentado, conforme Lacan, (1966) e sim um corpo coeso e contínuo, graças às referências vicerais vivenciadas desde o nascimento, da castração umbilical. Mas exatamente por ser coeso, suporte do narcisismo primário, o bebê imagina seu corpo pleno de possibilidades, não recortado, passível de corresponder ao desejo do outro e de si mesmo.

A importância desse momento está na importância da presença do outro que se reflete com a criança e dessa forma presta-se como referência tornando esta uma experiência simbólica da sua individuação, do cruzamento de seu esquema corporal com sua imagem do corpo inconsciente.

3.3. A perda do falo

Estaremos considerando falo, não como o equivalente ao órgão sexual masculino, mas enquanto elemento organizador da sexualidade humana, como representação psíquica inconsciente da completude, da onipotência.

Para Lacan, (1969) falo é uma entidade imaginária criada com a forma proeminente de um órgão pregnante, revestida pelo intenso amor narcísico da criança e pela extrema inquietação de vê-lo desaparecer.

O falo imaginário, enquanto objeto simbólico é destacável e metaforicamente permutável, podendo equivaler ao pênis, às fezes, ao presente, ao dinheiro, e assim sucessivamente, ao objeto de desejo sempre inatingível . A criança é o falo da mãe e ao ser castrada de ser o falo pode ter o falo sob a forma de troca simbólica.

Pensar psicanalíticamente a perda do falo remete pensar a castração. Conforme já foi colocado anteriormente, castração é entendida como o processo de separação mãe/criança, como um ato que impõe um limite simbólico e rompe a ilusão de onipotência do ser humano. Enquanto processo, a castração não se reduz a um único momento, mas designa uma série de experiências psíquicas inconscientes que se iniciam com o nascimento e chegam ao ápice com o complexo de Édipo.

O pai desempenha um papel primordial no desenrolar desse complexo como aquele que priva a mãe do seu objeto de desejo, o filho/falo, pois o desejo do filho é satisfazer o desejo da mãe, ele se identifica especularmente com o objeto de desejo da mãe.

O Nome do Pai surge então, mediado no discurso da mãe, ligado à enunciação da lei, como o pai proibidor, como aquele que ao castrar a mãe, desaloja a criança da posição de objeto metonímico.

Porém, ao se instalar como metáfora da lei, o pai se revela na sua potência como aquele que possui o que a mãe deseja e assim promove a identificação do filho com o ideal do eu. É o pai que tem e que promete para o futuro.

4. O inconsciente como linguagem e a escrita inconsciente

Para Lacan, o inconsciente se organiza como linguagem , não como sistema de comunicação, instrumento, mas como um sistema propriamente dito, isto é, uma articulação não biunívoca entre representante e representado. Essa posição reorganiza a forma de pensar a prática psicanalítica principalmente em relação à interpretação, à leitura das manifestações inconscientes na medida em que ilumina a palavra e a linguagem com a noção de significante (S1), a unidade da estrutura.

Se em Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise Lacan havia se ocupado da experiência analítica como o campo da palavra e da linguagem, é a partir de A instância da letra que aparece uma preocupação com a escrita. Para ele

...Letra é o suporte material que o discurso concreto toma da linguagem ... a estrutura essencialmente localizada do significante.( LACAN,1957/1966:495:496)

No seminário sobre A identificação, na aula de 10 de janeiro de 1962, Lacan se pergunta sobre a constituição da escrita e faz uma breve explanação sobre o surgimento de algumas letras do alfabeto hebreu, tais como aleph (À) que guarda estreita relação com a cabeça de um boi, relação que se mantém até hoje na letra A maiúscula. Conclui que a letra se constitui à partir do movimento de destruição do objeto pois

Si es del objeto que el trazo surge, es algo del objeto que el trazo retiene; justamente su unicidad. El borramiento, la destrucción absoluta de todas estas emergencias, de todos otros prolegómenos, de todos los otros apéndices, de todo lo que puede haber de ramificado, de palpitante, y bien, esa relación del objeto con el nacimiento de lo que se llama aquí el signo, en tanto nos interesa en el nacimiento del significante, es exactamente en torno a lo cual nos hemos detenido, y alredor de lo cual no sin promesas hemos hecho, si se puede decir, un descubrimiento, pues creo que se trata de uno, esta indicacion de que hay digamos en un tiempo, tiempo situable, históricamente definido, un momento donde algo esta allí para ser leído, leído con el lenguaje cuando aun no hay escritura...En el discurso analítico, se trata siempre de lo siguinte: a lo que se enuncia como significante se le da uma lectura diferente de lo que significa.(LACAN, ----)

A questão da letra é considerada, portanto, à partir da lógica funcional inconsciente que permite a articulação dos significantes entre si através de um duplo movimento: a metonímia cujo mecanismo garante, como numa cadeia, a ligação entre um significante e outro, de um elo com o outro; e a metáfora.

A metáfora é o mecanismo inconsciente que garante a substituição, que possibilita ao inconsciente se exteriorizar na forma de um significante – significante metafórico, a letra ou suas re/apresentações. Para Lacan

...eu não metaforizo a metáfora, nem metonimizo a metonínia para dizer que elas equivalem à condensação e deslocamento do inconsciente. Mas eu me desloco com o delocamento do real no simbólico, e eu me condenso para dar peso de meus símbolos no real, como convém para seguir o inconsciente no traço. ( LACAN, 1970:72 )

O inconsciente, nesse sentido, é um processo ativo que não para de se exteriorizar através de atos, acontecimentos ou palavras, como uma trama tecida pelo trabalho da repetição significante pois o duplo movimento de conexão e substituição dos significantes leva a estrutura a se atualizar ininterruptamente, isto é, a colocar permanentemente um de seus elementos na periferia, lugar periférico do Um, acontecimento originário.

O buraco deixado vazio pelo significante marginalizado – significante transformado em borda, em limite da estrutura – é uma falta inscrita na cadeia, uma falta que tem como efeito a mobilidade do conjunto. O Um existe e assim faz existir o conjunto, isto é, confere ao conjunto a continência necessária para manter uma cadeia coerente e estruturada. O conjunto se organiza como uma trama ligada, na qual falta um fio, o que provoca o furo, aquele que agora se converteu em borda. É preciso que algo esteja fora para que o restante se mantenha.

O furo é o lugar que o Um deixou de ocupar, a falta deixada pelo Um que saiu para tomar seu lugar no limite da rede. O furo permite a movimentação, a dinâmica, o deslocamento das unidades da rede e o Um garante a consistência do conjunto.

Assim a configuração estrutural do inconsciente remete a uma tríade: a existência, o furo e a consistência.

Metaforicamente podemos pensar o significante enquanto porta; se há uma porta é porque há um buraco, um furo. Somente no nível da escrita pode-se abrir ou fechar essa porta pois a letra é a instância material do significante. Neste sentido, a escrita é um sintoma e o sintoma é função do inconsciente, portanto, o inconsciente escreve.

5. A escrita inconsciente: uma leitura renovada do não/a prender

A criança chega ao mundo dependendo de um outro hierarquizado que codifique e decodifique sua demanda. A qualidade dessa relação será preponderante para a constituição da modalidade de aprendizagem. As experiências emocionais precoces, nas quais a relação com a mãe tem fundamental importância, influenciam a formação do pensamento nos processos de simbolização e discriminação da criança.

Qualquer que seja a mãe, o nascimento de uma criança nunca corresponde exatamente ao que ela espera. Depois da provação da gravidez e do parto, devia vir a compensação que faria dela uma mãe feliz. Ora, a ausência dessa compensação produz efeitos que vale a pena considerar, mesmo que pelo simples fato de nos introduzirem a uma outra ordem de questões ainda mais importantes. Pois pode acontecer que sejam as fantasias da mãe que orientam a criança para o seu destino. Mesmo nos casos em que entra em jogo um fator orgânico, a criança não tem que fazer face apenas a uma dificuldade inata, mas ainda à maneira como a mãe utiliza esse defeito num mundo fantasmático, que acaba por ser comum às duas. (MANNONI, 1963: 80)

A relação de dependência mãe/ bebê marcará a capacidade de aprender da criança, sua tolerância à frustração e sua matriz vincular. A estrutura vincular, proto-aprendizagem, possibilitará as primeiras experiências sociais constitutivas do sujeito com a negação do narcisismo primário. Em toda estrutura vincular sujeito e objeto interatuam realimentando-se mutuamente através de uma dimensão intra-subjetiva dotada de características determinadas pelo sentimento de gratificação ou frustração que acompanha a configuração inicial do vínculo, "bom" ou "mau". As relações intrasubjetivas condicionarão as características de aprendizagem da realidade, na medida em que se conformem num movimento dialético ou dilemático.

O pensamento inteligente é o substituto genético do desejo alucinatório e apenas o desejo coloca em funcionamento o aparelho mental. O desejo de conhecer instala-se, então, a partir da mãe.

"O ser humano aprende a conhecer somente através da relação com o semelhante. O interesse que se desperta na criança por conhecer sua mãe está de fato de que é simultaneamente seu primeiro objeto de satisfação, seu primeiro objeto hostil e sua única fonte de ajuda. Os complexos perceptivos que procedem deste ser humano serão novos e incomparáveis, como por exemplo, o são seus traços faciais... Outras percepções, como o movimento das mãos maternas, coincidirão com a lembrança da impressões similares de seu próprio corpo." (FREUD,1905)

Um corpo sobreinvestido ou um corpo desinvestido pouco pode aprender. Sabemos além disso, que no aprender se joga a triangularidade do primeiro momento, pai, mãe e filho, que posteriormente se reeditará em docente, aluno e objeto de conhecimento.

O desejo é o combustível necessário à aprendizagem, entretanto, para proteção das dores internas a energia necessária a uma aprendizagem específica, como a escrita, pode se mobilizar contra os processos intelectuais, mobilizando mecanismos de defesa, na forma de "contra inteligência", provocando o aparecimento do déficit intelectual. As funções intelectuais como percepção, memorização, concentração etc., sofrem a ação de mecanismos defensivos, negação e racionalização entre outros, em prejuízo do desenvolvimento cognitivo e afetivo. Nesse caso o distúrbio de aprendizagem pode se instalar à partir dessa dinâmica trazendo junto a necessidade de ser não apenas identificado mas interpretado como manifestação inconsciente.

Retornando ao questionamento central deste artigo, podemos considerar o trocar letras, o omitir letras, significante inconsciente de palavras, ações, produções imaginárias de um sujeito particular, aparecendo como um sinal de conflitos inconscientes mal elaborados. A letra surge para fixar uma diferença irredutível entre o corpo, enquanto unidade, e zonas específicas desse corpo, as zonas erógemas, pois diferentemente do significante que se define apenas por relação diferencial a outros, a letra aponta para o caráter do significante em seu aspecto real, isto é, fixação de uma inscrição que oferece o corpo, estrutura real, ao objeto como usufruto, através de um valor comum: o falo como referência.

Dessa forma, podemos inferir que, o que não está se dando de forma normal no desenvolvimento da criança, o que emperra a aprendizagem da escrita por ser esta o objeto de enunciação mais eloquente de suas angústias, é a dificuldade de simbolizar conflitos inconscientes relacionados à separação/ individuação, desde a castração, enquanto processo de perda do ventre, do seio, do falo.

A criança é aqui uma simples causa e um simples efeito da angústia que tendo potencial não se elabora, não se resignifica, descobrindo o sintoma, emblema da neurose. A criança escreve um erro, um equívoco, transformando a escrita num traço que fala de suas perdas, pois a escrita se constitui à partir do desaparecimento do objeto, existindo uma relação entre a linguagem e o real que se perde . O problema de aprendizagem-sintoma constitui-se, então, como uma linguagem cifrada utilizada pelo sujeito para falar daquilo que, de outra forma, não pode ser dito. A leitura, na visão lacaniana, seria o eco existente entre objeto perdido e a letra constituída, o espaço entre uma coisa e a outra.

Pensa-se então, não em crianças psicóticas, mas em crianças neuróticas normais que sentem dificuldades em tolerar frustrações, em abandonar o objeto perdido.

Notas

1 CAPOVILLA, ªG.S; (1999) Leitura, escrita e consciência fonológica: desenvolvimento, intercorrelações e intervenções Tese de Doutorado, IP/USP

2 MALUF, M.R; BARRERA,S.D; Consciência fonológica e linguagem escrita em pré-escolares. Psicologia Reflexiva crítica; 10 (!):125-45,1997.

3 GESUELI, Z.M; A criança surda e o processo de aquisição da escrita Revista Pró-fono; 6(2):26-30,set.1994.

4 CUNHA, M.F.P.C. da; (1990) Desenvolvimento psicomotor e cognitivo: influência na alfabetização de crianças de baixa renda , Tese de Doutorado, IP/USP.

5 GIUSTA, A S; (1990) Processo de cognição e fracasso escolar . Tese de Doutorado, IP/USP.

6 PIRES, Y.M.C; O desenvolvimento de estruturas operatórias concretas e a aprendizagem inicial da leitura/escrita em crianças de baixa renda Arquivo Brasileiro de Psicologia; 40 (2):63-72,abr.- jun. 1988.

7 TIOSSO, L.H; (1989) Dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita: uma visão multidisciplinar. Tese de Doutorado, IP/USP.

8 IDE, S.M;(1990) Construção da leitura e da escrita: proposta de intervenção em classe especial para deficientes mentais Tese de Doutorado, IP/USP.

9 BEZERRA, V.M.L; (1990) Alfabetização, relação professor/aluno e o fracasso na escola pública: uma perspectiva psicogenética Tese de Doutorado, IP/USP.

10 FONSECA,V.R.J.R.M; Amente sem palavras:relato da análise de uma criança surda. Revista brasileira de Psicanálise. 30 (3 ): 691-704,1996.

11 PRISZKULNIK, L; ( 1993) A criança e a psicanálise: uma (re)leitura da dislexia-disortografia . Tese de Doutorado, IP/USP

12 CUNHA, M.F.P.C. da; (1990) Desenvolvimento psicomotor e cognitivo: influência na alfabetização de crianças de baixa renda , tese de doutorado, IP/USP.

 

Referências Bibliográficas

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 24 - Diciembre 2007
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