Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O declínio da função paterna e a corrosão do carácter
Fabio Andrés Moraes Azeredo

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Introdução

O presente tema é um desdobramento da tese de doutorado que defendi em 2003, intitulada "Caráter e Contemporaneidade". Naquela ocasião, procurei fazer um recorte dentro do tema mais amplo e divulgado do declínio da função paterna e dos sintomas contemporâneos que daí decorrem. Senti-me instigado a responder, a partir da psicanálise, à pergunta do sociólogo americano Richard Sennett, quando questiona em seu livro "A Corrosão do Caráter", se ainda é possível que as pessoas desenvolvam o caráter pessoal em uma sociedade como a nossa, a do capitalismo avançado, cujo lema é "não há longo prazo". Sennett defendeu que o imediatismo corrói o caráter, pois este depende do longo prazo e da renúncia ao prazer imediato.

Com o declínio da tradição, a sociedade passa a ser regida cada vez menos pelo princípio da renúncia pulsional e cada vez mais pela busca do prazer imediato. Freud concordaria com Sennett, pois seu modelo de caráter também se baseava na renúncia pulsional. As histéricas, as crianças e os homossexuais sempre estiveram fora deste padrão. A histérica, eternamente condenada à inveja do pênis, era muitas vezes comparada por Freud às crianças, pois reivindicava e reclamava de modo inadequado frente às exigências da vida adulta. As crianças são descritas como aquelas que não possuíam caráter ainda. Assim, se a criança não é capaz de suplantar seu ego primário com um ego secundário, mais rígido e que tenha por função sufocar o primeiro, ela se tornará o degenerado, perverso, aquele que não se submete às exigências da vida mesmo quando adulto. Freud disse que a psicanálise nada pode fazer por esse tipo.

"Para que uma pessoa se submeta com proveito à psicanálise, são muitos os requisitos exigidos. (…) Cabe ainda exigir dela um certo grau de inteligência natural e de desenvolvimento ético; com pessoas sem nenhum valor, o médico logo perde o interesse que lhe permite aprofundar-se na vida anímica do doente. As malformações de caráter acentuadas, externam-se no tratamento como fontes de uma resistência difícil de superar."2

O caráter depende de dois mecanismos fundamentais, a sublimação e, especialmente, a formação reativa. Freud diz que os homossexuais escapam de ser degenerados somente por reconhecer naqueles uma grande capacidade sublimatória. Essa capacidade sublimatória compensa o prazer de órgão direto que eles mantêm na vida adulta.

As histéricas são capazes sim do mecanismo da formação reativa, mas só o utilizam de modo parcial, ao contrário do obsessivo, que faz deste mecanismo seu modo de existência.

O único que efetivamente renuncia é o neurótico obsessivo, via de regra o homem, que, por medo da castração, desenvolverá a consciência moral e se afastará de uma postura mais reivindicante de um prazer imediato. O superego, então, dá a medida do caráter. Já as meninas terão um caráter débil, dado que sua relação com o superego é também débil, pois não sofrem de temor à castração e sim de uma revolta com o fato de terem nascido desprovidas de pênis.

O esvaziamento da lógica fálico-edípica (MARQUES, 2004) resulta em um enfraquecimento do superego freudiano. O declínio da tradição representa o declínio do ideal paterno que sustentava o princípio do adiamento da satisfação pulsional. Assim, a pós-modernidade, com seu capitalismo avançado, promove a flexibilização dos vínculos, que mina o compromisso mútuo e a lealdade. Isso traz como efeito a corrosão do caráter e a constatação de que, em uma sociedade como a nossa, o caráter tende a diminuir gradualmente. Dentro da temática do declínio da função paterna, a corrosão do caráter se apresentaria como um de seus efeitos.

O negativismo das teorias sobre a pós-modernidade

Entendo que essa perspectiva nos mantêm atrelados a uma visão negativista de que a contemporaneidade nos promete, diante de um presente de incertezas, um futuro sombrio. A pós-modernidade se configura enquanto um desafio para a psicanálise, pondo em xeque alguns de seus eixos de sustentação fundamentais, mais particularmente o complexo de Édipo. Toda uma constelação de conceitos merece ser reavaliada em decorrência dessa fratura na espinha dorsal da psicanálise. Desde a questão diagnóstica à própria suposição de saber, o declínio da função paterna vai impondo revisões à psicanálise.

O problema, me parece, é que às vezes o desamparo que abate a técnica e a teoria psicanalíticas é depositado na conta dos sujeitos contemporâneos. O afastamento do Édipo é lido, via de regra, negativamente. São os sujeitos que estariam, graças ao declínio do nome-do-pai, cada vez mais numa horizontalidade imaginária, seriam sujeitos "desbussolados" (MILLER, 2004), ou pior, estaríamos condenados a um tempo em que a perversão é a norma social (MELMAN, 2003).

Ao invés de alternativas, o que mais se vê é uma retórica que acusa os pacientes de resistência, pela sua não-suposição de saber, em geral redobrando as teorias do nome-do-pai e denunciando a crescente inadequação destes pacientes ao dispositivo analítico. Quanto menos pai, mais caos, quanto menos simbólico, mais imaginário.

É claro que há movimentos que apontam para outra direção e não se tratam de movimentos isolados, como os Estados Gerais da Psicanálise deixam entrever. De fato, em um recente artigo, que seria mais um "texto-manifesto", justamente para a reunião convocatória dos "Estados Gerais da Psicanálise" - que pode ser tomada como uma problematização acerca do papel da psicanálise e do psicanalista hoje -, Joel Birman e Chaim Katz, chamam a atenção, entre outros pontos, para a refratariedade ao dispositivo analítico em tempos atuais.

"Considerando que, nos últimos anos, deu-se uma disseminação maciça dos relatos clínicos de reação terapêutica negativa como resistência à análise, é preciso repensar o próprio conceito de resistência e da questão da negatividade na Psicanálise. Qual o papel desempenhado pelas modalidades de escuta e pelas formas de intervenção do analista na promoção destas resistências opacas? Não seria necessário começar a supor que exista uma dimensão afirmativa do desejo nessas formas um tanto ou quanto torpes de existir, que se manifestam como supostas resistências e negatividade à análise? Devemos supor também que as tentativas de silenciamento do mal-estar, a que nos referimos acima, atingiram também a própria comunidade psicanalítica, que enrijeceu suas possibilidades de escuta e intervenção.

Isso se articula também com as questões colocadas hoje no que concerne ao gênero sexual e as novas modalidades de parentesco. Isto porque, por exemplo, o acasalamento gay e as demandas de legalidade jurídica das formas de filiação daí advindas questionam os modelos psicanalíticos sobre o casal parental ‘originário’ e o estatuto do complexo de Édipo. Reconhecer a legitimidade dessas demandas é compactuar com a perversão? Ou então, o reconhecimento destas exigiria de nossa parte, enquanto psicanalistas, repensar alguns de nossos modelos teóricos, considerando o impacto das novas formas de mal-estar? De qualquer maneira, é preciso que a comunidade analítica tenha a generosidade de saber que está diante de experiências absolutamente novas, que exigem novas reflexões e atos analíticos diferenciados." (BIRMAN e KATZ, 2003).

Então a refratariedade ao dispositivo analítico pode estar diretamente relacionada a uma escuta que tenta encaixar os sujeitos contemporâneos no modelo edípico. Não é à toa que os autores acima evocam o avanço do reconhecimento jurídico às novas formas de família, bem como às novas identidades de gênero. Será que a psicanálise, insistindo em partir do pai como significante ordenador e do psicanalista como eixo simbólico, está fadada a enxergar nos sujeitos contemporâneos apenas negatividades? Ou antes, será que o modelo da suposição de saber e do complexo edípico não deveria ser posto em suspenso, visto que não mais se aplica a todos os sujeitos?

É neste sentido que o conceito de caráter pôde ser instrumentalizado para oferecer uma alternativa à "crise da psicanálise", que vem se agravando e que culmina numa crise da interpretação. Assim, do ponto de vista da técnica, o estudo do caráter pode lançar alguma luz sobre um problema que tinha sido apontado por Reich nos anos 20, quando este rompe com Freud. A crítica de Reich se dirigia à ineficácia do método interpretativo baseado na associação-livre e nos conteúdos recalcados.

Reich criticava a clínica do sintoma, alegando que era necessário antes analisar as resistências do paciente. A forma com que o paciente se dirigia ao analista deveria ser levada em conta podendo se tornar prioritária em relação aos conteúdos recalcados. Em pouco tempo, porém, Reich (1933) vai além desta crítica inicial e, já rompido com Freud, funda uma terapêutica própria, onde a análise das resistências é a análise do caráter do paciente.

"Na literatura psicanalítica, não havia processos técnicos para vencer a superfície desse estado enrijecido. Era o caráter como um todo que resistia. Com esse critério, eu estava no limiar da análise do caráter. Aparentemente, a couraça do caráter era o mecanismo que prendia toda a energia." (REICH, [1933] 1992, p. 124).

Para ele as palavras tinham pouca eficácia sobre a libido represada do paciente. Ou seja, muito mais que o sintoma, o caráter seria a verdadeira fonte de retenção pulsional do sujeito: "onde, além dos sintomas neuróticos, se prende a energia sexual?" (REICH, [1933], 1992, p. 117).

Miller (1999b) retomou Reich para revalorizar a análise do caráter, detectando ali algo que considerou elucidativo para os impasses da clínica contemporânea. Segundo ele, Reich tocou a questão do real, ainda que "da má maneira", ou seja, ele teve o mérito de ir além da clínica do Édipo e do sintoma, mas o fez abandonando o campo do dito do paciente para elaborar uma técnica cada vez mais diretiva, o que teve como resultado a transferência negativa.

Com isso, mesmo que indiretamente, Miller acaba por admitir um excesso na formulação lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem e da primazia do simbólico. A crítica, porém, não se desenvolveu para muito além desse ponto, ficando encerrada numa "solução caseira", numa espécie de Lacan contra Lacan. 3

Permanecem intactas, portanto, as questões colocadas por Katz e Birman acerca de como fugir das perspectivas que insistem na negativização dos sujeitos que não mais supõem saber ao dispositivo edípico. Nesse sentido, procurei, então, mostrar que a perspectiva freudiana do caráter congela as mulheres e os homossexuais numa perspectiva negativizante, medidos pela sua defasagem em relação ao ideal de renuncia pulsional ao qual somente o neurótico obsessivo estaria plenamente adaptado.

Assim, se parece ser útil partir da revalorização que Miller faz da questão levantada por Reich, é preciso ir além desta interlocução interna ao campo da psicanálise lacaniana e abrir o diálogo com outros autores que se debruçam sobre esses impasses. Autores externos à psicanálise, mas que se dedicaram a criticá-la nos anos 60 e 70 também nos serão caros, afinal, hoje é inegável que eles anteciparam em algumas décadas a crise do modelo edípico e seu pacto com uma ideologia circunscrita historicamente no advento da burguesia.

Foi neste sentido que retomamos a questão do caráter. A clínica contemporânea e a análise do caráter têm em comum a preocupação com as limitações da técnica freudiana de interpretação. A interpretação que visa ao recalcado mostrava-se inoperante para os casos de pacientes refratários. A clínica contemporânea também enfrenta o problema de lidar com pacientes que não aderem às interpretações que supõe um sentido recalcado por trás do que se diz.

Um tipo de caráter pós-moderno

Retomei o texto de Freud de 1916 intitulado "Alguns tipos de caráter encontrados no tratamento analítico", onde são enfatizados três tipos de caráter: o das exceções, o dos fracassados pelo êxito e o dos criminosos pelo sentimento de culpa. Defendi que os dois últimos tipos são baseados no sentimento de culpa edípico. No exemplo dos fracassados, quando estes alcançam o êxito, não o suportam, se sabotam, sempre tendo como pano de fundo uma dívida simbólica com o pai. Os criminosos têm uma culpa anterior ao ato, tendo este a função de inscrevê-la no inconsciente. São sujeitos que darão um jeito de serem pegos, para que possam pagar pelo feito. O ato está vinculado, de saída, ao desejo inconsciente de punição. Em ambos os casos o sujeito se sente culpado em relação a esse Outro paterno e se inviabiliza em nome de uma dívida.

Já o tipo das exceções parece se destacar porque há, ao contrário dos outros dois, uma justificativa para que o sujeito possa gozar de uma posição privilegiada em relação à conformação da exigência pulsional ao princípio de realidade. Desta vez, a culpa é do Outro e não do sujeito. O exemplo de Freud é o do personagem Ricardo III de Shakespeare, que, por ter nascido desprovido de beleza, se dá o direito de ser uma exceção em relação às regras às quais estão submetidos os demais. Defendi que, com o avanço da "era dos direitos" (BOBBIO, 1987), esse tipo estaria em franco avanço, ao mesmo tempo em que, com o declínio da função paterna, os dois tipos edípicos acima descritos estariam em declínio.

O direito à exceção seria um tipo de caráter tipicamente pós-moderno. Por outro lado, esta leitura se complexifica na medida em que não seria correto considerar que se trata de um aumento da perversão. Trata-se antes de um discurso que se apóia em uma justificativa, em um direito que é legitimado e ratificado pelos movimentos de lutas sociais. Freud, em seu tempo, comparou esse tipo às mulheres, universalmente lesadas, eternamente reivindicantes. Acreditamos que os tempos em que vivemos não podem simplesmente ser considerados como um declínio da cultura e um aumento da barbárie.

No final das contas, uma boa parcela da psicanálise, especialmente a lacaniana, fica atrelada à oposição entre simbólico – leia-se nome-do-pai- e imaginário. Mesmo as perspectivas mais evoluídas, de um último Lacan (MILLER, 2001) onde os três registros- real, simbólico e imaginário- se equivaleriam, chegando até mesmo a uma "inversão de paradigma", se mostram tímidas. Não se ultrapassa uma clinica da suplência, na qual os pacientes contemporâneos, na ausência do nome-do-pai funcionando como operador fundamental da constituição subjetiva, não passam de "desbussolados" (MILLER, 2004).

Notas

2 FREUD, 1989 [1976], Vol. VII (1904), p. 237.

3 Refiro-me aqui aos recentes textos de Miller em que opõe um primeiro Lacan, situado entre o primeiro e o décimo seminário de Lacan, e um último Lacan, que apontaria para uma perspectiva onde o simbólico não seria mais hegemônico em relação aos outros dois eixos, o imaginário e o real. Ver Miller, 1999b e 2002

 

Bibliografia

AZEREDO, Fabio (2003). Caráter e Contemporaneidade, , Tese de Doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Rio de Janeiro.

BIRMAN, Joel e KATZ, Chaim. (2003) Comentários Críticos Sobre a Convocatória dos II Estados Gerais da Psicanálise, In: artigo publicado no site dos Estados Gerais da Psicanálise, www.estadosgerais.org, janeiro de 2003.

BIRMAN, Joel. (2002) O Cuidado de Si no Futuro da Psicanálise, in: ALONSO, A. e ARAÚJO, R. (Orgs.) O Futuro da Psicanálise, Ed. Contracapa/Rios Ambiciosos, Rio de Janeiro, RJ., 2002.(Esse artigo é a transcrição da conferência proferida para o Congresso homônimo do livro em junho de 2000).

BOBBIO, Norberto (1990), A Era dos Direitos, R.J., Ed. Campus, 1992.

FREUD, Sigmund. (1976) Caráter e Erotismo Anal (1908), in: E.S.B., volume IX, Ed. Imago, Rio de Janeiro, RJ.

_________. (1969) A Disposição à Neurose Obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose (1913), in: E.S.B., volume XII, Ed. Imago, Rio de Janeiro, RJ.

_________. (1974) Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico (1916), in: E.S.B., volume XIV, Ed. Imago, Rio de Janeiro, RJ.

_________. (1976) As Transformações Exemplificadas do Erotismo Anal (1917), in: E.S.B., volume XVII, Ed. Imago, Rio de Janeiro, RJ.

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MARQUES, Lícia. Novas Elaborações Psicanalíticas Sobre a Sexualidade Feminina a Partir do Declínio da Lógica Fálico-Edípica. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica, PUC (RJ), 2004.

MELMAN, Charles. O Homem sem Gravidade, Ed Companhia de Freud, RJ, 2003.

MILLER, Jacques-Alain. (1999a) A Experiência do Real no Tratamento Analítico, transcrição do seminário de 1998/1999, Escola Brasileira de Psicanálise-SP, (Mimeo) inédito.

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Número 24 - Diciembre 2007
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