Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A epistemología psicanalítica da transferencia: uma abordagem hermenèutica de viés educacional
Andrea Kochann

Imprimir página

"A essência do humano é a possibilidade de estabelecer relações,
ou melhor, a essência, a característica do ser,
é a possibilidade de estabelecer relações."
Vera Felicidade Campos

Falar do homem é falar de um ser único e multidimensional, cuja essência está naquilo que o diferencia dos demais animais. Sua superioridade se dá não apenas pelo polegar opositor e telencéfalo desenvolvido, mas também pelo fato de possuir uma linguagem específica, cuidados ‘quase eternos’ com sua prole, ter o trabalho como sua atividade por excelência, e principalmente, pela possibilidade e necessidade de estabelecer relações. Relações estas que ocorrem em maior ou menor grau, em diversos ambientes e nas mais variadas etapas da vida. O ser humano é um ser de relações.

Convém lembrar, que grande parte da vida do homem, devido a cultura ocidental, está enraizada na escola, através da educação sistematizada. Esse é o espaço propício para que as relações aconteçam. As principais relações no ambiente escolar são de aluno para aluno, de aluno para professor e vice-versa. Segundo Campos (2002, p. 18) "Para a psicanálise, o ser humano tem seu comportamento determinado pelas motivações inconscientes e isso fundamenta seus relacionamentos.".

Quando da possibilidade de relações é porque ambos se permitiram relacionar, aceitaram o Outro como sendo o Eu, possibilitando o encontro de sentimentos e vivências com um só objetivo: compreenderem-se, aceitando-se. Neste contexto ocorre a transferência nas relações.

No âmbito educacional é freqüente a abordagem psicanalítica da transferência entre professor e aluno. Para Freud, pai da Psicanálise, esse fenômeno é inconsciente e ocorre em todas as relações, conforme aponta Couto (2003, p. 81) "O fenômeno transferencial revela-se, portanto, como geral e inevitável, repetindo-se em todas as relações intersubjetivas e, consequentemente, também na relação educativa". A autora ainda cita Freud, que alegava

... a transferência é uma repetição, um fragmento do passado esquecido. Na transferência ocorre a repetição de protótipos infantis. Mas, essa repetição não é uma reprodução de situações reais vividas pelo sujeito; corresponde a equivalentes simbólicos do desejo inconsciente. Não é uma repetição do mesmo, mas uma repetição diferencial... (Idem, p.78)

Dessa forma, pode-se apontar que o aluno transfere inconscientemente seus desejos infantis para seu professor. E como resposta à transferência, ocorre a contratransferência. Perante a teoria psicanalítica o movimento da contratransferência é um processo interno que surge no professor como resultado das influências transferenciais do aluno sobre seus próprios sentimentos. Concomitante a esta troca inconsciente de relações e desejos é que acontece o processo ensino-aprendizagem.

Freud aponta a importância das relações de um discípulo com seu mestre, alicerçando a idéia de transferência e contratransferência. Para Kupfer (2000, p.23) "A idéia básica é de que os professores herdam as inclinações carinhosas ou agressivas antes dirigidas aos pais. É legítimo, então, ver as relações de Freud com seus mestres à luz das suas relações com o pai.". É interessante ressaltar que a transferência ocorreu em Freud de duas maneiras diferenciadas. Uma, enquanto ele discípulo para com seus mestres e a outra, ele enquanto mestre para com seus discípulos.

Freud teve vários mestres, pelos quais foi seduzido e manteve o movimento transferencial. Um deles foi Charcot, sobre quem afirmava que "O mestre discutia sempre nossas objeções com tanto paciência e amabilidade como com decisão.", segundo Kupfer (2000, p. 24). Provavelmente as características do mestre Charcot lhe eram associadas inconscientemente a ações desejadas ou realizadas pelos seus pais, pois Freud afirmava que os professores eram vistos pela transferência como substitutos da figura paterna.

Quanto a relação transferencial de mestre com seus discípulos, Kupfer aponta que Freud "... viveu com seus discípulos uma relação de intensidade mortal - seja ela real, seja ela simbólica, (...). Essa força de atração, que entre Freud e seus discípulos circulou com intensidade máxima, foi objeto de estudos do próprio Freud. A essa força, Freud chamou de transferência.", (Idem, p.31).

Deve-se levar em consideração que o processo transferencial não se dá apenas com a intenção de reeditar fantasias infantis, mas também como Ideal-do-Eu, pois o professor é colocado como modelo a se seguido, onde o aluno idealiza o seu professor como sendo o seu Eu. Outro olhar para a transferência está associada ao poder. O professor tem poder porque tem saber. Assim, se o aluno quer ter o poder como o professor, precisa ter o saber e ao ver o brilho no olhar do professor, o aluno sente prazer e quer o saber. Para Gutierra (2003, p. 87)

... é preciso estar na posição paradoxal de ser um sujeito em falta para que o desejo de saber do aluno possa circular e produzir seus efeitos. Pela transferência, o professor será usado pelo aluno como suporte para a construção de conhecimentos. Para isso, ele tem de suportar de uma forma contraditória o lugar em que é colocado na transferência – o de suposto saber – sem, entretanto, acreditar demais nisso, abrindo espaço para a fala e o saber do aluno.

Seja o movimento transferencial do discípulo/aluno para mestre/professor, ou vice-verso, o importante é perceber que há uma ação pedagógica. Sendo então, um ato intencional carregado de manifestações culturais que visam produzir ou reproduzir o sujeito de seu tempo.

É possível, ao voltar o olhar para trás, ver nas relações educativas escolares, um processo de angústia, medo, dor... muitas vezes perpetuadas pelos pais e professores, tidos por ‘pulso firme’, alicerçando uma sociedade carregada de medos e traumas. Hoje as relações no âmbito educacional tendem a ser de valorização do indivíduo, respeitando suas diferenças, com carinho e amor.

Dessa forma, para Ferreira (12004, p.34) "A transferência, compreendida como deslocamento das fantasias ligadas a impulsos sexuais recalcados, produz efeito desse deslocamento, o amor.". Confirmando a ligação de transferência com o amor, D’Andrea (2000, p.171) aponta que "A transferência é dita positiva quando o sujeito tem sentimentos positivos e espera receber amor por parte do objeto...".

Visto como no ‘setting clínico’, a transferência ocorre na sala de aula, onde o professor não transmite meramente o conhecimento teórico. Ao contrário de tempos anteriores onde o autoritarismo imperava, a sala de aula nos dias atuais passa a ser o palco das construções teóricas e transferenciais, alicerçadas na compreensão e no amor.

Assim, é notável dizer que as relações efetivadas entre os homens se alicerçam inconscientemente na transferência, sendo instituído neste momento o desejo de correspondência onde o Outro é tão importante quanto o Eu para a realização dos desejos infantis, ou Ideal-de-Eu, ou a busca pelo poder de saber. Segundo Lévinas apud Monteiro (2005, p.123) "O saber é uma relação do Próprio com o Outro onde o Outro se reduz ao Próprio e se despoja da sua alienidade, onde o pensamento se refere ao Outro, mas onde o Outro não é Outro enquanto tal, onde ele é já o Próprio, já meu."

Portanto, desde os primórdios dos tempos o homem busca se relacionar para se auto-afirmar no Outro. As relações transferenciais inconscientes sempre fizeram parte do universo humano e conforme a teoria freudiana se estabelecerá continuamente nos contatos do ser humano que busca seu reconhecimento no brilho do olhar do seu semelhante. Justificando-se assim, a necessidade de uma abordagem hermenêutica sobre a epistemologia psicanalítica da transferência de viés educacional.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, Vera Felicidade de Almeida. A questão do ser, do si mesmo e do eu . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

COUTO, Mª Joana de Brito D’Elboux. Psicanálise e educação: a sedução e a tarefa de educar. São Paulo: Avercamp, 2003.

D’ANDREA, Flávio Fortes. Desenvolvimento da personalidade. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

FERREIRA, Nádia P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

GUTIERRA, Beatriz Cauduro Cruz. Adolescência, psicanálise e educação: o mestre "possível" de adolescentes. São Paulo: Avercamp, 2003.

KUPFER, Maria Cristina. Freud e a educação: o mestre do impossível. 3ª ed. São Paulo: Scipione, 2000.

MONTEIRO, Jamar. Coletânea I. 3ª ed. Ampl. e atual. São Paulo: Intersubjetiva, 2005.

Volver al sumario del Número 24
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 24 - Noviembre 2007
www.acheronta.org