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Já antevejo um certo dardejar de alguns daqueles que porventura venham a ler esse texto. Não faz mal. De certa forma é a eles mesmos que me dirijo, e já seria um bom sinal se o que se segue os movimentasse no mínimo a defenderem-se e quem sabe até utopia que não me abandona reverem-se.
Há já algum tempo, venho colhendo da boca de alguns analistas, que o âmago do conceito de sujeito suposto saber baseia-se no depósito de saber que fazem seus analisantes àqueles que os escutam. Pergunto-me contudo, que novidade haveria em considerar as coisas dessa maneira e se, diante desse poder que lhes é outorgado, não se enganam e sucumbem mesmo que por instantes a tentação de apresentarem-se como sua efetiva morada?
Desde que o mundo é mundo um Outro é elencado a ocupar esse lugar. Talvez se deva a isso mesmo a invenção de um Deus e seus correligionários. Questão de estrutura que responde a uma necessidade lógica e aos anseios sempiternos da neurose onde ao-menos-um deve escapar ao destino da castração. A objeção, dirão imediatamente, pauta-se essencialmente na diferença do uso dessa transferência. Ao analista cabe não identificar-se com essa imputação de sabedoria, levando seu analisante a "descoberta" de que o Outro na verdade é partidário da mesma marca que carrega e o faz sofrer, o que grafamos A.
Dito dessa maneira só me resta consentir de bom grado a essas prerrogativas, mas inevitavelmente relança a pergunta anterior sob outra forma: o que é feito da letra lacaniana que estabelece reiteradamente que "um sujeito não supõe nada, é suposto". Lembremos! Quando Lacan estabelece o que chamará de pivô da transferência em 1967, escreve isso que pus entre aspas logo acima, acrescentando "suposto... pelo significante que o representa para outro significante". Mais tarde, por exemplo no seminário O Avesso da Psicanálise, já um pouco sem paciência pela insistência distorciva retomará da seguinte forma: "O que impressiona, com efeito, nessa instituição do discurso analítico que é a mola mestra da transferência, não é como alguns pensaram ter escutado de mim, que o analista, seja ele colocado na função de sujeito suposto saber. Se a palavra é tão livremente dada ao psicanalisante é porque se reconhece que ele pode falar como um mestre...".
E isso é assim porque, ao encadeamento pretensamente desordenado da cadeia significante que insiste em ultrapassar as intenções daquele que fala, um saber que não se sabe faz sua aparição. Por não corresponder às expectativas e por destronar o eu, um sujeito é suposto ordenar essa barafunda que leva o nome de inconsciente, mas que em si não é habitado por nenhum homúnculo ordeiro pois é puro corte, efeito mesmo de sermos seres falantes. Por isso mesmo, se se trata de indicar de que lado da partida esse sujeito aparece, não sobra dívidas de que o faz do lado do analisante e não do analista. Contudo o que surge lá indubitavelmente tende a passar para o outro lado, o que não deve causar-nos estranheza, pois é exatamente isso que relança o processo dialeticamente, pode-se dizer até sua extinção em termos à posteriori de artifício necessário a uma cura.
Esquematicamente com a cautela inevitável toda vez que esse termo entra em cena podemos distinguir da seguinte maneira esse processo, de uma forma que não elimine no todo a leitura do sujeito suposto saber a que nos referimos no início deste trabalho o que seria um despropósito mas, sobretudo sem relegar ao ostracismo o que Lacan nos traz de novo enquanto mola mestra da transferência o que seria um despautério. Vejamos o que daí surge.
Temos num primeiro momento um saber do tipo universitário imposto ao analista. Ele seria aquele que catedraticamente, sabe o que se passa com quem o procura. Esse ponto normalmente é necessário, caso contrário dificilmente alguém viria até nossos consultórios. Difícil mas não impossível. Num segundo tempo, e já disposto à regra fundamental da psicanálise, o analisante é surpreendido por um saber Outro oriundo de seu próprio discurso. Por lhe ser insuportável o agenciamento não voluntário desse saber, um sujeito é suposto controlar seus desígnios. Aqui surge o que podemos designar como terceiro tempo. Esse sujeito "novo", não raro toma forma na figura do analista. Mais precisamente, é sustentado graças a sua presença. O analista, recusando-se a ocupar esse lugar de Mestre demandado e prestando-se aos efeitos da transferência só faz lembrar pela interpretação, por exemplo que o sujeito é apenas resultado da disparidade, da heterotopia entre S1 e S2, e que o Outro, que o analista é chamado a encarar é barrado. Isso até que não seja mais necessário lembrá-lo, caindo aí como dejeto da operação.
Temos assim, tanto a suposição de saber quanto a de um sujeito a esse saber. Se é patente que Lacan não trata da primeira como forma primordial no conceito de sujeito suposto saber e enfatiza a segunda, a clínica nos demonstra que ambas concorrem para o estabelecimento, o desenrolar e o desenlace da transferência. Uma no campo eminentemente imaginário, a outra nas esferas simbólico-real.
O que não podemos é apagar uma em detrimento da outra, principalmente quando isso se veicula por razões de mero capricho ou é oriundo de divergências entre igrejinhas psicanalíticas. Aliás, nunca é tarde para relembrar. Isso seria condescender com o mecanismo típico do recalcamento que implica, como Freud tão bem demonstrou, o seu retorno. Onde fará a sua aparição é uma questão que vale a pena levar em consideração e verificar quais podem ser as conseqüências na direção de um tratamento.
Referências.
LACAN, Jacques. O Avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor, 1992, RJ.
LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967, In Outros Escritos. Jorge Zahar Editor, 2OO1, RJ.
FREUD, Sigmund. O Inconsciente. Imago Editora Ltda, 1976, RJ.