Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Do corpo como suporte da mensagem inconsciente ao corpo como real do sintoma
Márcia Zucchi

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O corpo entre a psicanálise e a cultura.

Numa olhada panorâmica, vemos que no início da história da psicanálise, as queixas dos pacientes que a ela recorriam – não sem antes haver percorrido, sem sucesso, o circuito dos gabinetes médicos – eram queixas referidas especialmente a afecções no corpo. A hipótese da conversão foi um dos fundamentos da teoria analítica e recobria grande parte dos casos iniciais relatados por Freud na década final do século XIX e início do século XX. A Psicanálise nasce dos limites da medicina anatomo-patológica frente a certos quadros, especialmente histéricos, cujo predomínio eram os sintomas físicos: dores, paralisias, cegueiras etc..., para os quais aquela medicina não encontrava respostas eficazes. Entre os anos 50 e 80 aproximadamente, as queixas parecem ter se deslocado para um campo que chamaremos o das emoções (mente, psiquismo). A psicanálise afasta-se da medicina e se aproxima mais de uma prática da psicologia propriamente dita. Paralelo ao fato de ser uma técnica terapêutica, se torna um método de "autoconhecimento". Dos anos 90 para cá, no entanto, parece ter havido um retorno da prevalência das queixas quanto ao corpo. Dores crônicas, falta de força para realizar os desafios que a vida contemporânea impõe -especialmente quanto ao trabalho-, compulsões as mais variadas, obesidade, anorexia, etc..., são os motivos mais diretos daqueles que buscam um psicanalista hoje. Paralelamente, proliferam na cultura os "regimes" de fortalecimento deste corpo afetado pela ameaça da debilidade, o que pode facilmente mascarar práticas de suplência sob a égide do "cuidado".

É preciso esclarecer em que diferem estes dois tempos da apresentação do corpo no dispositivo analítico. Por mais que a descrição dos fenômenos seja aparentemente a mesma, por mais que ao tomarmos a descrição freudiana das neurastenias e da neurose de angústia, elas pareçam descrever a maioria de nossos pacientes atuais com suas "depressões" e "pânicos", por mais que reconheçamos as reivindicações histéricas nas queixas atuais de fracasso ou impotência, ou, ainda que encontremos as marcas da obsessividade nas compulsões atuais, há diferenças clínicas importantes pois os sintomas do início da psicanálise e os de hoje se organizam em referência a um Outro de consistência bastante diversa.

A forma princeps de apresentação do sujeito hoje é através do corpo astênico. Nossa hipótese é de que a astenia é efeito da conjunção entre a inconsistência do Outro e a falta de referências fálicas capazes de ancorar os sujeitos em significações que o amparem frente ao "tudo é possível" vigente na cultura ocidental hipermoderna 2. Hipótese que se aproxima à de Ehrenberg quando afirma que o sujeito da contemporaneidade se vê compelido à responsabilidade e à iniciativa numa sociedade onde não vige mais a disciplina nem a hierarquia de pensamento, o que o leva à patologia da insuficiência.( EHRENBERG 2000)3.

Os excessos de investimentos sobre o corpo (tatuagem, piercing, plásticas, ginásticas, etc...) parecem ser para muitos, arranjos imaginários onde a sustentação simbólica é vacilante. Há como que um paroxismo do imaginário, e aqui se torna necessário distinguir a mera inflação imaginária, porém ainda balizada pelo simbólico, da tentativa de dar ao imaginário um estatuto simbólico. Neste último caso os arranjos com o corpo são suplências à falta do Nome-do-pai, enquanto que no caso anterior tratam-se de máscaras de elisão da castração.

A construção freudiana acerca do Édipo e da estruturação do sintoma neurótico, enquanto forma de apelo ao pai, demonstrava a tentativa de reação ao declínio desta função na cultura. Na contemporaneidade o Outro não é mais garantia de ideais coletivos. A face multifária do Outro se constitui como problema para os sujeitos que não encontram mais referências estáveis e de amplo espectro de validade (COELHO DOS SANTOS, 2001a, pp. 303-333). O Outro é local é ad hoc. Porém, como destacou Lacan no seminário O avesso da Psicanálise (LACAN, 1992, p.107), o grande risco da sobrevalorização dos ideais locais, o que rege as fratrias, é que estes aumentam as possibilidades de segregação. Uma conseqüência daí dedutível é a maior possibilidade de solidão e de desancoramento social dos sujeitos. Daí, mais uma vez, a necessidade do psicanalista ter instrumentos que lhe permitam uma clara distinção entre um desancoramento social e um desancoramento psicótico.

Embora o trabalho analítico se construa sobre o singular da subjetividade e não sobre o universal das práticas sociais, os significantes-mestres de cada um, os articulam, incluindo-os necessariamente ou na ordem neurótica ou psicótica. As subjetividades são sempre relativas a seu tempo, servem-se dos elementos da cultura e os arranjam conforme a estrutura.

Quanto ao corpo, o que estamos experimentando hoje é como um retorno do corpo ao dispositivo clínico do psicanalista. Tal retorno, porém, se faz numa certa descrença no poder da palavra. O corpo retorna aos nossos consultórios aparentemente mais mudo. Além disso, neste retorno, os analistas têm que se haver com um conjunto de saberes que se produziu na esteira deste processo cultural e que transformou o corpo na principal sede de consumo, na cultura ocidental pós-moderna. A satisfação no plano do corpo se transforma em mercadoria. Para seu desfrute se produzem desde os produtos de beleza até os de saúde. Porém como aprendemos com Freud e Lacan, nada mais familiar e mais estranho do que a experiência do próprio corpo. Sua natureza de imagem, de significante e de substância gozante, outra forma de dizer respectivamente da condição imaginária, simbólica e real do corpo, impedem que o abordemos de uma forma unívoca, a não ser pelo sintoma.

De qualquer modo, a psicanálise parece estar na contingência de fazer barreira às promessas de satisfação oriundas dessas práticas cuja finalidade parece ser a de dar sempre mais consistência imaginária ao corpo. As concepções psicanalíticas, sejam as da determinação simbólica do sujeito, sejam as da determinação real do falante, são antinômicas ao individualismo que impera na cultura ocidental .

Quando falamos hoje em "novos sintomas, parece que novos não são nem os sintomas, nem o sujeito. Novas são as faces do Outro. Sua característica de fluidez e inconsistência. Se por um lado, hoje, quase qualquer forma de gozo tem seu lócus de reconhecimento no Outro social, por outro, está aumentada a responsabilidade individual por cada modalidade de gozo. A responsabilidade e a solidão do sujeito em seu modo de gozo é hoje muito acentuada. Com isso é alto o risco de haver uma certa confusão entre a astenia frente ao imperativo de gozo e o desligamento psicótico do Outro. Daí a extrema dificuldade para se estabelecer a diferença entre depressões ou inibições neuróticas e as psicóticas. Uma das conseqüências dessa lógica segregativa é a criação das chamadas comunidades "monossintomáticas" 4, com a conseqüente transformação do sintoma de traço que particulariza ao traço que uniformiza e segrega.

 

O Corpo e o Sintoma

Jacques Alain Miller, em seu processo de leitura e transmissão da obra lacaniana, vem propondo a divisão de seu ensino em três grandes períodos. Um primeiro correspondendo à estrita retomada da obra freudiana sob a égide da lógica do significante, onde a palavra e a linguagem como material e método psicanalíticos são retomadas com todo vigor. Ali, a substituição significante corresponde à passagem do sujeito como objeto de desejo da mãe ao sujeito como metáfora do desejo paterno. Num segundo período Lacan formaliza sua teoria do objeto a homologando inconsciente e zona erógena (Seminário 11). Ali o estatuto da pulsão se modifica e a libido passa a exigir algo do corpo. Quando Lacan destaca a lógica do fantasma, o que nela se apresenta é a articulação interna entre significante e corpo, entre corpo mortificado pelo significante ($) e um resto de libido que escapa ao significante (a). Todavia Miller aponta um terceiro ensino que se abre com o Seminário 20, onde Lacan postula que o efeito do significante não é primariamente de mortificação do corpo, mas sim de causa de gozo."A mortificação tem como reverso a intensificação do gozo" . Sintoma (sinthome) é o aporte de gozo sobre o corpo, que traz o significante. E o que Miller enfatiza é que, nesta perspectiva, o sintoma é a conexão real entre significante e corpo. (MILLER 2001).

No primeiro ensino de Lacan o sintoma era entendido em sua natureza simbólica por excelência. Tanto se produz quanto se transforma obedecendo a leis de linguagem. Aquelas mesmas que Freud destacou quanto ao Inconsciente – deslocamento e condensação – que mais tarde, Lacan fará equivaler às operações lingüísticas da metonímia e da metáfora, respectivamente. A lógica subjacente à formação dos sintomas era compreendida como a de um compromisso entre o desejo sexual recalcado e sua possível satisfação. Assim, o sentido do sintoma seria sempre sexual. Seu conteúdo sempre simbólico. Nesses termos, os sintomas corporais nas neuroses, especialmente na histeria, mostravam como a anatomia podia submeter-se à lógica do sentido. A própria fisiologia, por vezes, poderia prestar-se à expressão de um sentido sexual. Todavia, quando Freud destaca da neurastenia a neurose de angustia - conjunto que compunha o que chamou de neuroses atuais – fez ver um corpo cujas afecções 5 embora ainda ligadas a conteudos sexuais, não estavam referidas a eventos passados, mas atuais. Um corpo, em princípio, não tratável pelo método psicanalítico vez que tais sintomas não procediam de nenhuma significação infantil a elucidar, mas de uma fonte somática e de um impedimento presente, real, atual, de sua satisfação. Freud destacou, porém, que "um sintoma da neurose atual é frequentemente o núcleo e o primeiro estádio de um sintoma psiconeurótico"(FREUD 1976 b, p.455). Parece importante retomar esta discussão já que o que se vem denominando como sintomas contemporâneos parecem implicar uma dinâmica semelhante à das neuroses atuais, isto é, um curto-circuito do plano simbólico, e uma exacerbação das relações entre os plano imaginário (imagem do corpo) e o real (gozo). Porém aqui, compreender esses sintomas requer a visada do último ensino onde o sintoma é pensado como resposta real do falante à inexistência da relação sexual. Dito de outro modo: como amarração singular dos registros imaginário, simbólico e real, menos apoiada no Nome do pai como signo de uma tradição e mais como tratamento possível da inconsistência do Outro.

Retornando à noção de sintoma em Lacan, vê-se que em grande parte de seu ensino, esta concepção esteve ligada à prevalência do simbólico, à primazia do significante. A linguagem prévia ao sujeito conformava toda experiência corporal ao que pudesse ser recoberto pelo significante. A experiência do corpo ou era tomada em sua vertente de imagem, ou como significante. O sintoma como produção de linguagem teria primazia sobre a satisfação pulsional (corpo) que ele representava. A satisfação buscada pelo sintoma estaria, primeiro, no deciframento das moções corporais bem como no seu reconhecimento pelo Outro, e, mais tarde, na cifragem do excedente pulsional, restringindo-o ou inscrevendo-o no plano do significante. É o que se pode ver nos dois termos da formulação lacaniana do fantasma, o vivo humano nas duas faces em que pode se apreende-lo: como sujeito do significante e como objeto mais-de-gozar (COELHO DOS SANTOS, 2002 a, pp. 158-160). Porém, como lembra Miller o sujeito barrado, sujeito de pura lógica se mantém perfeitamente fora do corpo vivo, o que implica dizer que o sujeito afetado pelo inconsciente é mais do que só um sujeito do significante. É necessário tomar o significante em uma dupla vertente para que se possa captar simultaneamente sua potência simbólica de substituir o experienciado pelo símbolo, como também de engendrar a própria experiência. O significante tem efeito de significado mas também "afeta" o corpo. " É preciso dar a esse termo "afetar" toda sua generalidade. Trata-se do que vem perturbar, deixar traços no corpo. O efeito de "afetar" inclui, também, o efeito do sintoma, o efeito de gozo, e mesmo o efeito de sujeito, mas efeito de sujeito situado num corpo, e não puro efeito de lógica" (MILLER 2000 a, p. 46).

A partir do seminário 20, Mais, ainda, de 1972-73, Lacan muda a perspectiva de sua construção conceitual, passando a tratar a linguagem não mais como primária, precedente, mortificadora do vivo, mas secundária à lalangue – alingua- que é o gozo da língua materna ( LACAN 1985 b, p. 188), gozo da palavra antes de seu ordenamento gramatical e lexicográfico (MILLER 2000 a, pp.24-25). Nesta reversão, Lacan privilegia o gozo da marca do vivo que o significante promove. "Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? – a substancia do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza (substância gozante). Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso goza. Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante"(LACAN,1985b, p.35).

Nesta concepção a função do sintoma que antes seria a de tentar reintegrar por via da linguagem, algo do vivo (objeto a), perdido a priori para o sujeito, passa a ser a de identificar o ser do falante a seu modo particular de gozo. Como salienta Coelho dos Santos, nesta perspectiva sintoma e estrutura são idênticos, o que tem como conseqüência clínica que a direção da cura leve em conta não mais o desinvestimento libidinal do sintoma, mas o saber fazer com o sintoma, a reintegração da satisfação obtida com o desprazer do sintoma, da qual o sujeito se esquiva pelo não-querer-saber (COELHO DOS SANTOS 2002 a, p.162).

Outra conseqüência desta nova abordagem de Lacan quanto ao sintoma é que este é tomado mais claramente como "acontecimento de corpo" (LACAN, 2003, p.565). Segundo Miller "Percebemos, por curto circuito, que o sintoma analítico diz respeito, eminentemente, ao corpo(...) Por isso, adotarei como definição do sintoma essa expressão encontrada uma vez em Lacan e que faz do sintoma um "acontecimento de corpo" (MILLER, 1999 b, p.69).

No texto Biologie Lacanienne et evenement de Corps, Miller afirma que quando o sintoma é tomado como gozo, no sentido de satisfação de uma pulsão, inegavelmente trata-se de um "acontecimento de corpo". O corpo vivo é o suporte do gozo (MILLER 2000 a, p.24-25). Ressalta , porém, que esta concepção do sintoma ficou muito tempo eclipsada, na obra de Lacan, pela ênfase dada ao sintoma como "acontecimento de significação", graças a associação entre sintoma e metáfora.

Do sintoma ao sinthome

Em sua definição clássica, o Sintoma é uma significação inconsciente, relativa ao sujeito, passível de interpretação. Nos termos de Lacan o sintoma é uma mensagem que advém ao sujeito invertida, à partir do Outro. Entretanto, quando no Seminário 20 postula o sintoma como "o que não cessa de se escrever", isto é como necessário (LACAN 1985 b, pp80-81), promove uma mudança em sua concepção anterior. Em sua acepção primeira, uma característica do sintoma era a variabilidade, já que dependia do significante que lhe fornecia sentido, ou seja, o sentido do sintoma variava segundo quem o escutava. Nesta nova conceituação, quando Lacan grafa o sintoma como sinthome, este é tratado como um composto entre o sintoma e a fantasia, o que quer dizer que o gozo e a gramática que o definem estão unidos. Gozo e significante absolutamente imbricados. Nas palavras de Miller: "(...) inclui na definição mesma de sintoma o gozo que implica. Nesse sentido, faz do sintoma –heis aqui a novidade – um modo pelo qual cada um goza de seu inconsciente. E por isso [Lacan] pode dizer que o sintoma não cessa de se escrever" (MILLER 1998 c, p. 235). Nesse sentido o sintoma é um necessário.

Miller ressalta, porém, que embora a definição de inconsciente determine a definição de sintoma, Lacan não diz que o sintoma se estrutura como linguagem, pois faltaria aí o corpo. Através do grafo do desejo demonstra como a demanda (D) dirigida ao Outro (A), tem como efeitos tanto uma significação, como um fantasma. O circuito da significação mascara a relação com a pulsão. Assim, o sintoma seria um composto formado por uma significação e um fantasma, dito de outro modo, por um efeito de verdade promovido pelo significante e por um efeito de gozo. Agora, tanto a significação quanto o fantasma são predominantemente imaginários. Sua desimaginarização viria pela interpretação que reduz o fantasma à pulsão.6

Miller insiste que no grafo do desejo já se pode ver a nodulação sintomática enlaçando significação e gozo, ainda que o objeto a alí só apareça localizado no fantasma. Se o objeto do fantasma inicialmente era tomado por sua vertente imaginária, isto é, como o outro imaginário da cena fantasmática, Lacan irá progressivamente valorizar o objeto como mais de gozo. De qualquer modo resta explicar como o sintoma, articulado em uma estrutura significante, captura o gozo.

Aqui Miller retoma o Seminário ...ou pire, onde Lacan está prestes a formular o conceito de sinthome, já que alí ao trabalhar questões relativas ao passe, trata do resto de gozo ininterpretável que porta o sintoma. Essa questão havia sido abordada por Freud através da noção de "reação terapêutica negativa".

" Ainda que interpretado há no sintoma um gozo que resiste. E isto é o que Freud descobriu sob a forma de reação terapêutica negativa. Se se põe o acento no gozo, então a distinção entre fantasma e sintoma pode ser questionada e superada. Estes dois termos podem ser contidos por um terceiro. Ao final de seu ensino Lacan propos o termo ‘sinthome’, que engloba sintoma e fantasma" (MILLER 1998C, p. 252).

Miller conclui sua análise da lógica da passagem da noção de sintoma à de sinthome mostrando que entre os seminários ...ou pire e RSI, Lacan parece estar buscando como articular os efeitos provenientes da lógica significante que estrutura o sintoma. O efeito de verdade, com sua face resistente de gozo. Afirma ser esta a última grande problemática que Lacan enfrentou. Lembra que em RSI o sintoma é definido como o modo em que cada um goza de seu inconsciente tanto quanto o inconsciente o determina. A determinação se refere a S1, ao imperativo do dito primeiro. Nessa trilha, o sintoma é um modo de gozar do inconsciente, isto é, gozar deste imperativo. Nesse sentido, quando Lacan passa a falar de signo, à partir de Televisión, parece tratar-se da busca de um termo que defina ao mesmo tempo o significante e o gozo. Então, o que faz insignia, ou o que faz signo, é o sinthoma.

O fato de que o sintoma responda a uma estrutura idêntica à da linguagem não implica em que esta o possa absorver por inteiro. No sintoma, significante e significado estão disjuntos, diferentemente do campo estrito da palavra onde o sentido domina. Por esta razão Lacan vinculou o sintoma à escritura e não à palavra . (MILLER 1998c, p. 256). Embora a passagem entre sintoma como mensagem e sintoma como escritura pareça ser tardia na obra de Lacan, Miller demonstra seu rastro em trabalhos de Lacan dos anos 50(MILLER 1998c, p. 277) O que parece fundamental é o destacamento de que se o sintoma se estrutura como linguagem, sua estrutura não é a da palavra, onde significante e significado estão acoplados, mas a da escritura onde o significante é independente da significação. O que significa que o significante pode ter puro valor de letra. Miller acrescenta que quando Lacan afirma que o que determina o sintoma é a estrutura significante, não esta se referindo simplesmente ao lugar do Outro como ponto de onde retorna a significação, mas ao circuito completo que implica bem mais o que nessa significação vale como resposta do real, isto é, seu efeito de gozo. O sintoma como escritura se articula ao Outro como inexistente. Não há relação do sintoma ao Outro enquanto código. A escritura do sintoma é um ato em si. Ato que dispensa o Outro. Fazer existir o Outro depende de que se busque dar significado a essa escrita. Nos termos de Miller: " (...) se se fala ao Outro, não se escreve mais que para si mesmo." (MILLER 1998c, p. 295).

Assim, a doutrina do sintoma aponta que o que há nas cadeias significantes, na própria comunicação, é, antes de tudo, um "autismo de gozo" (MILLER 1998c, p. 296).

Todavia, a teoria subseqüente de Miller, isto é a teoria do Parceiro Sintoma , parece conduzir-nos a uma outra possibilidade que vem sendo desenvolvida por COELHO DOS SANTOS (2006). A inexistência da relação sexual não impede, ao contrário, condiciona, que o sintoma seja a tentativa de fazê-la existir. Assim sendo, não estaria o sinthoma articulado ao tratamento que um sujeito em análise pode dar à diferença sexual? Nesse sentido, não seria a diferença anatômica um dos nomes do real?

Notas

1 Este trabalho faz parte da pesquisa de doutoramento no curso de Pós-graduação em teoria Psicanalítica da UFRJ, orientado pela prof. Dra. Tânia Coelho dos Santos e financiado pelo CNPq.

2 O termo "hipermoderno" foi cunhado por Miller em sua Conferência em Comandatuba , no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise em agosto de 2004.

3 "A depressão nos instrui sobre a nossa própria experiência atual da pessoa, pois ela é a patologia de uma sociedade na qual a norma não é mais fundada na culpa e na disciplina, mas na responsabilidade e iniciativa. Ontem, as regras sociais comandavam conformismos de pensamento, ou até automatismos de conduta; hoje, elas exigem iniciativa e aptidões mentais. O indivíduo é confrontado com uma patologia da insuficiência, mais do que com uma doença da falta, ao universo do disfuncionamento, mais do que ao da lei" (EHRENBERG 2000,p.16).

4 "Os grupos monossintomáticos, reunidos em Associações que utilizam a insígnia identificatória constituída pelo sintoma como critério de admissão do socius (associações dos depressivos, dos doentes de aids, dos DAP - Desordens de Ataques de Pânico - das anorexias-bulimias), assinalando uma transformação no estatuto mesmo do sintoma: o sintoma é aqui tomado em sua versão metafórica de significante de um significado reprimido, não na versão libidinal de lugar de gozo do sujeito, mas como a realização de uma insígnia identificatória que consente com a constituição de uma nova comunidade neo-segregativa."(RECALCATI, 2005)

5 Vertigem, dispnéia, perturbações no ritmo cardíaco, exsudação, fadiga, cefaléias, etc...

6 "Entendemos, inclusive, o que significa a construção do fantasma fundamental, que e uma grande preocupação da análise:Construo be meui fantasma fundamental? A construção do fantasma fundamental depende estritamente da interpretação, que reduz o sintoma posto que enumera –ou conduz o sujeito a enumerar- o conjunto dos significantes amos, os S1, a partir do qual ha significação. O fantasma fundamental se constrói ao mesmo tempo que se interpreta o sintoma, quer dizer, a medida que os efeitos de verdade do sintoma são progressivamente referidos ao significante que os induz, ao S1que os induz. Deste modo se isola o objeto a, isto é, se desimaginariza o fantasma. Neste sentido, a construção do fantasma fundamental equivale à sua redução à pulsión." ( MILLER, 1998c, p.251). (tradução da autora)

Bibliografia

COELHO DOS SANTOS, T.

EHRENBERG, A.: La fatigue d’être soi – Dépression et société, Odile Jacob, poches, Paris, 2000.

FREUD, S" Conferências introdutórias em psicanálise" (1917) . Conferência XXIV. In: E.S.B. Obras Completas. vol.XVI . Págs.441-456. Imago. Rio de Janeiro. XXVI. 1976 b.

LACAN J

MILLER, J.A ,

RECALCATI, M. "Alinhamentos para uma clínica do monossintomático". In: Revista Eletrônica Agora n.41. CID Bogotá. 2005.

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Número 23 - Octubre 2006
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