Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Lacan Letrado
Leda Tenório da Motta

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"Vieram me contar, há alguns meses,
que Nadja ficou louca
".
André Breton,Nadja.

Surto paranóide e surrealismo

Quem ignora, hoje, que a psicanálise vienense se moldou, em larga medida, na forja da Literatura? Quem ignora o que Freud deve à dupla trágica Sófocles/Shakespeare _ já que ele não fala em Édipo sem saltar imediatamente para Hamlet _, aos grandes românticos alemães _ Goethe, Heine, Kleist, Hoffmann _ a Dostoievski, a Ibsen, a Schnitzler, a Stephan Zweig...?

Mas se ninguém mais desconhece, nos dias que correm, que, em matéria de psicanálise, é preciso consultar os poetas, quase nada se diz _ nem talvez se desconfie, ainda _ do que Jacques Lacan, esse importante e auto-reivindicado seguidor de Freud, deve à Literatura Francesa, e principalmente à literatura francesa de vanguarda. O fato tanto mais estranho quanto, ao mesmo tempo, dentre os que o conhecem e seguem _ e principalmente no Brasil, onde o lacanismo acha-se hoje fortemente implantado_ não há quem não saiba que Lacan, que praticamente redefiniu toda a nossa psicopatologia da vida coditiana como uma espécie de interminável quiprocó linguageiro ou de grande aventura trocadilhesca _ tudo depositou no efeito poético das palavras .

Boa razão para que, cem anos depois do nascimento desse mestre da psicanálise de linha francesa, que submeteria o texto de Freud ao instrumento mesmo dos poetas _ as palavras _, se comece a tocar seriamente nas dívidas dos Escritos e dos Seminários não apenas para com as vanguardas históricas do século em que nascem e recuam as utopias, com sua fé na subversão do mundo pela linguagem, mas para com alguns grandes clássicos do patrimônio literário francês, muitas vezes desconhecidos até mesmo dos que falam em lacanês.

De fato, revoluções artísticas as mais ruidosas estão em curso nessas primeiras décadas do século XX em que Freud se prepara para deixar Viena, às pressas, rumo à Inglaterra, fugindo do nazismo, e Lacan entra em cena, com sua fala estranha, seus casamentos e descasamentos de homme à femmes de estirpe libertina (no sentido forte da palavra, de seguidor das Luzes sadianas), seus paletós extravagantes e seu charuto torto, trejeitos de dândi que têm tudo a ver com o caráter existencial dessas viradas estéticas, e são feitos para chocar os mantenedores da herança freudiana lotados nas sociedades de psicanálise, que, por sua vez, logo achariam jeito de expulsá-lo. Pondo-se, desde logo, a interpretar _ de modo tão inaudito que só mesmo os homens de André Breton para acompanhá-lo, nesses anos de formação _, o surto de loucura daquela que seria a sua primeira doente, e nessas condições, a sua "Anna O": a Aimée. Toda a história desta francesa de quem se descobriria, mais tarde, através da biografia de Lacan por Elisabeth Roudinesco, que era ninguém menos que a mãe do psicanalista francês Didier Anzieu, está na tese de doutorado de Lacan Da Psicose paranóica em suas relações com a personalidade, obra princeps publicada em 1932, que passa praticamente desperceb ida, naquele momento, mas não deixa de ser recepcionada na célebre plataforma surrealista que é a revista Minotaure. 1

E a julgar pela cumplicidade do futuro autor dos Escritos com esses movimentos estéticos que estão no horizonte de seu tempo, bem atestados por circunstâncias biográficas tais que sua passagem pelo não menos célebre Collège de Sociologie de Georges Bataille, pela freqüentação dos herderiros de Alfred Jarry, eles também reunidos num Collège de Pataphysique, e pelo fato de ter sido um surrealista de carteirinha _ como ele mesmo lembraria, em 1969, à turbulenta platéia de gauchistas disposta a vaiá-lo, por alienado, em Vincennes, onde se instala, sob a cúpula do lacanismo e a batuta do discípulo Serge Leclaire, o primeiro departamento universitário de psicanálise de que temos notícia 2 _, não se poderia pensar, em sã consciência, que esses gritos de guerra lançados dos laboratórios poéticos mais avançados de 100 anos atrás não sirvam para ajudar a entender a guinada lingüística que caracteriza a doutrina made in France. Nem que não tenham tudo a ver com a desinteriorização do inconsciente freudiano aí em jogo, com toda aquela reversão do "indivíduo" padecente dos tempos heróicos vienenses em "sujeito", todos os afetos da alma patológica freudiana jogados no saco da linguagem.

Muito se tem sublinhado _ e com razão _ o peso da Filosofia sobre a obra de Lacan. Todos sabemos o quanto há nela de aproveitamento de Hegel, filósofo para o estudo do qual o psicanalista freqüenta, na primeira metade dos anos de 1930, os seminários dos dois Alexandres _ Koyré e Kojève _, grupos de estudo que são outros tantos círculos dissidentes, a exemplo do de Bataille, e nesse sentido, outros modelos do formato "Seminário" e do próprio formato "Escola", post o em destaque com a fundação da "École Freudienne", que briga com a "Sociedade" psicanalítica, vale dizer, com Anna Freud e o executor testamentário de Freud, Ernest Jones. Esses são redutos rebeldes do começo do século passado por onde passa gente da diáspora surrealista, como Raymond Queneau, por exemplo, então membro honorário do Collège de Pataphysique e futuro animador desta outra seita iconoclasta que é o Ouvroir de Littérature Potentielle, OuLiPo. Aí, muitos destinos se cruzam. Foi na companhia de Queneau que Lacan conheceu Sylvia Bataille, a bela atriz de Jean Renoir (protagonista da obra-prima Une Partie de campagne, por exemplo), então casada com Georges Bataille, a quem ele terminaria ligado e com quem se casaria, em segundas núpcias (suas e dela), espantosamente, às escondidas dos filhos da primeira mulher. 3

Todos sabemos o quanto tudo que há de mais paradigmático em Lacan está igualmente em Heidegger, com quem ele aprende que a vida real não é real, é simbólica (além de imaginária), atraído aos jantares da casa da Rue de Lille, para conversar sobre a verdade como desvelamento e a linguagem como morada do ser ("dit-mansion", em lacanês). Todos sabemos o quanto Wittgenstein preside às reformulações lógico-matemáticas da última _ e mais torturada _ psique lacaniana. Todos sabemos, enfim, o quanto toda essa atenção aos pensadores de língua alemã deve-se, no limite, à força da ascendência de Nietszche, tão cultuado entre os escritores franceses de vanguarda _ todos hegelianos e/ou nietzscheanos, além de sadianos _ pela sua ofensiva contra a razão ocidental, sua crítica à modernidade, seu niilismo oposto ao otimismo iluminista (daí Sade em Lacan, justamente, já que Sade, ao mesmo, encarna seu século e está completamente na contramão dele ), em meio ao domínio do cartesianismo e à germanofobia local.

Por outro lado, todos também sabemos como a esse patrimônio estrangeiro incorporam-se, desde os anos de 1960, valores da tribo estruturalista _ para evocar o célebre desenho de Roland Barthes em que Lacan está sentado de tanga ao lado do próprio Barthes, de Lévi Strauss e de Michel Foucault 4. São valores tais que, antes de mais nada, os da Antropologia Estrutural, a então revolucionária teoria straussiana da cultura, que propunha que a proibição do incesto está na passagem para a cultura, sendo a sua fundação simbólica, o que reconfirmava as hipóteses adiantadas por Freud em Totem e tabu. E isso num momento delicado _ acrescente-se _ em que uma escola de culturalistas punha em dúvida a universalidade de Édipo, acusava Freud de apenas projetar os valores da sociedade burguesa vienense que era a sua, e buscava expedicionar por entre as reservas indígenas disponíveis, em busca de dados materiais sobre a vida primitiva, a que Freud chegara por vias bem menos diretas, como sabemos, lendo os mi tos e contemplando sua coleção de antigüidades.

E todos também sabemos que um outro importante ponto de partida da redefinição de Édipo como imposição do "nome do Pai" na base do freudismo de Lacan é Ferdinand de Saussure, que lhe inspira não apenas falar em "sujeito", antes que em indivíduo, mas em "significantes" e "significados", as duas faces do signo saussuriano cujo funcionamento Lacan toma a providência de inverter, pondo o significante na frente do significado. Trata-se de uma mudança notável, já que é nas linguagens poéticas que o significante assume toda a precedência, o que imbrica todo o campo da psicanálise lacaniana, desde a fala do psicanalista e a exposição da doutrina, com os efeitos de estilo. Mas lembremos ainda, nesta rápida arqueologia, que o lacanismo também administra, em paralelo à lingüística de Saussure, as lingüísticas gerais de Émile Benveniste e Roman Jakobson, ambos sábios de seu tempo, que são também habitués do primeiro _ e mais sofisticado _ Seminário, o do Hospital Psiquiátrico de Sainte- Anne. Foi ali que as coisas começaram a acontecer, em atmosfera de banquete socrático, antes da transferência dos trabalhos para as dependências da École Normale, recinto em que Jacques Miller ganha peso, e antes da fase crepuscular nas instalações da Faculdade de Direito, quando, de comentário do texto freudiano, ou de metapsicanálise, o ensinamento magistral de Lacan passa a comentário formular dele mesmo.

Há todo um cruzamento de disciplinas _ para só ficarmos nas humanas, deixando prudentemente de lado as exatas, as matemáticas _ nesta inflexão imposta ao freudismo, que Lacan gostava de definir como uma simples volta à letra do texto de Freud, e todos sabemos disso, repita-se.

O que se sabe menos é que a literatura_ essa disciplina já preponderante no passado da doutrina _ entra em pé-de-igualdade com as filosofias, antropologias, lingüísticas e semiologias na gênese do pensamento de Lacan. Trata-se de uma influência ou de uma presença que vai muito além do corte de estilo da "linguisterie"lacaniana.

 

O Gôngora da psicanálise

De fato, muito embora quase nada de substancial ou sistemático se tenha escrito sobre isso, 5 estamos com Lacan não apenas diante de um ostensivo estilista, que não hesitou em ensombrecer seu ensino, na demonstração prática da poesia do inconsciente, ou em cravar na letra mesma de seu texto oral os buracos da "falta" _ assumindo, aliás, a pecha de barroco _ ".... o Gôngora da psicanálise, segundo se diz, para servi-los" 6 _ mas às voltas com um tão assíduo freqüentador dos grandes escritores que somos repetidamente remetidos, em qualquer ponto de sua obra, a essas Belas-Letras que ele considerava serem a via régia para a formação dos aspirantes a psicanalista.

É o que perceberá, de pronto, quem der uma olhada no índice remissivo dos Escritos _ repertório dos mais úteis e ilustrativos, que, infelizmente, falta aos Seminários editados por Jacques-Alain Miller, de aparato crítico nenhum _ e puder verificar a quantidade de vezes em que o sogro de Miller cita modernos e ultra-modernos como Balzac, Victor Hugo, Mallarmé, Proust, André Gide, Paul Claudel, André Breton... de par com toda uma outra enorme quantidade de clássicos, que ele também freqüenta. Citem-se, em sobrevôo rápido, entre os antigos, os modernos e os muito modernos: os poetas do amor cortês, a girar, em seu infinito flerte, em torno de um centro vazio, onde nunca está a mulher buscada, sem os quais podemos pensar que não ocorreria a Lacan o axioma desrealizante " não existe relação sexual"; La Rochefoucauld, em cujo repertório de sentenças lapidares o lado proverbial de Lacan descobre este enunciado também lapidar, que formula avant la lettre a precedência do significante: "Há pessoas que nunca se apaixonariam se nunca tivessem ouvido falar do amor"; Sade, a quem ele deve tão bem saber que o ato sexual passa pela impossibilidade do que chamamos "relação", e a quem ele também deve tanto bater na tecla do "gozo", entendido, como em Freud, como impossível, e atravessado pela pulsão de morte; Georges Bataille, este sadólogo da primeira hora, pensador das relações da literatura e do mal, com sua obra povoada de cenas profanatórias, cujo alvo transgressivo é sempre a mãe; Alfred Jarry, com quem ele aprende a língua nonsense do Pai Ubu, que desafia a ordem da gramática, em assalto à "lei do Pai", levando o espírito do chiste até mesmo para a sessão curta, que tende a terminar com a eclosão de algum gracejo.

Em matéria de precedência dos escritores, já a tese de 1932 sobre a psicose paranóide procede, em boa medida, do impacto da obra de Breton, que também era psiquiatra, embora corroborasse o desprezo de todo o seu grupo pelos representantes da profissão manicomial _ até porque Sade, e mais tarde Baudelaire e Nietzsche, foram vítimas dela _, e embora tenha reagido contra o encarceramento dos doentes nos próprios manifestos surrealistas, e assinado textos de particular virulência contra alguns médicos de seu período, a exemplo de certo Dr. Abély, cujo assassinato ele chega a recomendar. 7 No conjunto da obra bretoniana, destaca-se como influência principal sobre Lacan um famoso romance _ para chamá-lo assim, mas, na verdade, trata-se, muito mais, do diário que registra um amour fou de Breton _ cuja personagem central nos leva, diretamente, a Aimée. Trata-se de Nadja , obra magna bretoniana de 1928, em que temos uma heroína saída da vida real que entra em crise psicótica, depois de um breve e fulminante encontro com o escritor, justamente narrado no diário. Coincidentemente, ela vai parar no mesmo hospital psiquiátrico de Sainte Anne, por onde Lacan estaria começando sua carreira, às voltas com Aimée, alguns poucos anos depois. O fato nos deixa pensar que o romance funciona como um protótipo da primeira teoria da paranóia, e que esse hospital parisiense do quatorzième arrondissement está para a psicanálise lacaniana assim como a Salpetrière, ali ao lado, no treizième, estava para a freudiana. Não só porque, aí, a doutrina decolaria outra vez, diante do sofrimento feminino. Nem só porque a seus conhecimentos filosóficos, psiquiátricos e mesmo psicanalíticos o Lacan da época já acrescenta suas leituras literárias _ vejam-se as muitas menções aos escritores no rodapé da tese _, mas principalmente porque, sendo uma mulher, aliás, da mesma extração social modesta de Aimée, e estando sujeita às mesmas crises de loucura, embora não haja em sua trajetória a passagem ao ato da primeira cliente de Lacan _ que, em seu surto, chegou a Nadja tem quase tudo de Marguerite Pantaine, o verdadeiro nome de Aimée.

As semelhanças entre a vida e a arte que se oferecem à reflexão de Lacan psiquiatra não páram aí. Nadja também tem muito destas duas outras espantosas assassinas, perfeitamente pacíficas antes de também passarem ao ato, que são as irmãs Papin _ Christine e Léa _, de que ele igualmente se ocupa, na tese de doutorado, e de que se ocuparia, ainda, a convite dos companheiros surrealistas, num artigo para a revista Minotaure. 8 (E de que também se ocupariam Jean Genet e Claude Chabrol, respectivamente, na clássi ca peça Les Bonnes e num filme relativamente recente, La Cérémonie). Assim como todas têm muito a ver com a não menos célebre Violette Nozières, jovem francesa que foi manchete de jornal, nesses mesmos anos de 1930 em que tudo parece acontecer, depois de tentar envenenar pai e mãe, acusando o pai de tê-la perseguido sexualmente, desde pequena, e a mãe, de ter sido cúmplice do pai. Esta é outra personagem feminina importante neste rol de referências fundadoras, de quem Breton diria _numa análise que antecipa a maneira lacaniana de lidar com o significante _ que ela já trazia o "viol" (estupro) no nome "Violette". Sabe-se que os surrealistas dedicariam poemas a Violette, homenageando a maneira como atenta espetacularmente contra a família 9.

De tal modo que _ resumindo esta parte _ não se pode entender Da Psicose paranóica em suas relações com a personalidade sem todas essas desadaptadas sociais do sexo dito frágil que, em comum, têm ainda, aos olhos de todos os antipsiquiatras-poetas desses idos, aquela "beleza convulsiva" a que alude Breton, no conhecido fecho de Nadja: " A beleza será CONVULSIVA ou não será." 10

De resto, em matéria de relações entre arte surreal e psicanálise lacaniana, esse texto princeps _ que é um dos poucos originalmente escritos e não falados, ao lado de Os complexos familiares e Kant com Sade, o primeiro encomendado para uma enciclopédia, o segundo para figurar como prefácio a uma edição das obras completas do marquês e, finalmente, recusado por ininteligível _ paga ainda tributo ao elogio da loucura tal como teorizada por Salvador Dali, o grande arauto da escola surrealista para efeito de promoção do delírio como categoria estética. Já que Dali é o primeiro a ver na paranóia uma outra interpretação possível da realidade, e nesse sentido, uma atividade lógica criadora. E essa é a razão pela qual, no momento em que cuida do assunto, ocorre a Lacan visitar o pintor, num quarto de hotel em Paris, e o motivo pelo qual é Dali quem acaba resenhando a tese de doutorado na Minotaure, e com isso recebendo Lacan no seio do movimento. 11

Ora, se a primeira teoria lacaniana da psicose pode e deve ser lida à luz do Breton da fase heróica _ que a tese de doutorado associa, por outro lado, à dialética hegeliana do senhor e do escravo, legível na perseguição interna do sujeito paranóico pelo seu outro, que o leva a agredir o outro, como Aimée e as Papin _ tudo o que se segue na gradativa implantação do "Lacan lacaniano", 12 que é o que toma, em definitivo, o inconsciente por linguagem, está, tão visivelmente quanto, atrelado à influência das musas, que à erudição humanística deste bom comentador literário não cessam de se impor.

É o caso ainda no caso das íntimas relações que o lacanismo estabelece entre o desejo amoroso _ definido como projeção em cadeia infinita de objetos parciais, sempre insatisfatórios ou, como diria o mestre, na esteira de Jakobson, "metonímicos" _ e esta matriz do amor romântico e do amour fou surrealista que é a poesia trovadoresca do século XII francês. É disso que trata, lançando mão de um fenômeno de distorção ótica dos mais intrincados _ a anamorfose _ , e com sofisticado conhecimento de causa poética, o belo capítulo intitulado "O Amor cortês em anamorfose" do Seminário 7.

Analisando o rodeio dos cavaleiros em torno das impossíveis damas casadas e encasteladas que eles levam a peito conquistar, Lacan nos pede aí, nesse belo trabalho de literatura e psicanálise, para ponderar que todos os obstáculos interpostos à felicidade desses cantores apaixonados não só caucionam a inacessibilidade de seu objeto, mas lá se encontram para garantir o que está verdadeiramente em questão, por baixo das aparências: uma "demanda de não-real". E nos adverte que a paradoxal função que o poeta do amor cortês se põe a exercer, erguendo barreiras contra seu próprio desejo, nessa busca do impossível ambientada numa Idade Média em que o casamento se torna sacramento, denota uma perfeita administração da solidão narcísica, e uma organização do vazio. É disso que nos fala aquele axioma relativo à impossibilidade do laço amoroso que, fazendo par com "Não existe relação sexual", nos adverte que "Não existe A mulher".(Com "A" maiúsculo, designativo da generalidade, e barrado).

 

O mundo mascarado

A própria veia sentenciosa de Lacan, que se resume diante de seus anfiteatros lotados em frases bem torneadas _ "o louco é o que vive sem o reconhecimento do outro", "amar é dar o que não se tem a quem não o pediu", "o significante representa o sujeito para um outro significante".... _ é devedora de uma outra corrente literária francesa, a corrente dos moralistas, que ostenta nomes de mestres do século XVI e XVII como Montaigne, Pascal, Molière, La Rochefoucauld, La Bruyère...

Essa é uma família de escritores que se caracteriza pelo "esprit de finesse" _ a observação aguda do que se passa em volta, enunciada de forma ultra-sintética, numa frase bem arrematada, espírito de concisão e percuciência de que um bom exemplo poderia ser este pensamento de Pascal: "o homem é um caniço pensante". É uma linha de tradição que tem, em sua ponta moderna, representantes como um Karl Krauss, o misógino mas brilhante jornalista contemporâneo de Freud na Belle Époque vienense, o Nietzsche dos discursos aforismáticos, que se inspirou expressamente no autor das Máximas e reflexões morais, La Rochefoucauld, e o Cioran que distilou seu pessimismo em livros escritos em francês, depois que deixou sua Romênia natal e adotou a língua ferina de Voltaire.

Essa corrente clássica, a que Lacan se filia não apenas pela sua proverbialidade, pela contundência de sua penetração psicolólogica, expressa a golpes de frases bem escritas, mas pela sua maneira de desconfiar dos discursos como se passeasse pelo terreno envenenado da vida de corte, onde ninguém diz o que pensa _ não por acaso o lugar em que as máximas são inventadas _, tem um lugar de destaque nos Escritos. Aí, o mais ilustre representante da escola _ La Rochefoucauld _, é citado nada menos que seis vezes _ trata-se do escritor mais citado nos Escritos _ como poderá constatar quem se der ao trabalho de voltar ao índice onomástico. E o mais interessante a respeito de La Rochefoucauld é descobrir que Lacan já o mencionava na tese de doutorado. 13 O que não deveria nos surpreender já que, fora denunciar o fundo falso dos discursos, o grande moralista também concebe o amor como jogo narcísico, sem objeto que não projetivo ou delirante, e como mundo puramente linguageiro, o que não poderia senão interessar a Lacan,que cita, a propósito, uma das mais perturbadoras seqüências das Máximas e Reflexões morais de La Roxhefoucauld: "Para nos atermos a uma tradição mais clara, talvez ouçamos a célebre máxima em que La Rochefoucauld nos diz que ‘há pessoas que nunca se apaixonariam se nunca tivessem ouvido falar do amor’, não no sentido romântico de uma ‘realização’ totalmente imaginária do amor, que fizesse disso uma amarga objeção a ele, mas como um reconhecimento autêntico do que o amor deve ao símbolo e do que a fala comporta de amor." 14

E isso tudo nos leva, naturalmente, ao gracejo que também está na estranha língua de Lacan, até porque ele é um ironista implacável, como bem sabem seus leitores, e porque essa ironia visa aos guardiães da doutrina. Pois, de fato, o "mot d’esprit" _ como os franceses traduzem o "witz" freudiano _ nada mais é, no fundo, que a sentença moral em registro de anedota (palavra cujo étimo é "inédito", observe-se), ou nada mais é que um aforismo cômico. Como reconhece o próprio Lacan, de resto, em "Kant com Sade", quando, evocando a máxima moral kantiana enquanto universal por direito de lógica, e voltado com isso a Jarry, ele observa que o que faz, à sua maneira o Pai Ubu, é reescrever máximas: "Ilustremos (a lei de Kant), ainda que ao preço de uma irreverência, através de uma máxima retocada do Pai Ubu: ‘Viva a Polónia, pois, se não houvesse a Polónia, não haveria poloneses’." 15

Mestre dos bretonianos _ lembremos que é ler Jarry que Breton recomenda a Nadja, no começo dos encontros entre ambos 16 _ há três menções explícitas ao rabelaisiano autor de Ubu Rei nos Escritos, 17 e pelo menos uma no Seminário 17. 18 E já por isso, fica a pergunta, e a sugestão de pesquisa: mas quantas haveria, ao todo, nos Seminários? Sem contar as menções indiretas, disseminaadas por toda parte , já que Lacan fala em idioleto ubuesco, na esteira de Jarry. Assim, por exemplo, Jarry escreve "phynance"(em vez de "finance"), Lacan, "phonction", em vez de "fonction". Ubu diz "merdre", " armedre" (condensação de armada e merda), "oneilles" (deturpação infantilóide de "oreilles", orelhas), "tuder", com se falasse com o nariz tapado ( em vez de "tuer", matar).... Lacan, "astudés" (astudados) em vez de "étudiants" (estudados); "troumatisme" (condensação de traumatismo e buraco); "jouisens" (gozo/sentido); "étourdit" (aturdido/dito); "autruiche" (avestruz/outrem)...

Lacan, o barroco, fala, enfim, em outra língua que não a do comum dos mortais _ que não a de "Monsieur-tout-le monde", como diria Mallarmé, poeta também assíduo ao índice onomástico dos Escritos, cuja definição da linguagem ordinária como "moeda gasta" no passa-passa da comunicação _ está ali citada. É em alusão a essa comparação mallarmeana da fala comum com a moeda que Lacan escreve, no capítulo "Subversão do sujeito e dialética do desejo", que "o discurso na sessão analítica só tem valor por tropeçar e até se interromper". 19 Isso significa também que ele só tem valor por verter-se numa língua que, não sendo instrumental, é uma língua desfuncionalizada.

Diante disso, entende-se que, em sua barroquização da doutrina, Lacan possa recorrer ainda a este mestre da adjetivação flamejante que é Victor Hugo, para tratar, no Seminário 3, da condensação freudiana como metáfora, e do deslocamento como metonímia, figuras que para ele, no limite, se confundem. Aí, ele se demora no poema "Booz Endormi", em que Victor Hugo verseja sobre o sonho de Booz com uma desejada prole que lhe aparece na forma de protuberância nascida de sua barriga, para nos dizer que tal figuração é, ao mesmo tempo, um substituto do próprio sujeito, e assim, metáfora, e uma figura do pênis do sujeito, e assim, pelo que comporta de parcialidade, uma metonímia. 20

Que concluir destas breves notas, que estão longe de exaurir o apetite de Lacan por literatura francesa e por literatura em geral _ já que haveria ainda que falar, por exemplo, no Edgar Poe de A carta roubada, com que se abrem os Escritos?

Por um lado, que, se quisermos saber mais sobre Lacan, é preciso _ como sempre _ consultar os escritores.

Por outro lado, tudo isso também nos ajuda a interrogar os seguidores de nosso gênio oral, que tanto ouvimos, ao redor, discursar em lacanês. Não sem irritação, até porque, muitas vezes, esses repetidores sequer conhecem a língua francesa e as nobres fontes letradas de que procede a psicanálise lacaniana.

Uma das lições a tirar _ então _ dessas íntimas relações entre os artistas da palavra e o psicanalista que pôs a linguagem no centro de seu pensamento é que, se quiserem, de fato, ser tão poeticamente incisivos como o mestre, o único caminho que resta aos seguidores é tratar de fazer o mesmo que ele: interessar-se por literatura.

Notas

1 - Sobre a verdadeira Aimée, "Marguerite Anzieu", ver, por exemplo, o Dicionário de Psicanálise de Elisaberh Roudinesco e Michel Plon. Rio de Janeiro:Zahar, 1988, p. 30-31.Sobre o envolvimento dos surrealistas com a tese de doutorado de Lacan, ver Elisabeth Roudinesco, "História de Marguerite" em Jacques Lacan, Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo:Companhia das Letras, 1994.

2 - Cf. Elisabeth Roudinesco, "A França freudiana em todos os seus estados", História da psicanálise na França, v. II. São Paulo:Companhias das Letras, 1988, p.605.

3 - Sobre tudo isso, ver o capítulo "Dupla vida" da biografia Roudinesco.

4 - Cf. Roland Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes. Paris:Seuil, 1975, p. 149.

5 - Até onde eu chego, sobre as relações do pensamento lacaniano com a Literatura Francesa, só há, por ora, os capítulos "Lacan sobre o estilo, sobre o estilo de Lacan"e "Lacan leitor de Jarry, Jarry leitor de Lacan" do volume de Michel Arrivé Linguagem e Psicanálise, Lingüística e Inconsciente. Rio de Janeiro:Zahar, 1999. A que devo, aliás, ter percebido que o discurso de Lacan é ubuesco.

6 - Jacques Lacan, "Situação da Psicanálise em 1956", Escritos. Rio de Janeiro:Zahar, 1998,p.469. Mas ver também o capítulo "Do Barroco" do Seminário 20, onde lemos: "Não é à toa que dizem que meu discurso participa do barroco". Seminário 20 , Mais, ainda. Rio de Janeiro:Zahar, 1985, p.154.

7 - Se eu fosse louco, aproveitaria uma "melhora" de meu delírio para assassinar friamente a primeira pessoa (de preferência um médico) que aparecesse na minha frente . Assim, pelo menos, eu iria parar numa solitária e, aí, talvez, me deixassem em paz." André Breton, Nadja, Oeuvres, Vl I. Paris:Gallimard-Pléiade, 1988, p. 777.

8 - Cf. Elisaberth Roudinesco, "História de Marguerite", Lacan, Esboço de uma vida..., p. 47-48.

9 - Cf. André Breton, Violette Nozières, Oeuvres, Vl. II. Paris: Gallimard-Pléiade, 1992, p. 219-221.

10- André Breton, Nadja, Oeuvres, Vl, op. cit., p. 753. O grifo é famoso e é de Breton.

11 - Cf. Elisaberth Roudinesco, "História de Marguerite", Jacques Lacan, esboço de uma vida ....op. cit., p. 47-48.

12 - Como o chamam Oscar Cesarotto e Marcio Peter de Souza Leite num dos capítulos de seu Jacques Lacan, uma biografia intelectual. São Paulo:Iluminuras, 199

13 - Jacques Lacan, Da Psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1987, p. 327, nota 5.

14 - Jacques Lacan, "Função e campo da fala e da linguagem", Escritos, op. cit., p. 265.

15 - Jacques Lacan, "Kant com Sade", Escritos, op. cit., p. 779.

16- "(...) ela se apodera dos livros que eu lhe trouxe (Les pas perdus, Manifeste du surréalisme) (...) ‘Passos perdidos’? Isso não existe. Ela folheia o volume com enorme curiosidade. Sua atenção se fixa num poema de Jarry que ali está citado..." André Breton, Nadja, op. cit, p. 689.

17 - Muito embora, equivocadamente, o onomástico dos Escritos só mencione duas, deixando escapar uma terceira, no capítulo "Kant com Sade". Cf. pgs. 616, 667 e 779, op. cit.

18 - No capítulo "Édipo e Moisés e o pai da horda", Seminário 17. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 98-99.

19 - Jacques Lacan, "Subversão do sujeito e dialética do desejo", Escritos, op. cit., p. 815.

20 - Jacques Lacan, Metáfora e metonímia II- Articulação significante e transferência de significado em O Seminário 3. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 257.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 23 - Octubre 2006
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