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Comentar o livro de Vladimir é uma tarefa duplamente difícil. Primeiro pela proximidade com seu autor e pela afinidade com suas idéias. Segundo porque a quantidade de conseqüências que as teses deste livro traz implicariam reler inteiramente Lacan, do começo ao fim. Não quero parecer exagerado, mas o que temos aqui é uma reviravolta completa na forma de ler Lacan. É um trabalho original, sem coqueteria filosófica, sem reverência, e sem subserviência ao famoso princípio de divisão social de tarefas, a saber: aos filósofos as análises epistemológicas, as reconstruções conceituais e é claro as "aplicações" ao campo da cultura; aos psicanalistas a verdade da verdade, o seio único e legítimo da clínica.
O tema é tratado com indiscutível competência, tanto no que diz respeito ao uso das fontes (abordando extensivamente material inédito), quanto na articulação conceitual rigorosa e crítica. A forma de apresentação é surpreendentemente clara - considerando-se a complexidade das questões abordadas a arquitetura do trabalho combina exposição de conceitos com a proposição de teses de forma equilibrada e dedutiva. A maior parte dos comentadores disponíveis sobre o assunto enfocado está representada e a diversidade de interpretações é trazida reflexivamente ao texto. O autor domina amplamente o pensamento de Lacan bem como os principais autores da tradição dialética com os quais dialoga. Cruzando perspectivas textuais e clínicas apresenta, persuasivamente, uma nova plataforma para entender a razão depois de Lacan baseado na sustentação da noção de sujeito (pela releitura lacaniana de Descartes, Kant e Hegel de forma a retomar a importância do reconhecimento intersubjetivo) e também pela importância conferida á noção de objeto no quadro de uma ontologia negativa.
Vladimir trabalha com os protocolos clínicos de subjetivação: verbalização, simbolização, rememoração; com os problemas clínicos do fantasma, do final de análise, e da sublimação de modo consistente e parcimonioso. Mas, além disso, ele trata tais protocolos com um arejamento e uma precisão que há muito faltam nas discussões "intra-muros". A doxa lacaniana está realmente diante de um problema. As coisas que Vladimir diz aqui contrariam certos consensos políticos, clínicos e teóricos dentro da psicanálise lacaniana que são absolutamente explosivos. E ele o faz sem qualquer menção bélica ou tentativa de conciliação entre as correntes interpretativas.
Na história da psicanálise sempre houve uma espécie de descompasso entre a experiência clínica e a metapsicologia. Freud mesmo era capaz de pensar coisas que não fazia e fazer coisas que não pensava. O problema é como alguém tido como "de fora" pode dizer tão bem aquilo que fazíamos sem saber que fazíamos, ou pior, que não fazíamos por ignorância, covardia e submissão teórica.
Um dos argumentos mais importantes do livro é o de que haveria uma dialética entre conceitualização e formalização na obra de Lacan. Dialética que nos permitiria dizer que Lacan é mais hegeliano onde ele não se afirma como tal (após 1960) do que quando ele realiza suas primeiras considerações sobre a intersubjetividade (antes de 1960). Uma maneira corrente de tematizar esta divisão na obra sugere que antes deste ponto de virada vigora a confiança no conceito, confiança que é substituída por uma nova estratégia no momento seguinte, ou seja, o matema, a formalização e a escrita lógica. Esta divisão, aliás excessivamente diacrônica, se desintegra diante dos argumentos do livro: o fracasso do conceito é o que torna o conceito realmente dialético e o que torna esta uma dialética negativa. Portanto não há superação do conceito, mas realização do conceito.
Para o leitor habitual dos comentários lacanianos a noção de "formalização" é uma noção eminentemente ligada à transmissão da psicanálise como um saber de potência universal, senão científico, matematizável. Para alguns isso significa que se a psicanálise puder falar a língua da lógica ela terá então realizado o ideário das luzes, na qual se originou e encontrará finalmente seu lugar entre as demais disciplinas. Mas não é nesta acepção que Vladimir emprega a idéia de formalização. Em primeiro lugar ele a transforma em uma operação da clínica e em segundo lugar analisa a formalização em associação dialética com o conceito, no quadro da sublimação. Pensando na alternativa colocada por Badiou entre o poema e o matema, há uma escolha pelo poema; o "momento estético do conceito" (38). Mas como escolha dialética ela pretende não recusar, mas mostrar que a via do poema integra e absorve a via do matema. Não há nenhum grafo, diagrama ou matema transcrito no trabalho e poucos elementos da chamada "álgebra lacaniana". O sucesso do argumento e sua capacidade de articular o conjunto da obra de Lacan, mostra também que esta perspectiva expositiva representada pelo matema não é imprescindível para a pensar a clínica em Lacan.
Ainda nesta linha, sabe-se que durante algum tempo os lógicos se preocuparam com a possibilidade de "formalizar" a dialética de Hegel; o trabalho de Newton da Costa (Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica, Hucitec, 1999) é um exemplo deste programa, que aparece ainda em inúmeras outras versões no cenário intelectual francês do pós estruturalismo. Ao que parece este empreendimento mostrou que a formalização da lógica dialética não é possível, ou seja, que ela depende de um meio de exposição que é irredutivelmente conceitual-narrativo. Mas isso não reflete apenas uma dificuldade epistemológica, no texto de Vladimir há um argumento interno desta irredutibilidade, se a lemos como uma evasão do "sensível", da "experiência" e do "estético".
A irredutibilidade do sensível ao conceito (44), necessária para compreender, por exemplo, a noção de objeto a em psicanálise, não significa, para Vladimir, a reanimação do pré-reflexivo, do originário ou do afetivo primordial. Essa é uma das teses fortes do livro. Para tanto Vladimir encontra espaço e faz trabalhar duas categorias algo esquecidas ou então tidas como "conceitos limites" na tradição lacaniana, a saber, o "ser do sujeito" e a "ontologia das pulsões" (cuja condensação se dá na idéia de uma ontologia em primeira pessoa). Aqui entra em cena outra novidade: a tese de que concepção de desejo em Lacan deve mais à teoria das pulsões do que da teoria do inconsciente (e do Wunsch). Essa inversão permite postular uma verdadeira gramática das negações em Lacan sem ter que enfrentar o problema em seu terreno clássico, ou seja, a teoria freudiana da memória, do pensamento e da percepção. Com isso se reescreve a teoria lacaniana sem passar em qualquer momento pelo tema-problema da representação, que reaparece surpreendentemente no final, no diálogo com Adorno sobre a noção da mímesis. Essa leitura representacionalista, ainda muito presente entre os autores lacanianos, segue a estratégia em que se lê Freud substituindo acriticamente a noção de representação pela de significante. Isso conduz a uma espécie de redução do inconsciente (no sentido do representacional) à uma dialética entre o imaginário e o simbólico, que Vladimir contorna com uma brilhante leitura sobre o estádio do espelho como paradigma da intersubjetividade "kantiana" em Lacan. O problema da contradição interna entre valor de negação e posição fantasmática (67) aponta para uma reformulação tanto da noção de simbólico (lida usualmente de forma unidimensional) quanto da noção de objeto a.
Aqui surge uma questão: aparição do sexual, índice da presença negativa do sujeito, deve ser considerada como primária ou secundária em relação ao Real ? A sexualidade seria uma espécie de defesa contra o real ? Aqui o texto investiga as possibilidades de retorno daquilo que foi expulso na primeira negação (Verwerfung) recuperando a noção de desmentido (Verleugnung).
A partir da segunda parte do livro começa a ganhar destaque a oposição entre o puro e o impuro. Desejo puro e significante puro são noções problematizadas de modo a mostra os problemas intríncecos à um certo momento da obra de Lacan, marcado pela associação entre a simbolização e a transcendentalização da lei e do desejo. A leitura proposta faz saltar aos olhos como os impasses a que Lacan é levado - e ao que parece por não ter visto o excesso de kantismo que ele recebia indiretamente por intermédio de sua adesão ao estruturalismo prescrevem um programa clínico de purificação simbólica do sujeito que redunda na impossibilidade de distinguir o final de análise da perversão. O sujeito puro seria uma espécie de conseqüência do desejo puro e do significante puro, o que a análise visaria extrair por uma prática de contínua subjetivação do desejo, entendida como destacamento (significante) do desejo em relação aos objetos empíricos nos quais este se aliena. Um sujeito como transcendência sem transcendentalidade (75). Assim como o Cavaleiro Invisível de Ítalo Calvino a análise produziria um sujeito funcional, mas vazio, um sujeito-efeito na mais fiel tradição clínica freudiana da via de levare. A análise não acrescenta nada ao sujeito apenas retira aquilo que lhe pesa demais sobre os ombros. O ponto de virada na obra de Lacan, que você localiza nos anos 60 (Seminário VII e Kant com Sade) seria assim uma espécie de ruptura com este princípio de esvaziamento do sujeito e de purificação do desejo.
A ascensão da idéia de que a sublimação vêem a ocupar este lugar de "correção" dos problemas que Lacan sente em sua própria concepção. Uma crítica deslocada pois soa como endereçada à Kant quando na verdade é ao próprio estruturalismo de Lacan. A sublimação não apenas retira, mas acrescenta algo ao sujeito, acrescenta sua identificação problemática com a Coisa, sua resistência como objeto. Ou seja, esta tese nos leva à reencontrar em Lacan o princípio da via de pore. Não se trataria de acrescentar algo de positivo, mas algo de negativo, uma experiência do negativo, cuja efígie é o fracasso. Ora o fracasso, que não é a decepção ou a resignação, é uma experiência que se acrescenta ao sujeito na análise, daí que esta seja uma experiência ética. Note-se que aqui se joga toda a conotação que a controversa idéia de destituição subjetiva tem tido nos últimos tempos.
Outra tese interessante do livro é de que a noção de destituição subjetiva não representa uma ruptura com a idéia de reconhecimento do desejo. Relendo nesta nova chave dialética textos com o Estádio do Espelho, Subversão do Sujeito e o Seminário sobre o Ato Analítico fica claro que é possível separar a ipseidade - que se mostra no pensamento identificador do fantasma e no reconhecimento da imagem - da experiência de assumir um corpo (na sua face negativa da carne). De fato se mostra como o comentário lacaniano corrente identifica ipseidade e apropriação, e no mais, quase não aborda esta diferença quando lê a teoria lacaniana do sujeito. Esse lapso é, no fundo, tributário de uma má compreensão da noção de alienação. A retomada deste conceito em Hegel, onde ele aparece ligado ao desejo, à linguagem, mas também ao trabalho traz um nítido enriquecimento da questão.
A introdução da noção hegeliana de trabalho permite sedimentar a tese do autor que pretende mostrar a ontologia negativa que atravessa toda obra lacaniana. Por exemplo, ao abordar a concepção de metáfora recupera-se sua ligação com a idéia de ser sem que isso represente um mero pecadilho hedeiggeriano. A metáfora trabalha dialeticamente entre a designação e a significação, entre o Nome do Pai e o falo, entre o "é" como predicação e como identidade algébrica. Sobra deste problema a dificuldade de Lacan em distinguir a estrutura lógica da Lei na sua face de Supereu, o infinito bom e o infinito ruim. O encaminhamento do texto nos mostra como este problema explica a introdução e a propagação da noção de semblante e suas variantes. A lei só pode aparecer se seu suporte for reconhecidamente um semblante (o pai humilhado, degradado, o fracasso do pai). Mas não se desenvolve a idéia de que o próprio semblante como semblante pode dar origem a versões também superegóicas: o cinismo, o imperativo de gozo e a estetização da subjetividade, sem falar em Kafka.
O livro representa uma contribuição realmente original tanto no campo da filosofia quanto no da psicanálise. Ele rompe o consenso estabelecido entre as áreas acerca do uso e importância da noção de dialética no pensamento de Lacan. Revitaliza, inversamente, o potencial crítico da negatividade, pensada no quadro da tradição crítica. Ao mostrar como a noção de negatividade dialética trabalha nos últimos momentos da obra lacaniana, ao demonstrar como esta se aplica coerentemente à noção de pulsão (tanto quanto à de desejo) e ao postular uma renovada importância da noção de perversão no conjunto da obra, o autor traz uma grande novidade aos estudos que versam tanto sobre Lacan quanto sobre as relações entre filosofia e psicanálise. A forma de abordagem dos problemas é muito elucidativa escapando aos argumentos mais superficiais, contextualizando rigorosamente a aparição e transformação dos conceitos nas obras enfocadas, mas sem resumir-se ao comentário expositivo dos assuntos. Uma característica da forma de abordagem, presente no livro, é sua capacidade de trazer para o pensamento de Lacan temas contemporâneos em ciências humanas e crítica da cultura, por exemplo: o cinismo, o estatuto do estrangeiro, a contradição da racionalidade instrumental-normativa, o corpo e a sensibilidade.