Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Corpo fantástico: O olhar no palco da histeria
Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares

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A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera

(...)E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa, Eros e Psique

Discutindo a noção de corpo em psicanálise, a primeira questão que me vem é: que corpo se dá a ver na psicanálise? Freud, nos primórdios, privilegiou as jovens histéricas da Viena fin-de-siècle, e mesmo com o passar do tempo e com os avanços teóricos, parece-nos que a histeria preserva-se como a estrutura fundamental da psicanálise. Nos shows das histéricas do mestre Charcot e sua clinica visuel, é despertado o interesse por essas hipnotizadas / hipnotizantes. Foi a histeria que ensinou a Freud sobre, o inconsciente, o recalcamento, a transferência e o fantasiar. É, a propósito, através desse fantasiar que talvez podemos responder a nossa pergunta: (Que corpo se dá a ver?) numa investigação etimológica chegamos a Phantós, verbo grego que denota "fazer visível".

Certamente há no título desse trabalho uma provocação, Corpo fantástico nos remete à idéia da perfeição buscada nos comtemplados corpos das jovens moças, o que de modo algum circunscreve somente a longínqua Viena de Freud ou a Paris de Charcot. Mas é justamente a partir dessas mulheres que chegamos a saber que este corpo que nunca será per-feito, uma vez que é o denunciador da falta por excelência, é feito de significantes. Esse corpo se dá a ver através duma escritura do olhar, mas esse olhar diferencia-se ou até prescinde da visão, esse olhar nos vem antes pelo discurso, pela escuta. Aludo, aqui, a esquize entre o olho e o olhar sobre a qual Lacan discorre em seu 11o seminário.

O olhar é algo que Lacan privilegia como fundador da subjetividade, como objeto causa do desejo. É anterior ao sujeito, começa a operar antes de sua constituição, desde o estádio do espelho. Mas, antes de falarmos do espelho e do especularizável, cabe esclarecermos essa cisão fundamental: entre o ver (o olho) e o olhar. Diz Nasio, "Ver é sempre esperar aquilo que se vai ver; não há surpresa no ver, por que se trata de algo que se relaciona com o reconhecimento, e assim, nunca há surpresa" (NASIO, 1992 p.18). Já o olhar, é algo da ordem do que surpreende o sujeito. A visão é o locus onde o olhar irrompe, surge como uma centelha fascinante e atordoante. Nesse contexto, o que vemos não é a coisa em si. "E quem vê não somos nós, não são os olhos do corpo, quem vê é o eu" (idem).

A dimensão escópica tem seus primeiros traços cingidos pelo fantasma através do estádio do espelho. Caberia aqui evocar a célebre definição apresentada no escrito de 1949: Tratar-se-ia, este estádio, de um "drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, os fantasmas que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma que chamaremos de ortopédica." (LACAN, 1949 p.100)

A formação do eu teria, nessa vivência de uma distinção totalizadora, através de um outro – seja de outro corpo ou da própria imagem no espelho – uma cisão entre um Innenwelt (mundo interno) e um Umwelt (ambiente / mundo-ao-redor). Porém, tão fantasmático quanto a imagem de um corpo esfacelado, também o é a de uma "totalidade ortopédica". Há um caráter de precipitação na formação do eu imaginário, algo que resta como impossível, como real, algo da dimensão do objeto a. Se uma imagem da unidade se forma, esta jamais poderá ser apreendida. Se o eu crê ver sua imagem refletida, este não pode ver-se vendo, não pode ver o olhar – eis a dimensão fantasmática: ver-se vendo, dai a invasão do simbólico no imaginário, ou da linguagem no visual.

Tal processo é o que vemos na escritura da histeria ou na escrita que os ficcionistas fazem onde o sujeito-escritor se denuncia ao descrever a musa na idealizada personagem, tal qual nos revela o poeta no extrato que nos serve de epígrafe. Não à toa, a formalização que Lacan dá ao conceito de fantasma possuí a seguinte apresentação: $ <> a

Donde $ está para o sujeito barrado ( S/ ), ou clivado, a está para este objeto inapreensível, suposto obturador da falta, e <>, símbolo da punção, estaria para as possíveis articulações-corte entre os elementos. A fantasia – ao menos a entendida como enredo subjetivo - é o que aludia de início como o que estaria, tanto em Freud quanto em Schnitzler, na gênese dos sonhos, delírio, devaneios etc. Freud fala de fantasias originárias, Urphantasien como, por exemplo, a novela familiar. Estas seriam as formações advindas da cena primária, Urzsene, da sedução e da castração. A castração, motor do reprimido, se daria pela visão do corpo materno em relação a um terceiro: o falo. Tendo a mãe como espelho, a criança formará, daí, seu primeiro contato com a castração. O menino supõe que o pai lhe retirou (da mãe) o pênis, sendo doravante o seu o ameaçado, já a menina suporia o seu pênis, tal qual o da mãe, já retirado, supõe-se em falta.

Qual o sentido de toda este resgate teórico-imaginário? Trata-se de perceber que o corpo se forma a partir do especular, o que já é lugar comum, mas que este especular não é um especular da visão e sim um especular do olhar com as conseqüências fantasmáticas que isso envolve. O verdadeiro problema não é o do que é visto e sim o que é, surpreendentemente, não apresentado, mostrado enquanto ausente.

O corpo ortopédico e apressadamente dado como inteiro não tarda a nos confrontar com essa mentira de pernas curtas ou longas. Como bem coloca Quinet (2002, p.232) "Em sua manobra de sedução, a histérica joga com um olhar como num jogo de esconde-esconde provocando o olho do outro que procura ver o que ela não tem." Seu corpo, funciona como um palco do gozo do olhar no qual a fantasia lhe serve de roteiro para uma mise-en-scéne paradigmática. E por falarmos em cena, palco, encenação, novela familiar, cabe aqui, para finalizar. evocarmos uma das mais contundentes frases do dramaturgo Schnitzler (apud SCHEIBLE, 1976), escritor da histeria: "Toda nossa ação sobre a terra é um Spiel", significante que como o inglês play denota: peça, encenação, mas também, jogo, brincadeira. O Olhar nos põe numa incerteza sobre a nossa função de espectadores, quando nos surpreende como atores, nos põe no jogo do acaso da tiqué, nos faz joguetes, do Outro no palco da vida. É o que suscitam as vedetes (de vedere) nos voyeurs.

Referências

LACAN, Jacques (1949/1995) – O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu, in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LACAN, Jacques (1964/1999) – O Seminário – Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

NASIO, Juan-David (1992) – O Olhar em Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

QUINET, Antonio (2002) – Um Olhar a mais – Olhar e ser visto na Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

SCHEIBLE, Hartmut (1976) - Arthur Schnitzler, Hamburgo: Rohwohlt.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 23 - Octubre 2006
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