Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Algumas palavras sobre a formação do psicanalista
Sonia Leite

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Método de verdade e de desmistificação das camuflagens subjetivas,
manifestaria a psicanálise uma ambição desmedida ao aplicar seus princípios à sua própria corporação,
isto é, à concepção que tem os psicanalistas de seu papel junto ao doente, de seu lugar na sociedade dos espíritos,
de suas relações com seus pares e de sua missão de ensino?

(LACAN, 1953, p.242)

Inicio este trabalho com esta instigante interrogação de Lacan, pelo fato de ela se articular a uma outra, que surgiu ao longo dos Encontros sobre a Formação do Psicanalista(2), realizados no Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, e que pode ser colocada da seguinte maneira : Para que serve uma instituição psicanalítica?

Deixo esta interrogação por ora em suspenso.

Lacan, no texto de 1953, Função e campo da fala e da linguagem (3), ao considerar os desvios em relação ao legado freudiano, destaca três problemas cruciais a serem abordados.

O primeiro, oriundo da psicanálise da criança e da abordagem das chamadas estruturas pré-verbais, que desembocaram nos excessos da função imaginária na experiência psicanalítica. O segundo, relacionado à noção de relações libidinais de objeto e à pretensa idéia de progressos da psicanálise que desembocaram na fenomenologia existencial ou, como afirma, num ativismo movido pela caridade. E, o terceiro, a contratransferência e, correlativamente, a formação do psicanalista, que é o tema que aqui se destaca.

Quanto a este último, enfatiza os embaraços — como denomina — do término da análise, que se juntam aos do momento em que a psicanálise didática se encerra com a introdução do candidato na prática. A expressão embaraço é interessante porque caracteriza bem aquilo de que se trata. Ou seja, ao invés de um desimpedimento, desembaraço, algo pode aí se obstruir, configurando-se numa forma de resistência.

Destaca, então, que o traço comum aos três problemas encontra-se:

(...) na tentação que se apresenta ao analista de abandonar o fundamento da fala, justamente em campos em que sua utilização, por confinar com o inefável, exigiria mais do que nunca seu exame.(4)

Sublinho, aqui, a expressão confinar com o inefável, que indica o Real aí em jogo(5) na formação do analista e que põe em destaque a exigência de simbolização e de permanente retomada desta problemática no campo psicanalítico.

Considero que é dentro desta perspectiva, isto é, de uma tentativa de simbolização do Real, que a instituição psicanalítica, ou a Escola, como Lacan preferiu denominá-la, pode se constituir num espaço privilegiado para a sustentação de uma formação que só pode ser permanente.

Destaco alguns pontos que justificam tal ambição, como denominou Lacan.

O primeiro, de ordem propriamente teórica, considera que do ponto de vista da psicanálise não há oposição entre o individual e o social(6), ou seja, aquilo que é da ordem do sujeito é, simultaneamente, da ordem do coletivo, sendo esta indissociabilidade o que permite abordar a natureza do laço social , de um ponto de vista psicanalítico.

Esta premissa se sustenta na idéia de uma primazia da linguagem na constituição do sujeito , que o aforisma lacaniano do inconsciente estruturado como uma linguagem vem destacar. Foi pautado nesta idéia que ele introduziu uma espécie de retificação(7), em 1975, afirmando que jamais havia falado de formação do psicanalista mas sim em formações do inconsciente.

Esta premissa é levada a uma tal radicalidade que ele a representará, topologicamente, através de um anel ou toro em contraposição às tradicionais representações que tinham no círculo fechado o desenho de uma oposição sem saída entre o indivídual e o social.

Os efeitos de uma tal perspectiva são expressos da seguinte maneira:

(...) a dialética não é individual e a questão do término da análise é a do momento em que a satisfação do sujeito encontra meios de se realizar na satisfação de cada um, isto é, de todos aqueles com quem ela se associa num obra humana(8).

Desta maneira, a experiência psicanalítica não pode ser pensada na exterioridade do coletivo e, quando se trata de considerar a formação do psicanalista, torna-se indispensável, tanto a análise das formas criadas no âmbito da instituição psicanalítica, que visam favorecer este processo, quanto os desdobramentos deste no campo social mais amplo.

O outro ponto que gostaria de levantar, e que é uma conseqüência do anterior, diz respeito às condiç ões necessárias para alguém se tornar um analista. Com relação a isto, Freud(9) nunca deixou de enfatizar a importância da análise pessoal como fundamento primordial desta passagem, isto é, as características de um percurso específico com seus percalços, ligados a uma história singular, possibilitadora do encontro com a verdade do inconsciente e da delimitação de um estilo próprio de bem-dizer esta verdade. Duas outras condições se articulam a esta: o estudo da teoria psicanalítica e a supervisão sob demanda. Estas são as três condições necessárias para a passagem de analisante a analista.

Considero, aqui, não ser possível desvincular estas condições porque, na realidade, as duas últimas só fundamentam uma formação analítica, na medida em que estejam atravessadas pela experiência psicanalítica do sujeito, ou seja, pelo saber inconsciente. Desta forma, o estudo teórico que conta é aquele que se constitui a partir do encontro e elaboração da angústia, ou seja, a partir de algo que atravessa o próprio corpo do analista, ou seu ser, como afirma M. Mannoni(10), acabando por produzir efeitos analíticos. Por outro lado, a supervisão deve visar um lugar êxtimo, onde o supervisor ocupando o lugar de terceiro, possibilite ao analista em formação o encontro com os ‘pontos cegos’, como nomeou Stekel, que poderão, a partir daí, se iluminar durante o percurso pessoal de análise.

Estas questões, anteriormente levantadas, deverão se constituir na própria razão de ser de uma instituição psicanalítica, em sua perspectiva de formar-ações condizentes com uma prática voltada para os princípios freudianos fundamentais.

Nunca é demais relembrar que, em 1910, quando Freud funda uma sociedade de psicanálise, seu propósito principal era garantir a manutenção de uma descoberta, ou seja, aquela que se traduz na chamada experiência originária(11). Ou seja, manter viva esta experiência, tal qual nos foi legada por Freud, é aquilo que legitimamente justificaria a existência das instituições psicanalíticas.

Esta foi uma questão crucial para Lacan, mais do que para qualquer outro analista, à medida que foi a partir de sua própria vivência na instituição que ele se deparou, paradoxalmente, com a diluição, a denegação e, porque não dizer, a recusa da experiência freudiana original.

Destaco uma questão semântica fundamental para marcar esta problemática. O que nas origens foi movimento psicanalítico, como Freud(12) denominou, tornou-se paulatinamente institucionalização da psicanálise. Ou seja, paralisação do movimento, morte da psicanálise, h ierarquicamente assegurada. Lacan vem, portanto, abrir uma fenda neste instituído, possibilitando a retomada do movimento perdido, propondo uma instituição psicanalítica atravessada pela experiência do inconsciente e renovável pelo reencontro com o Real.

Dessa forma, o Nome-de-Freud tornou-se, com o ensino de Lacan, um significante fundamental a ser transmitido para as novas gerações de psicanalistas e a Escola o espaço privilegiado para que a transferência simbólica a este Nome se mantivesse viva.

A partir destas questões um problema crucial se coloca: como manter presente a experiência do inconsciente na instituição psicanalítica, sustentando assim uma continuidade entre experiência psicanalítica e instituição psicanalítica? Ou, como indaga M. Mannoni,(13):

(..)como encontrar, nas estruturas institucionais, um lugar onde o analisante possa não só fazer o luto de seu analista, mas também colocar em comum, a experiência do inconsciente com os analistas transformados em seus pares?

Com o intuito de responder a esta questão Lacan fez a proposição do passe(14), que ele chamou a experiência do passe.

Considera que:

(...)o passe, de fato, permite a alguém que pensa que pode ser analista, alguém que está perto de se autorizar, se é que ele já não se autorizou, ele mesmo, de comunicar o que o fez decidir, o que o fez se autorizar assim e se engajar num discurso do qual não é certamente fácil ser o suporte...(15)

A seguir, afirma que o passe permitiria colocar em relevo – como um clarão – uma certa parte das inevitáveis sombras da análise do sujeito compartilhando este momento com uma comunidade. A idéia principal seria tornar viável a transmissão de um percurso analítico cuja afirmação se faria no campo coletivo no só-depois da experiência, possibilitando aos pares a oportunidade de serem afetados pelo singular daquela experiência.

Este momento reconhecido por uma comunidade definiria, por sua vez, um desejo e um compromisso por parte do sujeito que realiza esta passagem, de manter viva tal experiência na instituição e no campo psicanalítico, sustentando, em última instância, a chamada causa freudiana. Isto é, tratar-se-ia, simultaneamente, de um momento pessoal e coletivo revestido do reconhecimento de uma dívida com o momento fundador inaugurado por Freud(16).

Desde, então, muitas críticas foram feitas em torno do dispositivo do passe enfatizando-se, principalmente, seu relativo fracasso. É preciso, porém, lembrar que o objetivo desta proposta foi encontrar meios de articular a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão, numa tentativa de isolar aquilo que é o fundamento do discurso psicanalítico, o que, por si só, justificaria a necessidade de um prosseguimento das pesquisas em torno desta temática.

Um dispositivo (17) é um instrumento que coloca algo em movimento. Desta forma, prosseguir nesta experiência, construindo novos dispositivos analíticos de passagem, significaria insistir no trabalho de simbolização apontado por Lacan viabilizando o enriquecimento dos membros da comunidade psicanalítica, favorecendo a renovação da palavra e a circulação do desejo no campo institucional.

A passagem de analisante para analista implica, por outro lado, uma vivência de luto e a concomitante desidealização do lugar do analista. O que se revela ao longo de uma análise é a precariedade dos ideais, dos saberes e dos lugares construídos, abrindo-se uma aposta permanente na invenção da existência. Nesta perspectiva, o espaço institucional se coloca como lugar privilegiado, onde se torna possível testemunhar, junto aos pares, esta descoberta necessariamente renovável.

É este aprendizado que deverá ser sempre retomado, na chamada formação permanente do analista e isto implica em manter um paradoxo: Para que o analista permaneça aberto à criação, disponível ao imprevisto, é preciso um retorno contínuo a uma posição de analisante para que seja possível o re-tornar-se psicanalista, pois o lugar do analista só pode ser pensado de um modo mítico e sempre dependente de um outro (analisante, pares, etc) que assim o reconheça a partir dos efeitos de uma práxis.

Não estaria aqui o sentido da chamada análise interminável, visto o risco constante de um fechamento do inconsciente? Do mesmo modo, me parece propícia a idéia de uma análise permanente da instituição, produtora das fendas necessárias ao avanço da pesquisa psicanalítica, que responda aos inevitáveis embaraços que sempre retornam e algumas vezes impedem as trocas produtivas. A análise permanente da instituição também pode ser um caminho para a busca de novos dispositivos (no plural) que insistam na ambição lacaniana de articular a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão.

 

NOTAS:

(1)  Psicanalista. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Membro do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro.

(2)  Esses Encontros foram realizados no Corpo Freudiano do Rio de Janeiro- Brasil, no ano de 2004.

(3)  LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem, p.243.

(4)  LACAN, J. (1953)op cit,p.244.

(5)  LACAN,J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, p.249.

(6)  FREUD, S. (1921) Psicologia de massa e análise do eu.

(7)  LACAN, J. (1975) Sobre o passe.

(8)  LACAN, J.(1953) op cit, p.322.

(9)  FREUD, S. (1911-1915) Escritos técnicos.

(10) MANNONI, M. Da paixão do ser à "loucura" de saber.

(11) MANNONI,O L´analyse originelle.

(12) FREUD, S. (1914) A história do movimento psicanalítico.

(13) MANNONI, M. op cit, p.10.

(14) LACAN, J. (1967) op cit.

(15) LACAN, J. (1975) op cit.

(16) BRAZIL, H.V. Uma prática de significância e a institucionalização da psicanálise – o passe freudiano.

(17) Talvez a perspectiva mais adequada seja aquela que implica a construção de dispositivos,no plural.

Referências Bibliográficas:

BRAZIL, H.V.Uma prática de significância e a institucionalização da psicanálise – o passe freudiano. MIMEO,s/d, SPID(Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle – RJ, Brasil)

FREUD, S. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Ed.: Rio de Janeiro, 1977.

________(1911-1915) Escritos Técnicos.

________(1914) A história do movimento psicanalítico.

________(1921) Psicologia de massa e análise do eu.

LACAN,J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos, Jorge Zahar Ed:RJ, 1998.

_________Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros Escritos, Jorge Zahar Ed: RJ, 2003.

_________Sobre o passe. In: Lettres de L´École Freudienne,número 15, p.185-193, junho de 1975.

MANNONI, M. Da paixão do ser à "loucura" de saber. Jorge Zahar Ed:RJ, 1989.

MANNONI, O L´analyse originelle. In: Clefs pour l´imaginaire ou l´autre scène. Éditions du Seuil:Paris, 1969.

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Número 22 - Diciembre 2005
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