Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Memória, afeto e representação
o lugar do Projeto... no desenvolvimento inicial da metapsicologia freudiana
Richard Theisen Simanke

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I. Introdução

A significação geral do Projeto... (Freud, 1895/1950) para a construção da obra freudiana continua sendo uma questão controversa. Uma boa parte da divergência de opiniões pode, no entanto, ser creditada às diferentes avaliações sobre o sentido desta obra como um todo e, em particular, da metapsicologia, da qual o Projeto... constituiria um primeiro rascunho. É claro que uma interpretação que reconheça a inspiração naturalista de Freud - de resto, bastante inequívoca, se se estiver disposto a conceder o devido peso a suas afirmações explícitas - tenderá a considerar com menos espanto as fórmulas neuropsicológicas avançadas em 1895, ao passo que, para as leituras humanísticas, hermenêuticas e outras com este tipo de inclinação, essas mesmas fórmulas só poderão aparecer como o resquício pré-histórico de uma concepção ultrapassada do homem e da mente, que Freud, em sua originalidade, rapidamente teria deixado para trás. Diante disso, então, talvez seja melhor política procurar apreender o sentido da metapsicologia a partir dos momentos iniciais de sua elaboração e, antes de se perguntar pela significação geral do Projeto... para o percurso total de suas elaborações, recolocar a questão sobre o lugar que este trabalho ocupa neste contexto e como ele se insere entre os primeiros passos da reflexão metapsicológica de Freud.

Mesmo aí, contudo, a divergência apontada acima se faz sentir. Há os que atribuem uma origem muito precoce para as formulações mais inovadoras de Freud: estas já se fariam presentes no âmbito das investigações neurológicas e clínicas das quais este partiu e poderiam ser remontadas, por um lado, ao ensaio crítico sobre as afasias (Freud 1891) - onde despontariam a inclinação pela psicologia, a consideração autônoma do mental com relação à sua base anatômica, o destaque concedido à linguagem - e, por outro lado, às primeiras investigações em torno das neuroses e da histeria em particular (Freud 1893; Freud e Breuer 1895, entre outros), onde se consolidariam as primeiras considerações sobre o sentido histórico e individual dos sintomas e sobre a tarefa da interpretação. O Projeto..., por sua vez, consistiria num recuo com relação a esta tendência inicial, uma última recaída do Freud neurologista em seu apego ao modelo cientificista, materialista e naturalista que sua formação médica lhe proporcionou, antes que ele enfim se rendesse definitivamente às evidências dos fatos e enveredasse de vez pelo caminho que conduziria à fundação da psicanálise [1]. Assim, para Garcia-Roza, por exemplo:

"Freud inicia seu texto [o Projeto...] firmando o propósito de oferecer o projeto de uma psicologia entendida como uma ciência natural (eine naturwissenschaftliche Psychologie).

É no mínimo surpreendente que, após a publicação de A interpretação das afasias e dos Estudos sobre a histeria, o futuro autor de A interpretação de sonhos proponha uma psicologia como uma ciência natural. (Garcia-Roza 1991, p. 71)"

Ainda que numa análise muito mais sutil - que, de forma alguma, se restringe a este tipo de recusa gratuita do naturalismo freudiano -, encontramos em Monzani (1989) a reiteração dessa posição que vê uma continuidade entre os pressupostos teóricos e princípios metodológicos assumidos por Freud desde suas primeiras investigações que roçaram o campo da psicologia e o momento da fundação oficial da psicanálise em A interpretação dos sonhos, continuidade cuja grande brecha estaria localizada justamente no Projeto...:

"O que estamos tentando sublinhar, em função da questão com que estamos trabalhando (se A interpretação dos sonhos representa ou não uma ruptura no discurso freudiano), é o fato dessa construção elaborada por Freud estar numa perfeita continuidade com os princípios e orientações teóricas que estabelece desde 1891 ao nível de sua obra publicada. Nesse sentido, a grande ruptura está no Projeto... e não em A interpretação dos sonhos". (Monzani 1989, p. 136-7)

A mesma posição é reafirmada a seguir:

"(...) quando comparamos o arsenal metodológico que Freud articula no capítulo VII com o texto sobre a "Afasia", percebemos que se tratava do mesmo tipo de operação e que, portanto, nessa linha, a grande exceção cabe ao Projeto..., ao passo que A interpretação dos sonhos é a aplicação metódica de um conjunto de princípios que desde há muito Freud mantém". (Monzani 1989, p. 138)

Esses dois exemplos bastam para ilustrar o pano de fundo sobre o qual o presente artigo se propõe a rediscutir a posição do Projeto... na obra inicial de Freud e a argumentar, em novas bases, pela continuidade entre o que aí se formula e os trabalhos imediatamente precedentes, ou seja, os que versam sobre as neuroses e a histeria, por um lado, e a monografia sobre as afasias, por outro [2]. Com relação aos primeiros, trata-se de mostrar como a concepção do mecanismo da neurose como perturbação da relação entre representação e afeto ganha espaço ao longo da colaboração de Freud e Breuer e recebe uma primeira sistematização no capítulo teórico dos Estudos sobre a histeria redigido por este último (Breuer 1895). Já foi apontado como a insatisfação de Freud com a teoria da histeria apresentada por Breuer teria sido uma das motivações imediatas para a redação do Projeto... (Silverstein 1985; Gabbi Jr. 2003). Contudo, uma série de semelhanças entre os dois textos pode ser identificada, tornando duvidoso que esta insatisfação de Freud tenha-se traduzido pura e simplesmente num esforço para refutar as teses breuerianas, principalmente no que diz respeito à natureza do psíquico e ao sentido do conceito de representação. Ao contrário, é possível mostrar que estas últimas - entre as quais merece destaque a afirmação do caráter afetivo e, simultaneamente, inconsciente da representação - reaparecem no âmbito do Projeto..., mas desprovidas da restrição que Breuer lhes impunha, por considerá-las tão somente como uma exceção patológica característica da histeria e dependente das condições específicas desta neurose, aí incluídos fatores constitucionais hipotéticos tais como os famosos "estados hipnóides". Diante disso, o que se tentará mostrar na continuidade é que, sob muitos e decisivos aspectos, os desenvolvimentos conceituais propostos por Freud no Projeto... podem ser melhor entendidos como um esforço de generalização e ampliação do alcance das teses de Breuer - deixando de lado a questão da medida em que o capítulo assinado por ele contém já formulações freudianas - do que de refutação das mesmas; essa generalização concordaria, isso sim, com a inclinação de Freud em diminuir o papel dos fatores constitucionais e ampliar o dos fatores históricos e adquiridos na determinação da neurose, contribuindo decisivamente para a constituição do ideário psicanalítico [3].

No que diz respeito ao modo como o Projeto... prolonga a reflexão metapsicológica esboçada em Sobre a concepção das afasias - muito ao contrário de consistir em um recuo com relação às mesmas - , o objetivo é mostrar de que maneira o texto de 1895 vai, de uma parte, tornar mais precisas algumas das concepções articuladas naquele ensaio, principalmente no que se refere ao processo de constituição das representações em relação com sua base neural, e, de outra parte, complementá-las, na medida em que dá solução para problemas que ali não podiam ainda ser adequadamente abordados, em função das próprias opções teóricas assumidas por Freud naquele momento, com destaque para o problema da memória. O fato de que uma teoria da memória era um componente imprescindível para a teoria das neuroses que Freud estava em vias de elaborar e, ao mesmo tempo, de que o aperfeiçoamento e a ampliação do conceito breueriano de representação afetiva depende de certos elementos da doutrina da representação alinhavada no ensaio sobre as afasias permite estabelecer nexos inteligíveis em ambos os sentidos e expor a solidariedade entre as duas séries de questões. Trata-se, enfim, não apenas de evidenciar que o Projeto... não é um trabalho de exceção (e por isso abandonado) no conjunto das produções freudianas iniciais, mas também que é o ponto privilegiado de convergência entre duas linhas de reflexão já em curso no pensamento freudiano: a explicação das neuroses, da qual emergirão conceitos cruciais para a teoria psicanalítica, e os primeiros movimentos na elaboração de um fundamento conceitual comum para a psicopatologia e as funções psicológicas normais, que tem o conceito de representação por eixo e já merece a designação de metapsicologia.

 

II. Do afeto à quantidade: a generalização do conceito de representação afetiva.

A questão das relações entre Freud e Breuer e da contribuição efetiva deste último para a constituição da doutrina psicanalítica já deu margem a demasiadas polêmicas. Sem querer retomá-las aqui, cabe, no entanto, assinalar que uma consideração mais atenta do capítulo teórico por ele redigido para os Estudos sobre a histeria revela semelhanças substanciais com o Projeto..., fazendo suspeitar de uma relevância bastante mais significativa de suas idéias para o desenvolvimento das concepções freudianas [4], ainda mais se se despoja este último texto de seu caráter de desvio ou exceção no percurso inicial do pensamento de Freud. Ao longo da colaboração entre Freud e Breuer, toma forma uma teoria da histeria alternativa para a concepção charcotiana da qual Freud partiu. Cada vez mais, a idéia de um conflito psíquico que envolve representações carregadas de um afeto incapaz de ser derivado pelas vias normais impõe-se como fator patogênico dos distúrbios histéricos. Ao mesmo tempo, impõe-se o reconhecimento do papel crucial desempenhado pelos determinantes inconscientes desses processos, o que, aliado às inclinações progressivamente psicológicas da teoria, aponta para a idéia de um inconsciente psíquico ativo e eficaz, constituído por representações intensamente carregadas de afeto. A admissão deste inconsciente psíquico é, por muito tempo, hesitante em ambos os autores, por razões teóricas que dizem respeito à sua própria concepção sobre a natureza da mente e o sentido do conceito de representação. Assim, por exemplo, em As neuropsicoses de defesa, podemos ler:

"A separação entre a representação sexual e seu afeto e o enlace deste último com uma outra representação, adequada mas não inconciliável: estes são processos que ocorrem sem consciência, que se pode apenas supor, mas não demonstrar através de nenhuma análise clínico-psicológica. Talvez fosse mais correto dizer: estes não são, de modo algum, processos de natureza psíquica, mas sim processos físicos, cuja conseqüência psíquica apresenta-se como se, de fato, tivesse ocorrido o que foi dito através das expressões "separação entre a representação e seu afeto e enlace falso deste último"". (Freud 1894, p. 67)

O que se manifesta aqui são ainda os princípios metodológicos de Hughlings Jackson que nortearam o trabalho freudiano sobre as afasias e que exigem uma cuidadosa distinção entre os aspectos neurológicos e psicológicos na consideração das doenças do sistema nervoso. Em outro trabalho, procuramos apontar como o paralelismo psicofisiológico praticamente impõe a identificação entre o psíquico e o consciente, mesmo na elaborada versão jacksoniana, consideravelmente depurada das confusões conceituais do atomismo associacionista (Simanke 2004). Esse referencial torna compreensíveis as ressalvas que se expressam nos cuidados com que Freud cerca, em seus primeiros trabalhos sobre a histeria, as afirmações referentes à presença e à ação de fatores psíquicos inconscientes na determinação dos sintomas neuróticos. Esses mesmos princípios metodológicos são enunciados por Breuer, de forma ainda mais explícita, na própria abertura da Parte Teórica (Theoretisches) dos Estudos..., dando bem a medida da influência de Jackson que aí ainda se exerce, com certeza mediada por Freud. Trata-se de explicitar os termos em que ele procurará, na continuidade, estabelecer as bases conceituais de sua teoria sobre "o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos", segundo a fórmula expressa no título da Comunicação preliminar (Freud e Breuer 1893). Logo:

"Nessas discussões, falar-se-á pouco do cérebro e nada das moléculas. Os processos psíquicos devem ser tratados na linguagem da psicologia e, a bem da verdade, as coisas não podem passar-se de outra maneira. Se, em vez de "representação" disséssemos "excitação cortical", esta última expressão só teria sentido para nós se, nesse disfarce, reconhecêssemos o que nos é bem familiar e implicitamente restituíssemos outra vez a "representação". Pois, enquanto que as representações são continuamente objetos de nossa experiência e nos são bem conhecidas em todas as suas nuanças, "excitação cortical" é, para nós, mais um postulado, um objeto de conhecimento futuro e esperado. Aquela substituição dos termos parece uma inútil mascarada". ( Breuer 1895, p. 244)

Basta comparar com as afirmações de Freud em Sobre a concepção das afasias que vão nessa mesma direção para constatar a continuidade que entre elas:

"Eles [os autores criticados] consideravam apenas que a modificação da fibra nervosa pela excitação sensorial - que pertence à fisiologia - provoca na célula nervosa central uma outra modificação, que se torna então o correlato fisiológico da "representação". Como sobre a representação eles sabem dizer muito mais do que sobre as modificações fisiológicas, desconhecidas e ainda não caracterizadas, servem-se da expressão elíptica: na célula nervosa estaria localizada uma representação. Só que essa substituição leva também a uma confusão entre duas coisas que não precisam ter nenhuma semelhança uma com a outra". (Freud 1891, p. 99)

Nada de surpreendente, então, no fato de que Breuer cerque suas afirmações do caráter inconsciente do material e dos mecanismos psíquicos - isto é, das representações - responsáveis pela produção dos sintomas histéricos do mesmo tipo de cautelas e ressalvas, chegando a desqualificar o problema como uma mera disputatio terminológica:

"O que se objeta à existência e à eficácia de 'representações inconscientes' parece, em grande parte, um artifício verbal. É certo que "representação" é uma palavra que provém da terminologia do pensamento consciente e, por aí, "representação inconsciente" é uma expressão contraditória. Mas o processo físico que está na base da representação é, quanto a forma e conteúdo (quando não quantitativamente), o mesmo, quer a representação ultrapasse o limiar da consciência ou permaneça abaixo dele. Bastaria construir uma locução como "substrato da representação" para evitar a contradição e escapar daquela repreensão". (Breuer 1895, p. 282)

Observe-se que, nessa passagem, Breuer se empenha em manter a concepção tradicional sobre as relações entre a intensidade psíquica da representação e a viabilidade de seu acesso à consciência: este último depende da ultrapassagem de um certo limiar, abaixo do qual o processo cerebral prossegue, sem alterar suas características essenciais, apenas não mais dispondo de intensidade suficiente para fazer-se perceber pela consciência. Fica clara, aliás, a equiparação da consciência a um órgão de percepção interna que, tal como os órgãos dos sentidos, só é excitável por estímulos cuja intensidade supere um certo nível mínimo. No limite, essa concepção efetivamente exclui a possibilidade de uma representação ser stricto sensu inconsciente [5]: o inconsciente se torna aí tão somente uma espécie de limite ideal do processo de desvanecimento da intensidade psíquica da representação, ao cabo do qual, cessando a capacidade da mesma de fazer-se notar, cessa igualmente sua capacidade de produzir efeitos na consciência, em outras palavras, sua eficácia e, mesmo, sua existência enquanto fator psicológico. Mas esse reconhecimento hesitante e oblíquo da existência de representações inconscientes no que diz respeito ao funcionamento normal da mente contrasta vivamente com o modo como o papel das mesmas é estabelecido quando se trata de descrever o mecanismo psíquico da histeria. É aí que se manifestará a originalidade da concepção breueriana, na qual se afirmará a plena eficácia psíquica e a grande intensidade afetiva das representações inconscientes em ação na patogênese dos sintomas histéricos: elas estariam mesmo entre as mais intensas de que se tem notícia no conjunto da atividade psíquica.

Essa concepção é a que foi elaborada ao longo dos anos da colaboração com Freud e que Breuer exporá da forma mais sistemática na Parte Teórica dos Estudos sobre a histeria. Sua originalidade deriva de sua conexão com uma concepção da histeria como resultante de um conflito afetivo que acaba por determinar uma divisão no psiquismo, o que faz com que a representação patogênica seja inconsciente não apesar de seu caráter intensamente afetivo, mas justamente por causa desse caráter. É a partir dessa concepção que emerge da clínica dos fenômenos histéricos - desta que Geerardyn (1993) designa como uma "clínica da representação excessivamente intensa" - que toma forma, no decorrer desses trabalhos, a noção de um inconsciente representacional, apesar das ressalvas e cautelas impostas por uma certa concepção da mente e da consciência ainda compartilhada pelos dois autores.

É possível observar o processo de formação dessas concepções desde os primeiros trabalhos de Freud sobre a histeria (Freud 1888), onde referências aos aspectos dinâmicos do mecanismo de formação dos sintomas aparecem lado a lado com o hesitante reconhecimento do caráter psíquico dos componentes inconscientes envolvidos. A dimensão afetiva destes mecanismos - que será depois explicitamente nomeada como tal - aparece aqui ainda expressa apenas em termos de uma movimentação de quantidades de excitação nervosa:

"Trata-se de alterações no decurso e na associação entre representações, de inibições da atividade voluntária, de acentuação e sufocação de sentimentos, etc., que se resumiriam, em geral, como modificações na distribuição normal, sobre o sistema nervoso, das magnitudes de excitação estáveis". (Freud 1888, p. 54, grifos do autor)

Como se vê, os fatores dinâmicos e representacionais aparecem inicialmente justapostos e, com efeito, apenas a partir do momento em que as interações recíprocas entre ambos forem estabelecidas é que se poderá falar de uma conceitualização efetiva dos fenômenos histéricos como um distúrbio do afeto. A modificação na distribuição normal das excitações nervosas que é aí referida é imediatamente caracterizada como uma intensificação patológica que cria um "excedente de excitação no sistema nervoso" (Freud 1888, p. 54-5), a qual é responsável pelas perturbações psíquicas mencionadas. Correlativamente ao fato de que o afeto é, até este momento, abordado tão somente em sua vertente neurofisiológica - como uma Erregungssumme (soma de excitação) que pode intensificar-se anormalmente e, com isso, experimentar uma distribuição igualmente anormal -, as perturbações na esfera da representação que daí decorrem só podem ser caracterizadas como inconscientes também em termos neurológicos: "as alterações psíquicas se desenvolvem por inteiro no âmbito da atividade encefálica inconsciente, automática" (ibidem, p. 54, grifos nossos), fórmula que prenuncia claramente a concepção do sintoma histérico como resultado de um reflexo anormal do sistema nervoso, que Breuer apresentará no capítulo teórico dos Estudos... É ainda nesse sentido que o inconsciente começa a ser enunciado na forma substantiva que se firmará, mais tarde na metapsicologia freudiana: "O desenvolvimento de perturbações histéricas freqüentemente requer, no entanto, uma espécie de período de incubação, ou melhor, de latência, durante o qual segue produzindo efeitos no inconsciente" (ibidem, p. 58, grifos nossos). Mas, apesar disso e de todas as moções de cautela que se seguirão, a possibilidade de se falar em uma representação inconsciente começa já a aflorar neste texto, muito embora o fato de que tal menção se dê somente no momento de precisar os objetivos do tratamento da histeria deixe claro que é ainda no plano clínico que essa noção começa a se impor: "O tratamento direto consiste na eliminação da fonte de irritação psíquica para os sintomas histéricos, e é compreensível que as causas da histeria sejam buscadas no representar inconsciente" (ibidem, p. 62, grifos nossos). Quase a título de conclusão, Freud apresenta uma espécie de tentativa de síntese dos elementos dispersos nessas passagens, retomando as formulações neurofisiológicas sobre o afeto e procurando relacioná-las aos processos representacionais, cuja natureza inconsciente continua a ser apenas timidamente reconhecida:

"(...) a histeria é uma anomalia do sistema nervoso, que repousa em uma distribuição diversa das excitações, provavelmente com formação de um excedente de excitação dentro do órgão anímico. Sua sintomatologia mostra que esse excedente é distribuído por representações conscientes ou inconscientes". (Freud 1888, p. 62-3)

É a noção de uma cisão psíquica que começa a tornar mais precisa essas intuições clínicas sobre a natureza dos fatores inconscientes em ação na histeria. Em seu estudo comparativo sobre as paralisias orgânicas e histéricas (Freud 1893), Freud irá, finalmente, avançar uma hipótese sobre a "fórmula fisiopatológica" da histeria, cuja necessidade fora por ele enunciada no texto de 1888 (Freud 1888, p. 45). Aí já se expressaria a discordância com relação a um aspecto da concepção charcotiana de que os sintomas histéricos poderiam ser remetidos a uma lesão exclusivamente dinâmica e funcional, ou seja, a um processo fisiológico anormal, provavelmente decorrente da disposição hereditária específica da histeria, que ocorresse no mesmo lugar em que uma lesão material ou estrutural do tecido nervoso teria ocasionado uma perturbação orgânica. Assim, um processo deste tipo no córtex motor produziria uma paralisia histérica, ao passo que uma lesão material de mesma localização produziria uma paralisia orgânica. O argumento de Freud em seu artigo é que, neste caso, as paralisias histéricas deveriam possuir as mesmas características que as orgânicas, encontrando-se igualmente restringidas pela anatomia real do sistema nervoso, o que a observação clínica revela não ser o caso. Contudo, ao contrário do que parece acreditar Andersson (1962, p. 85), Freud está longe de recusar totalmente a tese charcotiana de uma lesão exclusivamente dinâmica e funcional como causadora do sintoma histérico. Ele não só a endossa, como se propõe a precisá-la, a título mesmo de conclusão de seu estudo:

"Tratarei, enfim, desenvolver como poderia ser a lesão que é a causa das paralisias histéricas. Não digo que mostrarei como ela é de fato; trata-se somente de indicar a linha de pensamento que pode conduzir a uma concepção que não contradiga as propriedades da paralisia histérica, no que ela difere da paralisia orgânica cerebral.

Tomarei a expressão "lesão funcional ou dinâmica" em seu sentido próprio: "alteração de função ou de dinamismo", alteração de uma propriedade funcional. Uma tal alteração seria, por exemplo, uma diminuição da excitabilidade ou de uma qualidade fisiológica que, no estado normal, permanece constante ou varia dentro de limites determinados". (Freud 1893, p. 51-2, grifos do autor)

Qual é, então, a discordância entre Freud e Charcot nesse momento? Para identificá-la, temos que levar em conta que o trabalho sobre as paralisias empenha-se, explicitamente, em aproveitar, na consideração da histeria, os resultados da reflexão freudiana sobre a afasia, reunidos no ensaio publicado dois anos antes (Freud 1893, p. 41). Esta intenção se manifesta desde a distinção inicial, no âmbito das paralisias orgânicas, entre as paralisias perifero-espinais ou de projeção e as paralisias cerebrais e corticais ou de representação [6]. Ora, o principal alvo da monografia de 1891 era a teoria das localizações cerebrais, o que indica que o essencial da discordância de Freud com Charcot seria quanto ao caráter localizado atribuído por este último à lesão dinâmica ou funcional responsável pelo distúrbio histérico (cf. Andersson 1962, p. 59). Em outras palavras, o que o trabalho sobre as afasias procurou mostrar é que um processo cerebral dinâmico é sempre e necessariamente global; que, mesmo no caso em que há lesões materiais localizadas, o distúrbio decorrente só se explica por um padrão de reação da atividade cortical à desorganização funcional causada pelo trauma orgânico, e não, como queria o localizacionismo, pela atribuição à região lesada do papel de sede da função perdida ou prejudicada. A explicação de Hughlings Jackson para a formação dos restos de linguagem nos quadros afásicos é mencionada por Freud em Sobre a concepção das afasias (Freud 1891, p. 105) e pode ser considerada o modelo para a noção de lesão funcional que Freud propõe em 1893. Segundo os princípios da análise jacksoniana das perturbações da linguagem, o fato negativo da lesão só pode responder pela perda de função ocorrida, mas não pelo funcionamento que se instala após a mesma: o afásico fala, todavia, e é necessário ir buscar em outro lugar as razões de sua fala. A hipótese da retrogressão funcional decorrente da liberação dos processos mais primitivos pela dissolução dos mais evoluídos explica, por exemplo, a permanência da linguagem emocional pré-proposicional, o uso significativo de expressões simples de uso muito freqüente, como "sim" e "não", etc. O caso específico dos restos de linguagem - isto é, as recurrent utterances de Jackson, expressões estereotipadas e repetitivas, em geral relacionadas a algum aspecto do acidente que causou a lesão - é explicado pelo isolamento e intensificação do processo lingüístico em curso no momento do acidente em decorrência de uma espécie de distúrbio dinâmico generalizado, concebido ao modo das perturbações epilépticas, que se segue ao choque (Forrester 1980, p. 42 ; Jackson 1878, p. 172-8, principalmente). Essa condição pode perfeitamente ser considerada uma lesão funcional: o isolamento de um processo cortical, que se torna inacessível e patologicamente intensificado por uma perturbação dinâmica da atividade cerebral global. No caso da afasia, essa lesão funcional é causada pelo ataque epileptóide que se segue à lesão material, mas fica aberta a possibilidade de que uma lesão desse tipo seja causada por um fator distinto de uma lesão material do córtex e, nesse caso, se poderia falar de uma lesão exclusivamente funcional e dinâmica, como queria Charcot, com a condição evidente de se renunciar ao caráter localizado que este lhe atribuía, incompatível tanto com o fundamento conceitual que Freud vai buscar em Jackson quanto com a fenomenologia clínica da histeria. É uma concepção desse tipo que Freud procura avançar em seu trabalho sobre as paralisias histéricas e, de fato, a explicação jacksoniana dos restos de linguagem servirá de modelo para a teoria do trauma que Breuer e Freud desenvolvem em conjunto em seu esforço de generalizar, para a totalidade dos fenômenos histéricos, o modelo explicativo da histeria traumática proposto por Charcot [7]. É nesse sentido que se pode entender a explicação psicológica da paralisia histérica formulada por Freud em 1893 como a "fórmula fisiopatológica" à qual ele chega, enfim:

"A lesão da paralisia histérica será, então, uma alteração da concepção, da idéia de braço, por exemplo. (...) Considerada psicologicamente, a paralisia do braço consiste no fato de que a concepção do braço não pode entrar em associação com as outras idéias que constituem o eu, do qual o corpo do indivíduo forma uma parte importante. A lesão seria então a abolição da acessibilidade associativa da concepção do braço. O braço se comporta como se não existisse para o jogo das associações. Com certeza, se as condições materiais que correspondem à concepção do braço se encontrarem profundamente alteradas, essa concepção estará perdida também; porém, pretendo mostrar que ela pode estar inacessível sem que esteja destruída e sem que seu substrato material (o tecido nervoso da região correspondente do córtex) esteja danificado". (Freud 1893, p. 52-3, grifos do autor) [8]

As considerações anteriores servem para prevenir uma interpretação do emprego que Freud faz do termo "lesão" neste contexto como puramente metafórica: uma lesão funcional é justamente este tipo de isolamento associativo devido ao fato de que os demais processos corticais não conseguem inervar um certo circuito. Uma lesão exclusivamente funcional seria aquela em que este isolamento é causado tão somente pelas vicissitudes dos processos dinâmicos que constituem a atividade cortical - isto é, sem um traumatismo físico - , levando àquela "distribuição diversa das excitações" de que Freud falara anteriormente, onde o círculo de representações segregado permanece, não obstante, dotado de uma excitabilidade própria (e elevada) que, juntamente com sua dissociação, é necessário ainda justificar.

A justificativa freudiana recoloca em cena a dimensão afetiva do processo, agora explicitamente nomeada enquanto tal. Esta referência alinhava os diferentes aspectos dos mecanismos patogênicos da histeria, a saber, sua natureza afetiva e traumática, a dissociação da consciência (ou cisão psíquica) que daí resulta, o caráter inconsciente dos processos psíquicos envolvidos:

"Se a concepção do braço está engajada em uma associação de um grande valor afetivo, ela será inacessível ao livre jogo das outras associações. O braço estará paralisado na proporção da persistência deste valor afetivo ou de sua diminuição por meios psíquicos apropriados. Esta é a solução do problema que colocamos, pois, em todos os casos de paralisia histérica, descobre-se que o órgão paralisado ou a função abolida estão envolvidos em uma associação subconsciente que está munida de um grande valor afetivo, e pode-se mostrar que o braço se libera tão logo este valor afetivo se desvaneça. Então, a concepção do braço existe no substrato material, mas ela não está acessível para as associações e impulsos conscientes, porque toda sua afinidade associativa, por assim dizer, está saturada em uma associação subconsciente com a recordação do acontecimento, do trauma que produziu essa paralisia". (Freud 1893, p. 53-4, grifos do autor)

A fórmula do sintoma histérico, portanto, inclui uma quota de afeto excessivamente intensa que motiva uma associação compulsiva entre o círculo de representações patogênicas - aquilo que, no último capítulo dos Estudos... Freud chamará de núcleo traumático ou patogênico (Freud 1895, p. 290-3) - e aquelas diretamente relacionadas com a forma manifesta do sintoma, além do caráter inconsciente atribuído a essa associação compulsiva e, por extensão, às representações nela envolvidas. O capítulo teórico dos Estudos... redigido por Breuer dá continuidade a essas reflexões, prolongando-as num conjunto de hipóteses etiológicas - as causas da intensificação patológica do afeto, da compulsão associativa e da cisão psíquica que daí resulta - e numa neuropsicologia especulativa que busca fornecer-lhes a adequada fundamentação teórica, cujo estilo por si só não deixa de lembrar o do Projeto... Tratar-se-á aí de: 1) fornecer uma definição de afeto; 2) especificar a sua condição de um fator patogênico potencial; 3) especificar as condições em que esse potencial se atualiza numa perturbação neurótica; 4) propor um mecanismo psicológico para a formação dos sintomas, cuja descrição é preparada pelas considerações anteriores.

Embora Breuer afirme não estar empenhado em propor "nem uma psicologia, nem uma fisiologia dos afetos" (Breuer 1895, p. 259), há, de fato, em seu texto, pelo menos um esboço de uma tal teoria, que se organiza em torno da noção de excitação tônica intracerebral (intrazerebrale tonische Erregung) [9]. A idéia é que as características da atividade cerebral - a alternância entre sono e vigília, a preparação para a ação, os estados de expectativa - pressupõem que o tecido nervoso do encéfalo não consista apenas num mero veículo de excitações recebidas pela via sensorial e que precisem ser descarregadas pela via motora ou pela associação, mas que esteja dotado de uma reserva de excitação própria, que é justamente o que lhe permite funcionar adequadamente; em outras palavras, o cérebro e o córtex, em particular, devem encontrar-se tonificados por um estado permanente de tensão e não consistir em sistemas inertes, capazes apenas de serem movidos pela ação mecânica de forças externas - mais ou menos como o modelo inicial do aparelho neuronal do Projeto..., regido ainda pelo princípio de inércia (Freud 1895/1950, p. 388). A esse montante de excitação, que não provém nem da percepção nem dos estímulos endógenos, mas que é um patrimônio próprio do sistema de fibras associativas que interconecta e estrutura a atividade cerebral é que Breuer denomina excitação tônica intracerebral:

"Se todas as células nervosas se encontram em um estado de excitação mediana e excitam a seus prolongamentos nervosos, toda essa imensa rede forma um reservatório unitário de "tensão nervosa". Assim, além da energia potencial que repousa no patrimônio químico da célula e daquela forma de energia cinética desconhecida por nós que, no estado de excitação, percorre as fibras, teríamos que supor ainda um estado de repouso da excitação nervosa, a excitação tônica ou tensão nervosa". (Breuer, 1895, p. 253, nota, grifos do autor)

As alterações no nível desta excitação tônica intracerebral, desde que mantida sua distribuição regular e homogênea, responderia pelas oscilações normais do ciclo sono-vigília. Uma alteração na distribuição dessa excitação, fazendo com que ela se concentre sobre as regiões do encéfalo empenhadas na execução de tarefas que exigem maior esforço, faz parte igualmente do funcionamento normal do sistema nervoso. Porém, o incremento dessa excitação além de um certo nível, em condições disfuncionais - quando uma necessidade orgânica não pode ser satisfeita, por exemplo - dá origem a sentimentos de desprazer que denunciam o princípio enunciado por Freud que afirma a existência, no organismo, de "uma tendência a manter constante a excitação intracerebral" (Breuer 1895, p. 256, grifos do autor). É possível que um aumento de tensão seja uma reação adequada diante de situações excepcionais que exijam um desempenho mais eficiente em certas operações; sempre que a distribuição desse excedente corresponder às necessidades da função, a atividade cerebral permanece dentro dos limites da normalidade. No entanto, uma distribuição desigual deste excesso, característica dos estados de desequilíbrio emocional ou agitação (Aufregung), é, não apenas desprazeroso (como todo aumento de tensão, em conformidade com a tendência à constância), mas também prejudicial para a capacidade de operação do sistema. Assim:

"Enquanto que a incitação (Anregung) apenas desperta o impulso para a valorização funcional da excitação acrescentada, a agitação (Aufregung) busca descarregar-se em processos mais ou menos enérgicos, que roçam o patológico ou o são efetivamente. Ela constitui a base psicofísica dos afetos (...)". (Breuer 1895, p. 257)

Embora tais aumentos disfuncionais de excitação (as Aufregungen) possam originar-se das necessidades orgânicas não satisfeitas (fome, sede, respiração), o caso de maior interesse teórico para uma explicação psicológica da neurose é, evidentemente, aquele em que este incremento possui uma origem psíquica, quando então se poderá falar de afetos em sentido estrito. É nesse contexto que é introduzida formalmente essa noção central da argumentação de Breuer - a que fornece o nexo para sua aproximação com as teses que Freud desenvolve no Projeto... - , que é a de representação afetiva (affektive Vorstellung).

Apesar de tudo o que se disse sobre a reticência de Breuer em aceitar as teses freudianas sobre o papel da sexualidade na etiologia da histeria, é justamente a este propósito que a noção de representação afetiva será introduzida. A razão é clara: a sexualidade serve como elemento de transição entre o desequilíbrio excitatório produzido pelas necessidades orgânicas e o afeto propriamente dito. Embora se trate de uma exigência biológica, a sexualidade tem essa peculiaridade de desencadear processos excitatórios mediante o mero surgimento da representação do objeto sexual. Esta representação surge, assim, como a causa eficiente da liberação afetiva:

"A excitação sexual e o afeto sexual constituem a transição entre estes acréscimos endógenos de excitação e os afetos psíquicos em sentido estrito. (...) Esta representação [do sexo oposto, do objeto sexual] toma posse da quantidade integral de excitação que é liberada pela pulsão sexual; passa a ser uma "representação afetiva". Isto é, pelo fato de tornar-se atual dentro da consciência, ela desencadeia o aumento de excitação que, na verdade, provém de outra fonte, as glândulas sexuais". (Breuer 1895, p. 258-9, grifos nossos).

O afeto consiste, assim, na liberação de um certo montante de excitação somática mediada por uma representação, que é, por isso mesmo, definida como representação afetiva. O papel determinante desta última com relação ao afeto fica ainda mais claro nos estados afetivos agudos típicos (cólera, terror, euforia, etc.), onde não se encontra presente essa fonte de excitações somáticas mais ou menos contínuas que é a sexualidade. A natureza potencialmente patológica dos afetos é enunciada quando Breuer observa que, mesmo no caso da excitação sexual normal, fica prejudicado o processamento psíquico das sensações (a percepção), o pensamento e, mais genericamente, o processo representacional enquanto tal: "Todos os afetos intensos prejudicam a associação, o decurso da representação" (Breuer 1895, p. 260). Essa característica de consistir, em todos os casos, numa perturbação da atividade nervosa e psicológica participa, portanto, da própria definição de afeto que Breuer apresenta a seguir: "Uma tal perturbação do equilíbrio dinâmico do sistema nervoso, a distribuição desigual da excitação acrescentada, produz justamente o lado psíquico dos afetos" (Breuer 1895, p. 259).

A manifestação afetiva permanecerá normal na medida em que o montante de excitação acrescentado puder ser tramitado sem maiores problemas, cumprindo-se assim a tendência à constância da excitação intracerebral. As vias normalmente disponíveis para este trabalho são a descarga motora (que elimina o excesso) ou a associação (que o distribui pelos circuitos representacionais, restabelecendo o equilíbrio dinâmico). A expressão pela linguagem - que Breuer e Freud explorarão terapeuticamente em seu método catártico - aparece como uma via intermediária, na qual se mesclam elementos das duas primeiras: associação com representações verbais e descarga mediante o componente motor da fala. A impossibilidade dessa derivação abre o caminho para as manifestações patológicas:

"Quando, porém, é absolutamente recusada ao afeto uma tal descarga da excitação, a situação é a mesma, na fúria, como no susto ou na angústia: a excitação intracerebral é violentamente acrescentada, mas não é gasta nem pela atividade associativa, nem pela motora. No homem normal, essa perturbação é gradualmente compensada; mas em muitos surgem reações anômalas, constitui-se a "expressão anômala das emoções" (Oppenheim)". (Breuer 1895, p. 261)

No caso da histeria, essa expressão anômala assume a forma dos sintomas conversivos, que são definidos por Breuer como reflexos anormais do sistema nervoso. Um reflexo é uma via de descarga periférica e automática do excesso de excitação cerebral. Um reflexo normal segue as inervações facilitadas - Breuer faz uso largamente aqui dessa noção que Freud empregará no Projeto... para explicar a memória - conforme a experiência ou a utilidade biológica. Mas, nos casos em que esse excesso se produz a partir de uma representação afetiva constituída nas condições específicas que lhe conferem um caráter patogênico (os estados hipnóides, fundamentalmente, na concepção de Breuer), a excitação será drenada de forma anormal, pelos caminhos que demonstrarem menor resistência, quer por uma debilidade prévia e constitucional, quer porque sobre eles recaiu uma intensidade maior de afeto em função das características da vivência que deu origem à representação (a intenção de realizar uma ação, por exemplo, que facilita uma certa inervação motora, e assim por diante). Forma-se assim uma "facilitação" anormal" (abnorme "Bahnung") (Breuer 1895, p. 261), que rompe o isolamento normal em que o córtex - o "órgão da representação", nas palavras de Breuer - se encontra com relação à periferia sensorial e motora, por um lado, e às inervações somáticas, por outro; a excitação nervosa que flui nessa direção origina, então, os sintomas histéricos (alucinações, contraturas, distúrbios viscerais, conforme o caso). O processo tem, portanto, sua origem em uma representação afetiva e desemboca no reflexo anormal incoercível que produz a conversão:

"Se o afeto originário não se descarregou pelo reflexo normal, mas sim por um "reflexo anormal", também este passa, então, a ser desencadeado pela recordação; a excitação proveniente da representação afetiva é "convertida" (Freud) em um fenômeno corporal". (Breuer 1895, p. 264, grifos nossos)

A drenagem completa do afeto pela via do reflexo anormal conversivo explica a perpetuação da cisão psíquica, na medida em que o sujeito histérico não vivencia mais o afeto liberado pela representação, nem tampouco toma consciência da mesma enquanto tal. No lugar da recordação e da experiência do afeto, interpõe-se o sintoma:

"A excitação intracerebral e o processo excitatório em vias periféricas são grandezas recíprocas: a primeira cresce se um reflexo não foi desencadeado e na medida em que não o foi; ela diminui e desaparece, se é transposta em excitação nervosa periférica. Assim, não parece mais incompreensível que não se produza nenhum afeto notável, se a representação que deveria originá-lo desencadeia imediatamente um reflexo anormal e neste dispersa-se, no ato, a excitação em produção. A "conversão histérica" é, então, completa; a excitação originariamente intracerebral do afeto é transformada no processo excitatório de vias periféricas; a representação originariamente afetiva agora não mais provoca o afeto, mas apenas o reflexo anormal". (Breuer 1895, p. 265, grifos nossos)

Essa situação se perpetua na medida em que a representação afetiva permanecer inacessível ao trabalho de desgaste do excesso de excitação que o sistema nervoso busca executar [10], em conformidade com a tendência à constância. Breuer, como se sabe, reconhece duas condições em que isso pode ocorrer: uma de sua própria lavra - a ocorrência da representação durante um estado hipnóide e a conseqüente dissociação da mesma em relação ao restante da atividade psíquica - e outra que atribui a Freud e que aceita com relutância - a exclusão da representação pelo trabalho defensivo em função de seu caráter intolerável para a consciência normal do histérico. Essas observações ganham importância em função da distinção, que Breuer introduzirá a seguir, entre representações inconscientes e representações insuscetíveis de consciência, que corresponde, grosso modo, à distinção freudiana posterior entre o pré-consciente e o inconsciente. Para Breuer, as representações insuscetíveis de consciência é que são características do processo de formação do sintoma histérico, e ele manifesta suas dúvidas de que possam ser colocadas nessa condição pela defesa psíquica, concebida, ainda nesse momento, como um esforço voluntário para a exclusão de representações da consciência - apenas no Projeto... Freud distinguirá definitivamente entre a defesa normal, que poderia corresponder a esta descrição, e a defesa neurótica, com um mecanismo totalmente diverso. A teoria dos estados hipnóides seria, assim, imprescindível para dar sentido a uma concepção da patogênese da histeria centrada na hipótese da existência e da eficácia de representações afetivas inconscientes em sentido estrito:

"Não é muito compreensível como uma representação pode ser desalojada (verdrängt) voluntariamente da consciência (...). Descobrimos, além disso, que um outro tipo de representações permanece a salvo do desgaste pelo pensamento, não porque não se queira recordá-las, mas porque não se pode; porque originariamente emergiram e foram investidas com afeto em estados para os quais, na consciência desperta, subsiste a amnésia, em estados hipnóticos ou semelhantes à hipnose". (Breuer 1895, p. 273-4, grifos do autor)

Os estados hipnóides fornecerão, assim, a justificativa para a conciliação de duas características aparentemente contraditórias das representações patogênicas da histeria: o fato delas serem dotadas de uma grande intensidade afetiva, o que as torna psicologicamente eficazes, e o fato de encontrarem-se ausentes da consciência do enfermo, não apenas por um desvio da atenção ou coisa equivalente, mas num sentido bem mais essencial. Numa concepção psicológica tradicional, a representação é tanto mais eficiente, tanto mais capaz de produzir efeitos psíquicos, quanto maior a sua intensidade e, inversamente, quanto mais esta decresce, mais o processo representacional se aproxima desse limite abaixo do qual torna-se, simultaneamente, inoperante e imperceptível (isto é, inconsciente), deixando, rigorosamente falando, de existir enquanto fato mental. É essa concepção que Breuer se vê levado a inverter, para dar conta das propriedades distintivas dos fenômenos histéricos. Trata-se, em primeiro lugar, de estabelecer o modo como os estados hipnóides operam no sentido de isolar as representações afetivas do restante da consciência, sem, no entanto, despojá-las de sua intensidade, muito ao contrário:

"Porém, se em tais estados de "ficar absorto" e com o decurso da representação inibido, um grupo de representações de coloração afetiva está vívido, ele cria um alto nível de excitação intracerebral que não é gasta mediante um trabalho psíquico e fica disponível para operações anômalas, para a conversão. (...) A concentração sobre o grupo de representações afetivas condiciona em primeiro lugar o "estado de ausência". Pouco a pouco, o decurso da representação se retarda, para finalmente quase estagnar; mas a representação afetiva e seu afeto permanecem vívidos e, com isso, também a grande quantidade de excitação não gasta funcionalmente". (Breuer 1895, p. 277, grifos nossos)

A seguir, basta extrair a conseqüência lógica dessas observações: se as representações afetivas, patogênicas, ligadas à vivência que, nas circunstâncias em que ocorreu, se verificou traumática, se essas representações, enfim, são aquelas diretamente responsáveis não só pela formação, mas pela permanência e pela compulsividade dos sintomas, então a idéia de um inconsciente representacional, em ação no psiquismo e não mais apenas relegado à condição de um objeto passivo, à espera de tornar-se novamente foco da atenção consciente, impõe-se de forma irrecusável:

"Mas, se é este o caso, se a recordação do trauma psíquico, ao modo de um corpo estranho, deve valer ainda como agens eficaz e presente, longo tempo após a sua infiltração, e todavia o enfermo não possui consciência alguma dessas recordações e de seu surgimento, então devemos admitir que representações inconscientes existem e atuam". (Breuer 1895, p. 232, grifos do autor)

Breuer preocupa-se, imediatamente, em esclarecer que esta peculiaridade está longe de ser excepcional, mas é uma característica geral da neurose histérica:

"Mas nós não as encontramos só esporadicamente na análise dos fenômenos histéricos, e sim temos que admitir que, realmente (...), grandes complexos de representações e processos psíquicos complicados e graves, em muitos enfermos permanecem por completo inconscientes e coexistem com a vida psíquica consciente; que há uma cisão da atividade psíquica e que esta tem uma fundamental importância para a compreensão de histerias complicadas". (Breuer 1895, p. 280-1)

A idéia de uma cisão psíquica mostra-se indispensável para justificar a existência dessas representações tão intensamente carregadas de afeto e, não obstante, inconscientes (Breuer 1895, p. 282). As representações secionadas do restante da vida psíquica pelo processo histérico serão, justamente, aquelas que, segundo a fórmula anterior, deixam de apresentar-se à consciência por uma impossibilidade intrínseca, e não por um ato da vontade. A estas Breuer distinguirá com a expressão insuscetíveis de consciência (bewusstseinsunfähig): "Estas representações que são (atuais, mas) inconscientes, não por causa de sua vivacidade relativamente fraca, mas apesar de sua grande intensidade, podemos denominar insuscetíveis de consciência" (Breuer 1895, p. 284, grifos do autor). O contexto deixa claro que são as representações afetivas patogênicas que se incluem nessa categoria e, na medida em que se reconhece que os fatores que as tornam patogenicamente carregadas de afeto são os mesmos que determinam a divisão psíquica que as exclui da associação e da rememoração, pode-se dizer que tais representações são inconscientes não propriamente apesar de sua grande intensidade, mas, mais precisamente, em virtude mesmo desta intensidade. O reconhecimento da existência de representações inconscientes neste sentido leva Breuer a corrigir a expressão antes utilizada por ele e por Freud (Breuer e Freud 1893) para designar a dissociação histérica, substituindo "cisão da consciência" por "cisão psíquica", com o que já se insinua a idéia de que pode haver diferenças profundas entre ambas as formas de funcionamento mental, entre o círculo de representações inconscientes e a consciência normal, idéia que Freud irá explorar mais sistematicamente [11]:

"Em nossos doentes, encontramos, lado a lado, o complexo maior, de representações suscetíveis de consciência, e um outro menor, destas insuscetíveis. Assim, o campo da atividade psíquica de representação não coincide, neles, com a consciência potencial; esta é mais limitada do que aquele. A atividade psíquica de representação decompõe-se aqui em consciente e inconsciente, e as representações em suscetíveis e insuscetíveis de consciência. Não podemos, então, falar de uma cisão na consciência, mas antes de uma cisão na psique". (Breuer 1895, p. 284, grifos nossos)

Tudo isso soa extremamente familiar às concepções que se costumam atribuir a Freud, e poderia haver razão para surpresa diante da conclusão de que Freud escreveu o Projeto... - e, de certa maneira, boa parte da metapsicologia posterior - para refutar idéias que poderiam muito bem ser as suas. É na principal restrição que Breuer coloca a todas essas concepções psicológicas, nas quais se concentra o que há de original em sua teoria, que podemos localizar o ponto de disjunção, ou seja, no fato de que Breuer limita o campo de aplicação dessas suas teses à neurose e à patologia mental em geral. Por mais originais e de sabor freudiano que essas teses sejam, é na condição explícita de uma exceção patológica que elas são enunciadas:

"A existência dessas representações insuscetíveis de consciência é patológica. Em pessoas sadias, ingressa também na consciência toda representação que possa, de todo, tornar-se atual, por possuir intensidade suficiente". (Breuer 1895, p. 284, grifos nossos) [12]

É nesse contexto que se pode considerar o Projeto... como um esforço de generalizar, de ampliar o campo de aplicação das teses breuerianas avançadas no capítulo teórico dos Estudos..., e não de refutá-las. Tudo se passa como se a reflexão freudiana se empenhasse aí em suprimir as restrições que limitam as idéias de Breuer a uma teoria específica do mecanismo da histeria, convertendo-as em elementos para uma teoria psicológica de alcance geral, onde sua inegável originalidade se manifestará plenamente. É claro que sempre se poderá objetar: em que medida essas idéias são de Breuer, e não já apenas a reprodução, por parte deste, das idéias de Freud? Como se trata aqui de contrapor-se a uma interpretação que vê uma distância maior e, mesmo, uma incompatibilidade entre os dois autores, a qual, afinal, teria resultado no término de sua colaboração, procurou-se, de fato, correndo o risco de uma certa artificialidade, proceder como se Breuer e Freud fossem dois autores perfeitamente distintos, procurando fazer ressaltar sua convergência, para melhor circunscrever, depois, suas diferenças. Cabe observar, no entanto, que é pelas mãos de Breuer que toma forma a primeira teorização mais sistemática sobre um inconsciente representacional e psiquicamente eficaz. Além disso, Breuer, ao longo de seu trabalho, preocupou-se em deixar claro quais concepções provinham especificamente de Freud, como é o caso dos conceitos de conversão e de defesa e do princípio de constância, dando a entender que, no restante, falava em seu próprio nome, independentemente da concordância ou não de seu colaborador. Em todo caso, algumas das metáforas que serão depois celebrizadas por Freud para exprimir a noção de inconsciente aparecem já sob a pena de Breuer: "A parte cindida da psique está, em nossos casos, 'reduzida às trevas' [13], como estão desterrados os titãs na cratera do Etna; eles podem sacudir a terra, mas nunca surgem à luz" (Breuer 1895, p. 288).

Como não se visa aqui um comentário intensivo do Projeto..., mas apenas colher evidências para o papel que desempenham as idéias de Breuer na pavimentação do caminho que conduz a este texto, acrescentemos somente alguns comentários das passagens mais ilustrativas a esse respeito. A idéia de desenvolver uma concepção dinâmica da atividade mental é expressa na abertura mesma do Projeto.... Este trabalho, destinado à fundamentação de uma psicologia científica e naturalista, parte, como se sabe, de duas proposições principais: a de neurônio e a de quantidade. Quando especifica o sentido da concepção quantitativa do psíquico, Freud a remete explicitamente, quanto à sua origem, à clínica das neuroses, da histeria e da neurose obsessiva em particular, e a justificativa para o destaque concedido a estas formações clínicas é o papel aí desempenhado pelas representações excessivamente intensas (überstarke Vorstellungen), onde se evidencia, ampliada, a característica intensiva e dinâmica do processo representacional em geral, sintetizado na fórmula da "concepção quantitativa":

"Ela decorreu diretamente de observações clínico-patológicas, particularmente onde se trata da representação excessivamente intensa, como na histeria e na obsessão, nas quais, como se mostrará, o caráter quantitativo sobressai-se de forma mais pura do que em [processos] normais. Processos como substituição, conversão, descarga que nelas foram descritos, sugeriram diretamente a concepção da excitação n[ervosa] como quantidade em fluxo. Uma tentativa de generalizar este conhecimento não pareceu inadmissível". (Freud 1895/1950, p. 388, grifos nossos)

A noção de quantidade - fundamental para o esquema conceitual do Projeto... - aparece, portanto, como a expressão mais geral possível que pode ser conferida à característica afetiva da representação, identificada nos quadros da neurose: esta se torna assim um indicador, amplificado e tornado visível por sua exacerbação patológica, da natureza dinâmica da toda representação, isto é, do fato de que seu comportamento enquanto objeto de uma investigação psicológica possa ser descrito em termos quantitativos. Ora, a abordagem quantitativa dos processos psíquicos, inerente à perspectiva naturalista, tal como Freud a concebe, implica a caracterização dos mesmos como inconscientes, a qual é afirmada no momento mesmo em que se trata de contemplar o problema simétrico e oposto da qualidade e de atribuir a toda teoria psicológica que se preze a tarefa de explicar também em que consiste a consciência:

"Até aqui, não entrou em discussão que toda teoria psicológica, além de suas realizações no campo da ciência natural, tem que satisfazer ainda uma grande exigência. Ela deve explicar-nos o que conhecemos do modo mais enigmático através de nossa "consciência" e, como essa consciência nada sabe das suposições feitas até aqui - quantid[ades] e neurônios - deve explicar-nos também este não saber". (Freud 1895/1950, p. 400)

Em outras palavras, trata-se de complementar o aparato doutrinário da psicologia naturalista em desenvolvimento, que descreveu até então os processos psíquicos em termos exclusivamente quantitativos, com a abordagem da consciência: "Mas, então, é preciso incorporar o conteúdo da consciência em nossos processos y quantitativos" (Freud 1895/1950, p. 401). O anúncio dessa complementação imprescindível da teoria psicológica em construção, que antes se ocupara exclusivamente das determinações quantitativas dos processos, articula-se imediatamente com a explicitação do caráter inconsciente dos mesmos, até agora apenas subentendido:

"De imediato, esclareçamos um pressuposto que nos conduziu até aqui. Temos tratado os processos psíquicos como algo que pudesse prescindir deste conhecimento dado pela consciência, que existe independentemente de uma tal consciência. Estamos por isso preparados para não encontrar confirmadas pela consciência algumas de nossas suposições. Se não nos deixarmos desconcertar por isso, segue-se desse pressuposto que a consciência não proporciona conhecimento completo, nem confiável, dos processos neuronais; deve-se considerá-los, primeiramente, como inconscientes em toda a sua extensão e deduzi-los como as outras coisas naturais". (Freud 1895/1950, p. 400, grifos nossos)

Assim, se, em Breuer, encontrávamos emparelhados e até mesmo implicados um no outro o caráter afetivo e o caráter inconsciente das representações patogênicas, o Projeto... generaliza primeiro a dimensão afetiva da representação sob a forma da concepção quantitativa, para a seguir emparelhá-la e, no limite, implicá-la também na atribuição à mesma da condição de inconsciente: toda representação é, em si mesma, doravante, um processo dinâmico, que envolve a movimentação de certos montantes de excitação e toda representação é, por isso mesmo, pelo menos primitiva e originariamente, inconsciente. Eis, portanto, a concepção de Breuer despojada do entrave que a limitava a uma exceção patológica própria da histeria - ou, no máximo, de mais alguma outra neurose - e elevada à condição de um princípio psicológico geral e, na verdade, crucial para a empresa de fundação de uma psicologia científica na qual Freud se empenha no Projeto... Não há, desde logo, razão para supor que representações dotadas de um certo componente quantitativo não sejam psicologicamente eficazes, de modo que essa propriedade das representações patogênicas de Breuer parece poder ser igualmente generalizável à totalidade da representação: a mente normal deve, assim, não somente comportar um inconsciente psíquico, como também esse inconsciente pode perfeitamente ser pensado como capaz de produzir seus efeitos independentemente de seu acesso à consciência. Esse inconsciente não é apenas um momento no processo de constituição da representação, o qual deveria necessariamente culminar na sua apreensão consciente. Freud é bastante explícito ao afirmar que uma parte da psique permanece inconsciente, lado a lado daquela que abre caminho até a percepção pela consciência: "Consciência é, aqui, o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos do sistema nervoso (...)" (Freud 1895/1950, p. 404). Para que não haja nenhuma dúvida de que os processos físicos de que Freud fala aqui são aqueles anteriormente referidos como processos psíquicos inconscientes, basta remeter-se à seguinte passagem do Esboço de psicanálise, onde essas questões são abordadas praticamente nos mesmos termos que no Projeto...:

"Muitos, situados tanto dentro da ciência como fora dela, se conformam com adotar a suposição de que a consciência é, apenas ela, o psíquico e, então, para a psicologia, não há mais o que fazer além de distinguir, no interior da fenomenologia psíquica, entre percepções, sentimentos, processos cognitivos e atos de vontade. Contudo, há um acordo geral de que estes processos conscientes não formam séries sem lacunas, fechadas em si mesmas, de modo que não haveria outro expediente senão adotar a suposição de certos processos físicos ou somáticos concomitantes do psíquico, aos quais parece necessário atribuir uma perfeição maior que às séries psíquicas, pois alguns deles têm processos conscientes paralelos e outros não. Isto sugere, de uma maneira natural, pôr o acento, em psicologia, sobre estes processos somáticos, reconhecer neles o psíquico genuíno e buscar uma apreciação diversa para os processos conscientes". (Freud 1938, p. 155, grifos nossos) [14]

O fato de que a exacerbação patológica do caráter afetivo da representação evidencie o componente quantitativo, menos intenso, de todo processo psíquico não impede que a própria representação excessivamente intensa, em torno da qual Freud erigiu sua primeira clínica das neuroses, tenha, ela mesma, seu correspondente normal. Ao introduzir a consideração da compulsão histérica - a qual, no Projeto..., receberá uma explicação diferente da oferecida por Breuer, onde a defesa, a sexualidade e a teoria da sedução ocuparão o lugar antes concedido aos estados hipnóides -, Freud retoma a noção de representação excessivamente intensa, que fora apenas mencionada na abertura do texto como a evidência clínica do caráter quantitativo da representação. Nesse movimento, não deixa de apontar como este tipo de representação apresenta-se também na normalidade:

"Representações excessivamente intensas existem também normalmente. Elas proporcionam ao eu sua particularidade. Não nos espantamos com elas, se conhecemos seu desenvolvimento genético (educação, experiências) e seus motivos. Estamos habituados a ver nessas representações excessivamente intensas o resultado de grandes e legítimos motivos". (Freud 1895/1950, p. 439, grifos do autor) [15]

A normalidade conferida, assim, às representações excessivamente intensas arremata a generalização do caráter afetivo da representação à totalidade da atividade psíquica. Quando Freud abre a terceira parte do Projeto..., destinada a um esforço de elucidação dos processos psíquicos normais, ele deixa bem claro que este trabalho transcorrerá integralmente dentro do quadro da psicologia quantitativa delineado na primeira parte e que, portanto, tais processos deverão ser descritos em termos de movimentação de quantidades de excitação ao longo dos circuitos representacionais, a qual, como se procurou mostrar acima, descende da concepção da representação afetiva inconsciente descrita inicialmente por Breuer. A função do eu, como correlato normal das representações excessivamente intensas da neurose, no estabelecimento das condições de possibilidade dos processos normais é aí claramente reconhecida: "Os assim chamados processos secundários devem ser explicados mecanicamente pelo efeito que uma massa neuronal de ocupação permanente (o eu) exerce sobre outra com ocupações variáveis" (Freud 1895/1950, p. 451). Observe-se que mesmo os processos conscientes devem vir a submeter-se a esta determinação quantitativa, muito embora haja neles algo que a transcenda, isto é, os aspectos subjetivos e qualitativos que escapam, enquanto tais, a uma apreensão nos termos do naturalismo freudiano - se provisória ou definitivamente é ainda uma questão a ser discutida; os processos inconscientes, ao contrário, são, em princípio redutíveis a essas determinações. Ainda assim, apesar das dificuldades inerentes à tarefa, Freud não se furta a empreendê-la: "Apenas mediante essas suposições complicadas e pouco intuitivas, fui capaz, até aqui, de incluir os fenômenos da consciência na estrutura da psicologia quantitativa" (ibidem, p. 403).

Parece haver, no entanto, um obstáculo a considerar esta concepção psicológica quantitativa como resultado de uma generalização da noção breueriana de representação afetiva: o que Freud, no Projeto..., nomeia como afeto tem uma significação bem mais restrita e permanece, de certa forma, atrelado à significação patológica anterior, a saber, afeto designa uma descarga somática de quantidade, com conseqüente produção de desprazer, resultando da recordação de uma vivência dolorosa (Freud 1895/1950, p. 412). A irrupção afetiva fornece, assim, a motivação imediata do processo defensivo, quer no processo secundário da defesa normal, quer no processo primário póstumo da defesa neurótica. O afeto e o desejo consistiriam, então, nas duas grandes conseqüências psíquicas das duas vivências fundamentais que estruturam o funcionamento do aparelho neuronal: a vivência de dor e a vivência de satisfação respectivamente: "Os restos dos dois tipos de vivências abordados são os afetos e os estados de desejo (...)" (ibidem, p. 414). Ambos envolvem um aumento da tensão interna do aparelho e motivam o esforço de eliminação de quantidade que transcorre em conformidade com a tendência à constância. Mas o afeto, então, se identificaria tão somente com um aspecto da concepção quantitativa, justamente com aquela que permanece mais próxima da significação patológica anterior, na medida em que a vivência de dor - a dor física, inicialmente - fornece o modelo segundo o qual será concebido depois o trauma psíquico.

Contudo, o elo entre o afeto nessa acepção mais estrita e a concepção quantitativa em toda a sua generalidade parece poder ser localizado na famosa passagem, na conclusão de seu primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa, onde Freud introduz formalmente a hipótese da quantidade:

"Quero, finalmente, recapitular, em poucas palavras, a idéia auxiliar da qual me servi nesta apresentação das neuroses de defesa. É a idéia de que, nas funções psíquicas, deve-se distinguir algo (montante de afeto, soma de excitação) que tem todas as propriedades de uma quantidade, ainda que não possuamos nenhum meio de medi-la; algo que é suscetível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga e se propaga sobre os traços mnêmicos das representações, mais ou menos como uma carga elétrica sobre a superfície dos corpos". (Freud 1894, p. 74, grifos nossos)

Parece haver, portanto, uma espécie de concepção geral do afeto, sob a qual ele se equipara a uma soma de excitação ou, numa palavra, à quantidade; esta decorre da generalização da dimensão afetiva dos distúrbios neuróticos, conforme se procurou demonstrar acima. Essa concepção se perpetua, no pensamento de Freud, sob a forma do ponto de vista econômica da explicação metapsicológica - e do ponto de vista dinâmico, se aí acrescentarmos o direcionamento ou vetorialização das quantidades no interior do espaço psíquico. Ao seu lado, subsiste a concepção mais restrita do afeto como liberação, mediada por uma representação, de um montante de excitação somática que se faz perceber psicologicamente, sentido em que o termo continuará a ser predominantemente empregado nos textos posteriores. Mas esta passagem introduz ainda uma outra questão relativa ao problema das relações entre afeto e representação (ou entre quantidade e representação) na referência à propagação desse fator quantitativo sobre os "traços mnêmicos das representações": a questão da memória, que nos reconduz, por um lado, às vicissitudes da teoria freudiana - e breueriana - da neurose ("os histéricos sofrem de reminiscências") e, por outro lado, ao segundo ponto sobre o qual procuramos estabelecer a continuidade entre o Projeto... e a obra inicial de Freud, desta vez com relação ao ensaio sobre as afasias. Cabe, portanto, refazer o trajeto que leva dessa primeira reflexão freudiana sobre a representação - onde, de resto, já se podem detectar os rudimentos da concepção quantitativa (ver nota 16, abaixo) - até o texto de 1895, no qual são introduzidos os elementos que permitirão conceber a representação como um fato de memória, em conformidade, aliás, com seu caráter originariamente inconsciente.

III. Representação e traço mnêmico: rumo a uma metapsicologia da memória.

Se o ensaio de 1891 sobre a questão das afasias (Freud 1891) pode ser considerado o passo inaugural da metapsicologia freudiana, como se procurou argumentar em outro lugar (Simanke 2004), é em função da reflexão que aí se pode encontrar sobre a natureza da representação. Sintetizando ao máximo, pode-se dizer que Freud aí empreende a substituição da noção de localização, de cuja crítica ele parte, pela noção dinâmica de processo, tomada da neurologia de Hughlings Jackson, sua principal referência naquele trabalho. As funções psicológicas deixam, então, de ser concebidas como resultado da ação compartimentada de áreas anatomicamente delimitadas do córtex cerebral e passam a ser atribuídas a processos globais que podem envolver regiões anatômicas muito diversas - no limite, a totalidade da atividade cortical - dinamicamente integradas pelo fluxo da excitação nervosa ao longo das vias de condução que aí se constituem. A reflexão sobre a linguagem que transcorre neste contexto fornece os elementos para uma doutrina geral da representação. A linguagem é pensada como uma função psicológica extremamente complexa, que envolve os mais diversos materiais sensoriais, os quais, apenas quando organizados de uma determinada maneira pelos processos associativos corticais dinâmicos passam a apresentar as propriedades do fenômeno lingüístico. A linguagem não possui um sensorium próprio, insiste Freud, e esta é uma das razões pelas quais é insustentável a hipótese de centros corticais da linguagem. A matéria-prima do fato de linguagem são estímulos sensoriais acústicos e visuais, assim como imagens de movimento (da musculatura glossofaríngea para a fala, da mão para a escrita), e os únicos "centros" admissíveis são as terminações corticais dos nervos correspondentes. Assim, se a palavra, do ponto de vista psicológico, pode ser descrita como uma unidade, ela corresponde, do ponto de vista neurológico, a uma intrincada trama de processos de uma complexidade difícil de apreender. Freud opõe-se a uma concepção mecânica da associação, que formaria os fenômenos complexos por mera adição de partes que conservassem, assim integradas, as mesmas características que possuíssem isoladamente. Esta última concepção é típica do atomismo psicológico implícito no localizacionismo, e Freud a percebe exemplarmente ilustrada pela teoria meynertiana da aquisição da linguagem que, no fundo, a reduziria a um processo de acúmulo progressivo de vocabulário, correspondendo, neurologicamente, à ocupação das áreas corticais adjacentes aos centros da fala, originariamente desprovidas de função (lacunas funcionais); além disso, estaria aí implicada a tese localizacionista - talvez o principal equívoco conceitual desta doutrina, na visão de Freud - que afirma que os elementos psíquicos estão, de alguma maneira, contidos ou armazenados nas células nervosas. Em contraposição, Freud propõe uma visão da aprendizagem da linguagem centrada na noção de sobre-associação (Superassoziation), cuja principal característica é não apenas expor a complexidade dos processos envolvidos, mas enfatizar o modo como as conexões estabelecidas alteram a significação funcional dos elementos e de suas conexões anteriores. Assim, por exemplo, uma das principais críticas de Freud era endereçada ao modo como Wernicke e Lichtheim distinguiam a produção da fala espontânea da mera repetição de palavras. Esta última se produziria ao longo da via que conduz do centro sensorial acústico da linguagem (a área de Wernicke) ao centro motor da fala (área de Broca), fazendo com que a palavra ouvida registrada no primeiro desse origem ao impulso motor para repeti-la no segundo. O impulso para a fala espontânea, ao contrário teria origem no "centro dos conceitos" (ou das idéias), a partir do qual atingiria, por uma via diferente, o centro motor. Repetição e fala espontânea seriam, portanto, dois processos distintos, justapostos e independentes, cada um deles executado por uma via de condução diferente. Segundo Freud, a repetição de palavras depende, evidentemente, da associação entre a imagem acústica da palavra ouvida e a imagem cinestésica da fala, mas a fala espontânea - isto é, o uso significativo da linguagem - torna-se possível quando esse primeiro complexo associativo, que constitui o germe da representação de palavra, conecta-se, através do elemento acústico, com uma representação de objeto, via de regra mediante a imagem visual do mesmo. Doravante, o processo que antes incluía imagem acústica ® imagem cinestésica, passa a constar de imagem visual do objeto ® imagem acústica ® imagem cinestésica, ou seja, a via percorrida entre o segundo e o terceiro desses elementos é a mesma que anteriormente respondia pela repetição de palavras, mas a nova associação acrescentada alterou a significação funcional desta via e deste trecho do percurso: como insiste Freud, repete-se e fala-se espontaneamente pelo mesmo caminho (Freud 1891. p. 58 e 64). Generalizando, cada novo elemento acrescentado a um complexo associativo modifica a significação de seus elementos e das conexões anteriormente estabelecidas, e esse é o sentido da concepção freudiana de sobre-associação. Nesse exemplo, repetição de palavras e fala espontânea são pensadas dentro de uma hierarquia de processos, progressivamente mais complexos, mais flexíveis, mais evoluídos, no sentido jacksoniano, caracterizados pelo surgimento de propriedades distintivas na passagem de um nível a outro, e não mais como dois processos autônomos que ocorrem lado a lado sem interferirem necessariamente um com o outro.

Dentro dessa concepção, na medida em que ela possa ser estendida da linguagem à totalidade do campo da representação, esta última aparece redefinida como um processo cortical complexo, cuja matéria-prima é a informação sensorial bruta oriunda da periferia, mas cujas propriedades distintivas - cujo conjunto é justamente o que se considera como o psíquico - dependem da organização que lhe é imposta mediante as conexões estabelecidas pela circulação da excitação nervosa entre as diversas regiões do córtex. O ponto de vista funcional adotado por Freud na consideração dos distúrbios afásicos ultrapassa seu sentido inicial, restrito à neuropatologia, e converte-se numa hipótese sobre a relação entre o neurológico e o psíquico - e talvez não seja excessivo supor que, em Sobre a concepção das afasias, Freud chegue, um tanto inadvertidamente, a uma definição funcional do mental, que corresponde, em linhas gerais, a uma solução emergentista para o problema mente-cérebro (Simanke 2004; Pribram e Gill 1976, p. 14). Os elementos da representação não são eles mesmos de natureza representacional (sensações simples, etc.), mas apenas se revestem dessa característica a partir da organização que lhes é imposta pelos processos. A representação, por sua vez, deixa de ser concebida, primariamente, como um fato de percepção, ou seja, como o duplo psíquico do objeto exterior engendrado pela intervenção soberana e incondicionada da consciência, entendida como uma espécie de órgão de percepção interna. Teríamos presentes, assim, no texto de 1891, os elementos conceituais necessários para uma ultrapassagem do dualismo - do paralelismo psicofísico ou psicofisiológico, mais precisamente - e, com ele, da identidade entre o psíquico e o consciente [16]. Nenhuma dessas duas concepções é, no entanto, assumida por Freud: ele subscreve aí, explicitamente, tanto o paralelismo, sob a forma da doutrina da concomitância de Hughlings Jackson, quanto a recusa da possibilidade de um processo mental não consciente. Vejamos, quanto ao primeiro:

"A cadeia dos processos fisiológicos no sistema nervoso não se encontra, provavelmente, em uma relação de causalidade para com os processos psíquicos. Os processos fisiológicos não cessam tão logo tenham tido início os processos psíquicos; ao contrário, a cadeia fisiológica prossegue, só que, de um certo momento em diante, a cada elo da mesma (ou a alguns elos) passa a corresponder um fenômeno psíquico. O psíquico é, com isso, um processo paralelo ao fisiológico (um "dependent concomitant")". (Freud 1891, p. 98)

Quanto à possibilidade de um processo mental não consciente, a posição é menos taxativa, mas pende claramente para sua recusa:

"Qual é, então o correlato fisiológico da representação simples (...)? Evidentemente, nada em repouso, mas sim algo da natureza de um processo. Este processo é compatível com a localização; ele parte de um lugar particular e propaga-se daí sobre o restante do córtex cerebral ou ao longo de caminhos particulares. Uma vez decorrido este processo, ele deixa atrás de si, no córtex por ele afetado, uma modificação, a possibilidade da recordação. É de todo duvidoso que a esta modificação corresponda igualmente algo de psíquico; nossa consciência não apresenta nada deste tipo, que justificasse, do lado psíquico, o nome de 'imagem mnêmica latente'. Contudo, sempre que o mesmo estado do córtex é outra vez incitado, produz-se de novo o psíquico como imagem mnêmica". (Freud 1891, p. 99-100)

Pode-se dizer, a partir dessas passagens, que o que falta ao ensaio sobre as afasias é uma teoria da representação como um fato de memória, que se substituísse à da representação como um fato de percepção, que é própria do associacionismo - é, com efeito, até certo ponto surpreendente o quão pouco Freud se ocupa da memória nesse trabalho, quando se recorda que a afasia pode, em grande medida, ser considerada um distúrbio da memória verbal. É justamente uma tal teoria, que só será formalmente proposta no Projeto..., que fornecerá a sustentação conceitual para a noção de um inconsciente psíquico (ou representacional), que somente ali também será plenamente assumida por Freud, após todas as hesitações que permearam sua abordagem das neuroses, como se verificou acima. Além disso, a teoria das neuroses em formação requeria, ainda, uma concepção dinâmica da memória compatível com o mecanismo psíquico que estava sendo atribuído àquelas afecções, pelo menos desde o famoso aforismo da Comunicação preliminar que afirma que os histéricos sofrem de reminiscências (Freud e Breuer 1893, p. 86). Em outras palavras, se o ensaio de 1891 lança as bases para uma concepção dinâmica da representação de que se nutrirá toda a metapsicologia freudiana posterior, ele não parece comportar uma teoria da memória à altura das redefinições que aí se formulam ou se esboçam sobre a natureza do fato psíquico, e esta lacuna constituiria um obstáculo não só ao reconhecimento do inconsciente, mas também, num sentido mais amplo, à plena integração desses primeiros resultados de uma reflexão que já se pode chamar de metapsicológica à teoria das neuroses que ela deveria vir a fundamentar. De novo, é no Projeto... que esta integração é, pela primeira vez, sistematicamente empreendida por Freud, embora o grau de sucesso aí alcançado na formulação de uma concepção unificada do psiquismo normal e patológico possa ser questionado (cf. Gabbi Jr. 1985). Cabe perguntarmo-nos, então, em primeiro lugar, pelas razões que barram a formulação de uma teoria da memória em Sobre a concepção das afasias e, a seguir, de que modo esses obstáculos serão superados no Projeto..., estabelecendo assim, por esta via, o nexo de continuidade entre esses dois trabalhos.

É a própria redefinição imposta por Freud ao conceito de representação - ou, pelo menos, ao modo como se concebe seu correlato neural, tal como a teoria se exprime ainda em 1891 [17] - que parece criar dificuldades para a explicação da memória. Para o localizacionismo, o correlato neural de uma representação é a ativação de uma área cortical circunscrita que constitui a sede da função psicológica em questão; para justificar a memória recorre-se a modificações morfológicas hipotéticas da substância nervosa das células envolvidas neste processo (engramas), concepção que, às vezes, leva a extremos de literalidade o símile aristotélico da impressão do selo sobre a cera. A rememoração dependeria assim tão somente de que a atenção do olho interior da consciência tornasse a se focalizar sobre essas impressões, quando então o fenômeno psíquico anteriormente ocorrido ressurgiria numa versão esmaecida, já que desprovido da vivacidade e da intensidade que lhe conferia o suplemento de excitação fornecido pelo estímulo perceptivo. Nessa concepção, portanto, a rememoração é sempre uma reedição enfraquecida e atenuada da percepção, é sempre a percepção menos alguma coisa que lhe falta por tratar-se, nesse caso, de um processo exclusivamente interno à atividade cerebral. As características do funcionamento da memória que daí resultam não são difíceis de deduzir: a rememoração será tanto mais nítida quanto mais intensa a impressão original, que terá assim deixado um traço mais acentuado atrás de si; ao mesmo tempo, esta será tanto mais facilmente rememorável quanto mais recente a constituição desses traços, pois estes estão, naturalmente, sujeitos ao desgaste progressivo pela ação do tempo. Em suma, um acontecimento será tanto mais facilmente rememorável e sua memória mais nítida quanto mais intensa (importante, significativa, etc.) e mais recente tiver sido a vivência da qual a inscrição mnêmica decorre; em outras palavras, o que é importante e recente será mais vívido e acessível à memória do que o que é indiferente ou antigo.

A psicologia embutida no localizacionismo não parece, portanto, ter muitas dificuldades na explicação da memória; sua possibilidade é garantida pelo mesmo conjunto de hipóteses básicas que formam o cerne dessa doutrina. Esta situação muda completamente quando se consideram as características da concepção freudiana da representação. Nenhuma tese foi criticada com mais ênfase em Sobre a concepção das afasias do que idéia de que as representações elementares pudessem estar, de alguma maneira, contidas nas células corticais. Na esteira dessa crítica, Freud foi levado a recusar todo um conjunto de hipóteses neuroanatômicas que constituíam a base do localizacionismo, notadamente, por um lado, a divisão do córtex entre centros - sedes das funções psíquicas, cujas células conteriam as representações elementares - e lacunas funcionais - áreas ainda desprovidas de função, cuja ocupação progressiva constituiria a base da aprendizagem; por outro lado, apagou progressivamente a distinção entre localização e associação, recusando a idéia de que a condução processa-se por vias exclusivamente subcorticais, ao passo que a localização seria prerrogativa das células do córtex que constituem os centros. A recusa de todas essas hipóteses abriu caminho para a substituição da noção de localização pela de processo, que constitui o principal esteio do argumento freudiano nesse trabalho. Em lugar delas, Freud propôs a suposição de uma área cortical homogênea e contínua para a linguagem, isto é, uma região desprovida de restrições anatômicas, na qual os processos associativos que aí transcorrem são os únicos responsáveis pela execução das funções (Freud 1891, p. 106, 111 e 147): essa hipótese anatômica que se substitui às do localizacionismo busca, assim, estabelecer as condições para a autonomia do ponto de vista funcional introduzido por Freud na consideração dos distúrbios da linguagem; a possibilidade de generalizar esse ponto de vista e todas as concepções psicológicas ou metapsicológicas a que ele deu origem para o restante da atividade psíquica depende, portanto, da possibilidade de generalizar igualmente a hipótese anatômica que o sustenta, ou seja, a da homogeneidade estrutural da substância cortical. Tal generalização não se mostra evidentemente possível nos termos em que ela se coloca em Sobre a concepção das afasias, e a hipótese freudiana permanece restrita à área associativa da linguagem. Será, mais uma vez, no Projeto... que Freud encontrará condições para redefinir em outros termos esse princípio que lhe parece essencial, tornando viável sua extensão ao restante das funções psicológicas.

Contudo, assumindo-se que a representação possa ser definida, em toda a sua generalidade, como um processo cortical que transcorre em uma região anatômica homogênea e contínua, o que significaria, nesse contexto, a memória e o que poderia garantir a possibilidade de rememoração de uma tal representação? Na concepção localizacionista, era a própria subsistência da modificação cortical morfologicamente concebida - isto é, concebida como uma modificação do próprio tecido nervoso, ainda que de natureza desconhecida - que respondia pela conservação da memória: esta duraria o tanto que durasse a impressão que lhe serve de base. A esta concepção estática da memória e da representação em geral Freud opõe sua concepção dinâmica da representação como processo excitatório cortical. Se a representação ou, pelo menos, seu substrato cortical são agora dinamicamente pensados, de que dependeria a subsistência e a possibilidade de ressurgimento da representação, ou seja, a memória e rememoração, respectivamente? Estas dependeriam, é claro, da possibilidade de repetição do processo em que consistem ou que lhes serve de base. Todo o problema, para Freud, residiria, portanto, em assegurar a possibilidade da repetição dos processos corticais, assegurar que um processo - isto é, a movimentação de um certo montante de excitação nervosa ao longo de um certo percurso - uma vez ocorrido tenha alguma probabilidade de tornar a ocorrer outra vez. A questão é como garantir isto, como justificar essa possibilidade a partir da hipótese de uma região cortical homogênea e contínua, ou seja, desprovida das diferenciações anatômicas (centros e lacunas funcionais, células ocupadas ou não ocupadas, isto é, modificadas ou não por processos anteriores) que, na doutrina localizacionista, respondiam pelas distinções funcionais e, entre outras coisas, pela conservação das inscrições mnêmicas. É esta dificuldade que parece barrar a formulação de uma teoria da memória em Sobre a concepção das afasias . Essa dificuldade é agravada pelo fato de que a natureza do processo cortical e de seus elementos aparece muito pouco especificada neste trabalho. Se Freud recusa que este processo possa consistir no armazenamento de representações elementares em células corticais, falta uma hipótese mais precisa sobre em que exatamente consistem esses elementos não-representacionais da representação (cf. Simanke 2004); em outras palavras, sobre qual é a natureza da unidade de análise do processo neural que corresponde à representação ou, para dizê-lo ainda de outra maneira, o que, afinal, pode estar contido na célula nervosa, já que não se trata de uma representação em sua forma elementar, um átomo de sensação ou de percepção ou qualquer coisa equivalente. Freud é aí claramente omisso quanto a estas questões que, não obstante, ele se empenhará em responder com detalhes no Projeto... . A citação feita acima, que diz respeito à memória, é bem exemplar quanto a isso. Quando Freud diz: "Uma vez ocorrido este processo, ele deixa atrás de si, no córtex por ele afetado, uma modificação, a possibilidade da recordação" (Freud 1891, p. 100, grifos nossos), a natureza dessa modificação não é especificada, embora já saibamos não poder tratar-se daquele tipo de modificação que armazena representações simples nas células nervosas. Da mesma forma, quando, na mesma passagem, ele afirma: "Contudo, sempre que o mesmo estado do córtex é outra vez estimulado, produz-se de novo o psíquico como imagem mnêmica" (ibidem, p. 100, grifos nossos), as condições que garantem essa repetição de um mesmo padrão de inervação cortical ficam por estabelecer, embora já saibamos também que não se trata de distinções entre realidades anatômicas previamente dadas, como entre os centros e as vias de condução, hipótese que já fora igualmente afastada por Freud. Esse desconhecimento é, de resto, explicitamente assumido por ele: "É verdade que não temos a menor idéia de como a substância animal vem a passar por essas modificações e distingui-las" (ibidem, p. 100). Resta, então, mostrar de que elementos Freud lança mão no Projeto... para preencher essas lacunas e justificar teoricamente a possibilidade da memória, sem abrir mão dos princípios que estabelecera em 1891 para sua reflexão psicológica.

Em primeiro lugar, é preciso mencionar a própria teoria neuronal que, de certa maneira, inspira o Projeto... como um todo: Freud a considera "o segundo pilar desta doutrina" (Freud 1895/1950, p. 390), isto é, da psicologia científico-naturalista que ele pretende construir neste texto, sendo que o primeiro é a concepção quantitativa, a qual, por sua vez, como se viu acima, provém de um trabalho de generalização de um conjunto de observações clínicas sobre o caráter afetivo dos fenômenos neuróticos. A teoria neuronal era, então, de formulação recente, o trabalho seminal de Wilhelm Waldeyer tendo sido publicado no mesmo ano que o ensaio sobre as afasias, em 1891 [18]. O enunciado sucinto que Freud fornece do que considera o essencial dessa doutrina já serve para indicar o uso que dela pretende fazer e fornece a chave para a compreensão de como este recurso vem ao encontro das questões que ficaram em aberto no ensaio sobre as afasias:

"O conteúdo principal do novo conhecimento é que o sistema nervoso consiste em neurônios distintos, identicamente construídos, que se tocam por mediação de massa diversa e que terminam uns nos outros como em partes de tecido diverso, nos quais estão prefiguradas certas direções de condução, pois recebem por prolongamentos celulares e entregam por cilindros de eixo". (Freud 1895/1950, p. 390, grifos nossos)

O que esta passagem põe em relevo, em primeiro lugar, é o modo como a teoria neuronal dá uma nova forma à hipótese freudiana avançada em Sobre a concepção das afasias sobre a homogeneidade estrutural da área da linguagem, ao mesmo tem em que a estende à totalidade do sistema nervoso: por mais distintos que sejam entre si os órgãos de que este se compõe, todos são constituídos a partir das mesmas unidades básicas - os neurônios, essencialmente idênticos uns aos outros [19]. Contudo, este enunciado concilia esta homogeneidade com a afirmação da descontinuidade estrutural entre as unidades de composição do sistema, enquanto que, em 1891, Freud parecia entender que a recusa das distinções anatômicas caras ao localizacionismo implicaria a continuidade da área da linguagem e do córtex por extensão, ficando assim desarmado para qualquer tentativa de representar a memória. Como se verá abaixo é justamente essa descontinuidade estrutural que a teoria neuronal atribui ao sistema nervoso como um todo que Freud irá explorar na teoria da memória que ele desenvolve no Projeto... . A identidade entre os neurônios faz com que as únicas diferenças anatômicas decisivas localizem-se no nível celular, onde a teoria estabelece que os neurônios recebem a corrente nervosa pelos prolongamentos do corpo celular e a emitem pelo axônio. Esta disposição estabelece certas direções de condução, que estariam então determinadas anatomicamente; todas as demais diferenças funcionais teriam que ser justificadas a partir da própria atividade cerebral, pensada em termos das relações entre os neurônios [20], e é nesse sentido que a teoria neuronal presta-se à fundamentação e à generalização da tese da autonomia do ponto de vista funcional que Freud propusera apenas a propósito da linguagem em Sobre a concepção das afasias. Deste modo, se o Projeto... consiste, em parte, num trabalho de generalização da noção de representação afetiva, dando assim um alcance metapsicológico a um conjunto de noções oriundas da clínica da histeria e de outras neuroses, pode-se dizer também que ele consiste num trabalho de generalização do ponto de vista funcional introduzido em 1891 para a abordagem dos distúrbios da linguagem. A convergência dessas duas linhas de pensamento - que se exprimem no Projeto... já de início como quantidade e neurônio - permite a Freud propor a sua alternativa à concepção localizacionista que afirma estarem os elementos psíquicos contidos nas células nervosas: a única coisa que um neurônio, entendido como a unidade material de composição do sistema nervoso, pode inteligivelmente conter é um certo montante de quantidade (Qh'), resultando daí a redefinição do conceito meynertiano de ocupação (Besetzung), que adquire então o sentido que manterá ao longo de todo o percurso posterior da metapsicologia:

"Combine-se esta apresentação dos neurônios com a concepção da teoria de Qh' e obtém-se a idéia de um neurônio ocupado (besetzten), que pode estar preenchido com certa Qh' e outras vezes estar vazio". (Freud 1895/1950, p. 390, grifos do autor)

É partindo deste dado elementar - um sistema de neurônios que podem estar ou desocupados ou ocupados em diversos graus pela quantidade - que Freud procurará reconstruir a totalidade das funções psicológicas. A primeira delas, e a que nos interessa no momento, será justamente a memória. Essa precedência da memória sobre as demais operações psicológicas permite entrever o modo como Freud passa, a partir daqui, a conceber o psíquico stricto sensu basicamente como memória [21], isto é, como um sistema de inscrições mnêmicas cujo mecanismo é justamente o que é descrito na continuidade. O primeiro passo é conferir uma significação funcional à descontinuidade estrutural que a teoria dos neurônios atribui à micro-anatomia do sistema nervoso: à distinção histológica que afirma que os neurônios conectam-se por intermediação de uma substância nervosa distinta daquela que os compõe Freud acrescenta que, se os neurônios possuem uma organização interna tal que os torna aptos a transmitirem eficientemente a quantidade, a substância intersticial que deles difere deve funcionar como uma resistência à passagem da excitação, ou seja, para empregar a terminologia freudiana, deve comportar-se como uma barreira de contato (Freud 1895/1950, p. 391). A justificativa inicial para a introdução desse conceito é a necessidade reconhecida anteriormente de que um sistema de neurônios que precise processar e eliminar também montantes de excitação provenientes do interior do organismo deve preservar uma certa reserva de quantidade que lhe permita agir desde o momento em que o estímulo somático torne-se perceptível. Um tal sistema não pode, por isso, ser totalmente permeável à quantidade, devendo reter pelo menos uma fração mínima daquelas que o atravessam; daí a necessidade de supor uma resistência ao fluxo da quantidade que, sendo o neurônio concebido justamente como um dispositivo destinado a permiti-lo e a otimizá-lo, é mais verossimilmente atribuível ao tecido alheio que os separa (ibidem, p. 391). Mas Freud observa, imediatamente, que essa suposição é frutífera em muitas direções, e a direção em que a explorará a seguir é precisamente na justificação da memória.

Resumindo, o argumento é o seguinte: essa resistência não pode ser absoluta, porquanto o sistema de neurônios continua sendo concebido como um dispositivo voltado primariamente para a eliminação de quantidades, mesmo que essa eliminação tenha agora uma certa constante mínima de excitação como limite. Ela pode, portanto, ser vencida - e a barreira de contato ultrapassada - pela intensificação do processo excitatório até um ponto em que a ocupação do neurônio por quantidade exceda a capacidade de resistência oferecida pela barreira, ocorrendo então a transferência da excitação para o neurônio seguinte. Esse processo deixa atrás de si uma modificação, mas não do neurônio, que permanece, por hipótese, estruturalmente idêntico a todos os demais, mas na barreira de contato que, uma vez ultrapassada, tem a sua capacidade de oferecer resistência ao fluxo da quantidade diminuída. Nas palavras de Freud, ela encontra-se desde então facilitada (gebahnt), requerendo doravante níveis de ocupação menores do neurônio para ser ultrapassada. Forma-se, então, como o próprio termo indica - o sentido mais imediato do verbo bahnen é o de "abrir caminho", "trilhar", "abrir um caminho percorrendo-o" - , uma via preferencial para a ocorrência de novos processos excitatórios no interior do sistema de neurônios: estes tenderão a transcorrer ao longo dos mesmos caminhos anteriormente trilhados, uma vez que as barreiras de contato nesta direção apresentarão um grau maior de facilitação (Bahnung).

Não é, evidentemente, possível examinar aqui todas as nuanças da teoria da memória que Freud elabora no Projeto..., de modo que é preciso restringirmo-nos apenas àquilo que serve para estabelecer a continuidade entre essas reflexões e o ensaio sobre as afasias [22]. Ficara ali constatado que o problema de explicar a memória dentro do quadro na teoria da representação que emergira da crítica ao localizacionismo residia em justificar a possibilidade da repetição de um processo cortical no contexto de uma área desprovida das diferenciações anatômicas que respondiam pela conservação das inscrições mnêmicas. No Projeto..., esta possibilidade é assegurada pela série de facilitações das barreiras de contato entre os neurônios, estabelecida pela ocorrência dos processos anteriores. Dada uma pluralidade de caminhos possíveis, a cada nova inervação de uma região cortical, a quantidade seguirá preferencialmente pela via mais facilitada, e essa repetição de um percurso anterior constitui, para Freud, a base da memória. Para tanto, é necessário supor que os neurônios responsáveis pela conservação da memória - os neurônios y - disponham de múltiplas conexões, de modo que algumas possam encontrar-se num estado de facilitação maior que as outras, estabelecendo os percursos preferenciais de que a memória depende:

"Suponhamos que todas as barreiras de contato de y estejam igualmente bem facilitadas ou ofereçam resistência idêntica, o que dá no mesmo; então, evidentemente, não obteríamos as características da memória. Pois a memória é, evidentemente, em relação ao decurso da excitação, um dos poderes determinantes e indicativos do caminho e, com uma facilitação idêntica por toda parte, não se compreenderia uma preferência de caminho. Por isso, pode-se dizer mais corretamente ainda: a memória se apresenta através das diferenças nas facilitações entre os neurônios y". (Freud 1895/1950, p. 393, grifos do autor)

Se, como ficara estabelecido no ensaio de 1891, a representação é um processo cujos elementos constituintes não são, eles mesmos, de natureza psíquica ou representacional e se sua rememoração depende, portanto, da repetição deste processo, tanto a possibilidade desta repetição quanto a natureza dos elementos da representação são especificados pela hipótese das barreiras de contato e de sua facilitação diferencial. Os elementos da representação são neurônios com barreiras de contato facilitadas entre si, de modo que a ocupação de um conduza à ocupação da totalidade do complexo assim constituído, que passa a funcionar como uma unidade; estes neurônios não contêm, de forma alguma, os átomos da representação, mas tão somente um certo montante de quantidade que pode fluir em determinadas direções, estabelecendo novas conexões. O mais importante de tudo isso é que esse caminho (Bahn) é constituído pelos próprios processos e não está determinado por restrições anatômicas prévias, como na hipótese localizacionista que distinguia taxativamente entre as células dos centros e as vias associativas que as conectavam. A Bahnung (facilitação) de Freud é, portanto, antes de tudo, o processo de constituição das vias (Bahnen) de condução corticais - lembremos como Freud insistira em 1891 na natureza cortical da associação -, não mais pensadas como realidades anatômicas dadas de antemão, mas como séries de facilitações decorrentes da própria ação dos processos excitatórios; elas passam, assim, a depender do próprio funcionamento do sistema neuronal e das operações que aí se realizam, promovendo e consolidando a precedência e a autonomia do ponto de vista funcional que Freud preconizava no trabalho sobre a afasia.

Essas considerações dão margem a uma formulação mais precisa do importante conceito freudiano de traço mnêmico (Erinnerungsspur) e da elucidação de sua relação nem sempre clara com a representação [23]. Na passagem citada acima, em que Freud enuncia a hipótese da quantidade, ele afirma que esta última se difunde sobre "os traços mnêmicos das representações" (Freud 1894, p. 74) como as cargas elétricas sobre a superfície de um corpo; parece estar afirmando que as duas noções não se identificam, muito embora estejam relacionadas de alguma maneira. Em outras palavras, o traço mnêmico enquanto tal não é uma representação, mas encontra-se para com esta em uma relação específica que é preciso determinar. Vimos como, no ensaio sobre a afasia, Freud definiu a representação como um processo associativo complexo, cujos elementos, a estar correta a análise proposta, não consistem em átomos de representação, mas em eventos corticais, cuja natureza não era ali especificada e que adquirem as propriedades da representação ao serem organizados de determinada maneira pela dinâmica dos processos onde se vêem envolvidos. No Projeto..., Freud redefine a representação como um fato de memória, quando considera o sistema y como a base dos "processos psíquicos em geral", como se viu acima. Por outro lado, ele reafirma o caráter necessariamente complexo da representação (Freud 1895/1950, p. 423, por exemplo), o que equivale a dizer: uma representação nunca consiste num neurônio isolado, mas sim num complexo neuronal estabelecido pelas facilitações das barreiras de contato que conectam os neurônios que o constituem entre si, as quais permitem que o complexo seja sempre ativado como um todo e funcione como uma unidade. Se entendermos a representação como um fato de memória e o traço mnêmico como a unidade mínima de análise dessa função psicológica, é possível sustentar simultaneamente para este último a condição de elemento constitutivo da representação e a identificação virtual entre o psíquico e a memória que parece estar sendo promovida por Freud [24]. O traço mnêmico, na sua forma mais elementar consistiria, então, em um neurônio mais uma facilitação , a qual, por sua vez, garantiria a conexão com o elemento seguinte do processo necessariamente complexo da representação. O traço mnêmico mínimo não pode ser identificado ao neurônio somente, pois este, por hipótese, permanece inalterado, alternadamente ocupado ou desocupado, e não pode, portanto, ser a base das modificações relativamente permanentes que respondem pela memória, que só podem ser pensadas como alterações sistêmicas. Isso resultaria, por outro lado, em afirmar que os neurônios são os elementos da representação, o que significaria o retorno a uma espécie de reducionismo anatômico, além de implicar a perda do caráter dinâmico que Freud quer atribuir ao mental. A representação pode ser assim definida como um sistema de traços mnêmicos que impõe uma certa organização aos processos corticais, fazendo com que a cada novo fluxo da quantidade a excitação cerebral distribua-se segundo um determinado padrão determinado pelos processos anteriores, sem que esteja excluída sua modificação pela inclusão de novos elementos, o que, segundo o conceito de sobre-associação introduzido desde 1891, leva sempre à alteração da significação funcional de um dado percurso neuronal. A relação entre o psíquico e sua base neural fica assim escalonada em três níveis. O primeiro corresponde a uma série de facilitações deixadas por algum processo anterior que constitui um complexo associativo de neurônios operando, desde então, como uma unidade funcional; pode-se dizer que este sistema de traços mnêmicos constitui a representação em potência, já que a sua efetividade psíquica depende de um novo fluxo da quantidade, que torne a ocupar e a ativar o complexo. O segundo nível corresponde ao processo da representação (Vorstellungsablauf) propriamente dito, quando o complexo torna-se novamente ativo devido à sua ocupação pela quantidade, e a representação pode ser dita psicologicamente eficaz [25]. Isso, por si só, contudo, não significa que a representação torne-se consciente, o que configuraria o terceiro nível da relação mente-cérebro: a desvinculação entre o psíquico e o consciente que se consuma no Projeto..., como se viu acima, permite admitir que a representação possa produzir toda uma série de efeitos e ter o seu comportamento descritível em termos psicológicos sem aceder à consciência. O estabelecimento das condições para o tornar-se consciente (Bewubtwerden) compõe uma parte importante das preocupações de Freud no Projeto..., cujo exame não poderá aqui ser levado adiante, cabendo apenas insistir no quanto a constituição do psíquico e o surgimento da consciência tornam-se daqui em diante, para Freud, dois problemas distintos que podem ser tratados separadamente (ver Simanke e Caropreso 2003). Toda essa armação conceitual pareceu ser necessária para substituir a concepção localizacionista da relação entre mente e cérebro, criticada anteriormente por exigir a tese insustentável de que os elementos psíquicos estivessem contidos ou armazenados nas células nervosas. A teoria freudiana da memória, cujos elementos essenciais podemos encontrar no Projeto..., surge assim como a conseqüência natural e como a culminação do argumento anti-localizacionista desenvolvido desde 1891; por outro lado, ela constitui o fundamento conceitual sobre o qual pode-se erigir a teoria de um inconsciente psíquico, representacional, psicologicamente ativo, concedendo, enfim, a carta de cidadania metapsicológica às intuições clínicas que já há algum tempo se acumulavam e que tão reticentemente eram consideradas por Freud.

 

IV. Conclusão.

A análise desenvolvida acima parece permitir situar o Projeto... no entrecruzamento das principais linhas de investigação que caracterizam os primeiros passos da construção do pensamento de Freud. A tendência a considerá-lo uma obra de exceção no contexto deste percurso inicial parece provir de uma interpretação que vê no par formado pela psicologia e a neurologia uma alternativa excludente que se teria colocado para o primeiro Freud, uma bifurcação do caminho, na qual, após algumas hesitações, ele teria decididamente optado pela via psicológica. O que se procurou mostrar neste e noutros trabalhos (Simanke 2004, por exemplo) é que Freud partiu e susteve ao longo de todo o seu itinerário a posição de que uma psicologia verdadeiramente científica - segundo os parâmetros da ciência natural evidentemente - deveria ser necessariamente uma neuropsicologia, sem por isso deixar de ocupar-se das questões usualmente pertencentes ao campo psicológico, como as funções psíquicas mais elevadas, indo até o comportamento social e cultural do homem, que Freud, a seu tempo, não deixou de incluir em suas investigações. Assim, em Sobre a concepção das afasias, não se tratava simplesmente de opor uma análise da linguagem como função autônoma ao reducionismo grosseiro que distinguiria o localizacionismo, mas antes de desfazer confusões conceituais que impediam que se concebesse adequadamente as bases neurais da linguagem, reformulando essa concepção na forma especulativa em que isso era então possível, de modo a permitir uma compreensão mais eficaz do funcionamento normal e patológico dos processos lingüísticos. Da mesma forma, na clínica da histeria, não se tratava de escolher entre uma explicação fisiológica, que relegava os sintomas a fenômenos deficitários incompreensíveis, e uma abordagem interpretativa que lhes revelasse a significação imanente, mas de formular uma explicação psicológica dos distúrbios neuróticos que justificasse seu sentido histórico e individual na sua função de determinante causal dos processos, sem abrir mão da materialidade atribuída aos mesmos. Nesse contexto, pode-se compreender que o Projeto... não se reduza a uma opção retrógrada e já anacrônica pela fisiologia em detrimento do sentido ou pela neuroanatomia em detrimento da linguagem, mas constitua a primeira grande tentativa de síntese e de conciliação entre esses pares aparentemente antagônicos empreendida por Freud. Seu malogro pode ser creditado à imensidão da tarefa e ao caráter prematuro do empreendimento, que seria renovado em sucessivas tentativas posteriores, que não parecem diferir essencialmente daquela esboçada no Projeto... . Por exemplo, quando se compara este último com o capítulo 7, pode-se perceber que a diferença entre os dois provém muito mais de uma restrição da ampla problemática abordada em 1895, de uma seleção e de um aprofundamento de certas questões, do que de uma mudança drástica de perspectiva [26]. Essa semelhança de fundo, às vezes, aflora mesmo à superfície, e podemos encontrar um punhado de afirmações textuais, no texto de 1900, algumas fórmulas que retomam, praticamente sem alteração os enunciados do Projeto... . Assim, por exemplo, Freud continuamente alerta lá o leitor quanto ao caráter mais ou menos figurado de seu modelo da tópica psíquica. Porém, quando se trata de oferecer uma visão mais direta e literal do que está pretendendo representar por aquele, o que ressurge não são apenas as idéias, mas também, inclusive, a terminologia do Projeto..., além da reiteração da recusa do localizacionismo que data do ensaio sobre as afasias:

"Nós substituímos aqui, mais uma vez, um modo de representação tópico por um dinâmico; não é a formação psíquica que nos aparece como móvel, mas sim sua inervação.

Apesar disso, considero conveniente e justificado preservar a representação intuitiva dos dois sistemas [inconsciente e pré-consciente/consciente]. Evitamos qualquer abuso deste modo de apresentação se nos recordamos que representações, pensamentos e formações psíquicas em geral não podem ser localizados dentro de elementos orgânicos do sistema nervoso, mas, por assim dizer, entre eles, onde resistências e facilitações formam o correlato que lhes corresponde". (Freud 1900, p. 578-9, grifos nossos)

Formulações deste tipo aparecem, inclusive, no momento mesmo da introdução do esquema do aparelho psíquico que se celebrizou como a "primeira tópica" freudiana e onde muito se costuma ver o momento privilegiado no qual a renúncia freudiana a uma explicação neurológica do mental se exprimiria da forma mais explícita e inequívoca possível. Deixando de lado, por ora, o fato de que Freud abre essa exposição afirmando que tudo o que ele está se propondo a descrever psicologicamente admite também, pelo menos em princípio, uma descrição anatômica (Freud 1900, p. 512) - afirmação que é muitas vezes, misteriosamente, interpretada no sentido oposto -, observemos somente que a concepção que ele aí se faz da memória e da associação reproduz ipsis litteris a do Projeto...:

"O fato da associação consiste, então, em que, devido a reduções de resistência e facilitações, a excitação se propaga antes de um elemento Mn até um segundo do que até um terceiro elemento Mn". (Freud 1900, p. 515, grifos nossos) [27]

Estabelecer a continuidade entre o Projeto... e a obra freudiana posterior é, no entanto, matéria para futuros desenvolvimentos. Este trabalho procurou tão somente avançar um primeiro argumento a favor dessa homogeneidade e, em última análise, da unidade do projeto teórico de Freud, mais ou menos nos seguintes termos: se os Estudos sobre a histeria e o ensaio sobre as afasias traduzem já a novidade freudiana e se, não obstante, se puder mostrar a continuidade entre o Projeto... e estes trabalhos anteriores, então talvez este último não seja um corpo estranho na evolução Freud rumo à psicanálise e não consista somente numa massa confusa de intuições psicológicas vazadas na linguagem de uma neurologia antiquada, mas sim numa peça fundamental na construção da teoria psicanalítica, não apenas como local de nascimento de um punhado de noções psicanalíticas que seriam depois desenvolvidas de forma mais adequada, mas mesmo quando tomado pelo seu valor de face.

 

Notas:

(*) Este trabalho recebeu apoio do CNPq sob a forma de Bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida ao projeto Consciência e representação em psicanálise: alcance e limites da reflexão metapsicológica, ao qual se encontra vinculado.

1. É verdade que a tradição de leitura de Freud inaugurada por Politzer (1928) considera a metapsicologia como um todo um resquício permanente do referido modelo no interior da psicanálise, fazendo obstáculo a que esta assumisse plenamente, pelo menos com Freud, a originalidade e a ruptura que representam suas próprias concepções. Esta ultrapassagem, então, nunca teria sido completa.

2. Isso permitiria concluir que Freud desenvolve toda sua obra, sem solução de continuidade, a partir de um mesmo conjunto de princípios estabelecidos muito precocemente. Solms e Sailing (1986) procuram estabelecer esta mesma continuidade e consideram o ensaio sobre a afasia de 1891 como o elo de ligação entre o Freud neurologista e o Freud psicanalista, o passo inaugural na fundação da psicanálise. Contudo pretendem sustentar essa afirmação na adoção das idéias de Jackson por parte de Freud, em particular do paralelismo psicofisiológico, que permaneceria desde então o instrumento para sustentar a autonomia da investigação psicológica (essa posição é reafirmada em Solms 1998). Não deixam, portanto, de convergir com a interpretação que vê no Projeto... um recuo com relação aos trabalhos iniciais de Freud, apenas nuançada aqui pelo reconhecimento de que este consiste no primeiro esboço da teoria psicológica que seria finalmente publicada no capítulo de A interpretação dos sonhos. Procuramos mostrar, ao contrário, em outro trabalho (Simanke 2004), que os elementos conceituais para a superação do paralelismo já estão presentes em Sobre a concepção das afasias e que o Projeto... é o local desta superação, essencial para a constituição da psicanálise.

3. Cabe aqui considerar o seguinte contra-argumento: o Projeto... prolongaria, sim, a reflexão de Breuer, mas ambos teriam sido abandonadas em bloco por Freud na passagem para A interpretação dos sonhos. Observe-se, contudo, que essa tese assume de saída que o conflito entre neurologia e psicologia já está presente desde sempre em Freud e que se tratou sempre aí de uma alternativa excludente. Para decidir a questão, seria preciso demonstrar a mesma continuidade entre o Projeto... e o capítulo 7 da obra de 1900, o que não poderá ser realizado aqui. Algumas considerações esparsas quanto a isso, porém, são avançadas no final.

4. Sulloway é um dos que se empenham em valorizar a contribuição de Breuer na construção da teoria freudiana (Sulloway 1979, p. 22-69). Numa direção bem diferente, Laplanche e Pontalis (1965) apontam a atitude até certo ponto surpreendentemente psicanalítica de Breuer no tratamento de Anna O., no sentido de que se preocupava mais com a realidade psíquica do que com a realidade objetiva dos conteúdos rememorados e relatados pela paciente, diferindo nisso da própria atitude inicial de Freud.

5. Freud igualmente reconhece que a plena admissão de um psiquismo inconsciente exige uma revisão do que se entende por consciência. Por exemplo, em Sobre a psicoterapia da histeria: "Entendemo-nos, então, facilmente com eles [os pacientes]: eram pensamentos inconscientes. (...) Deve-se supor que se trata realmente de pensamentos que nunca se realizaram, para os quais havia meramente a possibilidade de existência, de tal forma que a terapia consistiria na consumação de um ato psíquico naquele momento interrompido? É evidentemente impossível pronunciar-se sobre isto - a saber, sobre o estado do material psíquico antes da análise - antes que tenham sido fundamentalmente esclarecidas nossas visões psicológicas de base, acima de tudo sobre a essência da consciência" (Freud 1895, p. 306, grifos nossos). Pode-se perfeitamente considerar essa passagem como o anúncio do que Freud tentaria, imediatamente, empreender no Projeto... .

6. Projektion e Repräsentation (e não Vorstellung), respectivamente, no texto sobre a afasia. A primeira designa a relação ponto por ponto entre a estimulação periférica e substância cinzenta central, afirmada por Meynert para a relação entre a periferia e o córtex e só admitida por Freud para a relação entre a periferia e a substância medular. A segunda, proposta por Freud como alternativa à concepção meynertiana da projeção, designa a relação entre as terminações sensoriais periféricas e o córtex, mediada por sucessivos processos de seleção, recombinação e organização das conduções nervosas nos núcleos de substância cinzenta intermediários. No artigo de 1893, escrito originalmente em francês para os Archives de Neurologie, Freud reserva o termo "répresentation" para verter "Repräsentation" e emprega "conception" para a "Vorstellung", como se verá abaixo.

7. "Tais observações parecem-nos comprovar a analogia patogênica entre a histeria comum e a neurose traumática e justificar uma extensão do conceito de 'histeria traumática'" (Freud e Breuer 1893, p. 84, grifos dos autores).

8. O termo francês "conception" está aqui claramente sendo utilizado para verter a "Vorstellung" (representação) alemã. Note-se que Freud fala aqui da representação de movimento (Bewegungsvorstellung) do membro paralisado, cuja inacessibilidade provocaria a paralisia (e não, por exemplo, da imagem visual, que só poderia resultar numa espécie de alucinação visual negativa do braço). As sensações e representações de movimento desempenham um papel importante na neuropsicologia do século 19, desde sua introdução por Bell em 1826 (Boring 1942, p. 10) e Freud lhes concedera um destaque especial em sua análise da linguagem em 1891.

9. No que se segue, fica bastante evidente o parentesco entre esta noção e o conceito de quantidade empregado por Freud no Projeto... . Breuer a remete ao "tetanus intercelular" de Exner (Breuer 1895, p. 252), cujo Entwurf... fora publicado no ano anterior e que pode, assim, constituir uma fonte comum de ambas as noções.

10. "Contudo, as influências desgastadoras são, por inteiro, operações da associação, do pensamento, uma correção através de outras representações. Isso se torna impossível quando a representação afetiva (Affektvorstellung) é subtraída à 'circulação associativa'; e, em tal caso, esta conserva todo seu valor afetivo" (Breuer 1895, p. 272, grifos nossos).

11. A distinção entre processo primário e processo secundário, introduzida já no Projeto... será o principal operador conceitual dessa distinção.

12. Outro exemplo: "Normalmente, quando a intensidade de uma representação inconsciente cresce, eo ipso ela ingressa na consciência. Apenas permanece inconsciente dada uma intensidade menor" (ibidem, p. 282).

13. Fausto, Parte I, cena 4.

14. O texto prossegue no mesmo tom, reproduzindo passo a passo as concepções do Projeto..., inclusive em suas implicações epistemológicas: "[A psicanálise] declara que esses processos concomitantes presumidamente somáticos são o psíquico genuíno e, para fazê-lo, prescinde, de início, da qualidade da consciência. (...) Enquanto que a psicologia da consciência nunca escapou daquelas séries lacunares, que evidentemente dependem de outra coisa, a concepção segundo a qual o psíquico é em si inconsciente permite configurar a psicologia como uma ciência natural entre as outras" (Freud 1938, p. 156, grifos nossos).

15. Cabe alertar aqui contra a tentação de ver nessa passagem a antecipação do célebre aforismo lacaniano que afirma que "o eu é um sintoma". Freud está aqui, justamente, enfatizando a diferença essencial entre as representações que constituem o eu e as que sustentam o sintoma: a estranheza e a incongruência destas últimas, a impossibilidade de compreendê-las, deve-se ao desconhecimento de sua gênese, e a elucidação desta pela análise resulta na abolição de seu caráter sintomático e em sua integração ao eu.

16. Uma concepção dinâmica da representação e de seu caráter afetivo - no sentido mais amplo apontado acima - estaria já embutida nessas considerações freudianas: a representação é aí o nome que se dá ao conjunto de propriedades distintivas de que se revestem os processos corticais quando organizados de uma determinada maneira pelo próprio transcurso dos processos excitatórios. Assim, a movimentação de algo da ordem de uma quantidade (uma Erregungssumme, soma de excitação) é condição imprescindível para a constituição da representação e a relação entre representação afeto (sempre nesse sentido mais geral) deixa de ser contingente para se tornar necessária. A generalização metapsicológica do conceito clínico de representação afetiva que se dá Projeto... por intermédio da concepção quantitativa (como vimos, um movimento no sentido teoria das neuroses ® metapsicologia) pode ser entendida, então, como a consolidação dessa posição já entrevista em Sobre a concepção das afasias, o que abre uma via em sentido oposto (metapsicologia ® teoria das neuroses) para se pensar a relação entre os primeiros passos da metapsicologia e as investigações clínicas iniciais de Freud.

17. Todas essas análises estão baseadas na hipótese, exposta em Simanke (2004) e já mencionada acima, de que o que Freud formula em 1891 a propósito do correlato neural da representação é aplicado, a partir de 1895 - a partir do Projeto... justamente - à própria representação que, enquanto inconsciente, é identificada aos processos corticais sobre cujas características Freud especula em Sobre a concepção das afasias.

18. "Über einige neuere Forschungen im Gebiete der Anatomie des Centralnervensystems" ("Sobre algumas novas investigações na área da anatomia do sistema nervoso central"), publicado no Deutsche medizinische Wochenschrift (citado por Clarke e Jacyna 1987, p. 99). O interesse e a contribuição desta doutrina para as questões conceituais específicas que Freud tinha em mente podem explicar sua adesão de primeira hora a uma concepção que haveria ainda de permanecer longamente controversa, com o debate entre os "reticularistas" e os "neuronistas" adentrando bem o século 20 (ibidem, p. 100).

19. Gabbi Jr (2003, p. 32) considera este um dos postulados principais do Projeto... e o denomina "postulado da identidade neurônica". No entanto, esta característica só pode ser considerada um postulado do ponto de vista da estrutura argumentativa construída por Freud, pois ele a extrai, como reconhece no texto, da "histologia recente" (Freud 1895/1950, p. 390), onde a doutrina neuronal, proposta primeiramente por Waldeyer, resulta da sistematização de uma considerável massa de observações de Forel, Ehrlich, Ramon y Cajal, entre outros, e faz parte, assim, da relativamente reduzida base de conhecimento empírico direto do cérebro de que Freud dispõe para sustentar suas hipóteses neuropsicológicas no Projeto... .

20. Freud reconhece, ainda, no enunciado da teoria neuronal, as ramificações e as diferenças de calibre entre os neurônios como diferenças anatômicas que condicionam a função nervosa. Contudo, o desenvolvimento de sua argumentação no Projeto... está claramente inclinada à relativização do papel destes dados anatômicos e a pensar a determinação dos processos a partir das condições de funcionamento do sistema, que incluem, decisivamente, os fatores oriundos da experiência.

21. De fato, ao introduzir a distinção entre os sistemas f e y, Freud afirma: "Há, por conseguinte, neurônios permeáveis (...), servindo à percepção, e impermeáveis (...), os portadores da memória e, provavelmente, dos processos psíquicos em geral. Daqui por diante, chamarei o primeiro sistema de neurônios de f e o último de y" (Freud 1895/1950, p. 392, grifos nossos).

22. Por exemplo, Freud propõe, na verdade, pelo menos dois outros fatores complementares - a freqüência da ocupação e a ocupação simultânea de neurônios adjacentes - que, juntamente com a grandeza da impressão, cooperam no estabelecimento das facilitações. O fato de que a passagem da quantidade reduz a capacidade de resistência da barreira de contato, por sua vez, sustenta-se a partir de uma série de especulações biológicas sobre a origem evolucionária do sistema nervoso que, em última instância, remontam também a Meynert.

23. Ver, por exemplo, Laplanche e Pontalis (1995, p. 449): "Apesar de estar sempre presente implicitamente no uso freudiano, a distinção entre traço mnésico e representação como investimento do traço mnésico nem sempre é colocada com nitidez".

24. Mais precisamente, a memória representa o psíquico em sentido estrito ou, pelo menos, sua base. A percepção, para Freud, consiste, por um lado, em um processo puramente físico de recepção e condução de estímulos e, por outro, na apreensão consciente e qualitativa do conteúdo perceptivo, que já pertence à esfera da subjetividade, e não mais ao psíquico em si, formado pelos complexos de traços mnêmicos. Em A interpretação dos sonhos, a separação entre estes dois aspectos da percepção é ainda mais explícita, pois eles aparecerão repartidos nas duas extremidades do aparelho psíquico, com os diversos sistemas de mnêmicos de permeio (Freud 1900, p. 517).

25. Pode-se tentar, a partir daí, uma distinção entre traço mnêmico e imagem mnêmica, duas noções cuja distinção tampouco é clara. O traço mnêmico seria a unidade da representação em potencial, o neurônio mais uma facilitação que o articule a um complexo neuronal. Imagem mnêmica corresponderia a uma definição funcional do complexo, a partir do momento em que ele, reocupado pela quantidade, torna-se psicologicamente ativo e passa a desempenhar, por exemplo, a função de representar um objeto ou uma palavra, independente de seu acesso ou não à consciência.

26. O caráter "psíquico" - e não mais "neuronal" -, por exemplo, da teoria do aparelho e da tópica aí desenvolvida resultam de que, do sistema de neurônios apresentado no Projeto..., sobrevive na Traumdeutung apenas o manto do sistema y, cujo funcionamento é desdobrado numa multiplicidade de subsistemas de memória, entre os quais contam-se as peças fundamentais da primeira tópica freudiana: o inconsciente e o pré-consciente. Pode-se dizer que o movimento que conduz daí à segunda tópica consiste numa progressiva reintrodução de questões já abordadas no Projeto... e que desapareceram da teoria no período 1895-1900 - ou, pelo menos, deixaram de receber uma representação tópica explícita -, entre as quais caberia destacar o eu, a pulsão e a consciência.

27. O que Freud designa aí como "elemento Mn" é precisamente o traço mnêmico, do qual se propôs acima uma definição nos termos do Projeto..., mas que não parece ficar mal neste contexto. Mais adiante, a propósito da questão das relações entre memória e consciência, Freud enuncia: "Agora, se fosse possível confirmar que, nos sistemas y, memória e qualidade para a consciência se excluem entre si, então se abriria uma perspectiva muito promissora sobre as condições para a excitação dos neurônios" (Freud 1900, p. 516, grifos nossos).

 

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 20 - Diciembre 2004
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