Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Transferência: Mise-en-scène ou Mise-en-acte?
Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares

Imprimir página

Ao abordar um tema ou um conceito específico num determinado campo teórico, a principal dificuldade que parece se impor é a da eventual escassez, a falta de recursos e referenciais. Por onde começar? A que textos e a que experiências recorrer? Não parece ser este o caso do presente trabalho, onde se pretende discutir a transferência, talvez o conceito mais trabalhado no âmbito da clínica psicanalítica. O termo terá, nas perspectivas de diferentes autores, tratamentos em espectros tão vastos e muitas vezes tão díspares, que acaba por confundir e desnortear os neófitos na área.

Lacan, em seu retorno a Freud, dedicou o seu mais difundido seminário (1) àqueles que considerou ser os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, a saber: pulsão, inconsciente, repetição e transferência. Os dois primeiros, tende-se a se trabalhar em separado quando nos voltamos aos principais textos de Freud. Poderia se dizer que a Traumdeutung originaria o debate sobre o Inconsciente enquanto os Três ensaios, aquele sobre as Pulsões. Poderia ser dito ainda, que estes textos inauguram dois discursos internos no freudismo, discursos que raramente se reagrupam ao longo de sua trajetória teórica (GARCIA-ROZA, 1991).

Já os dois outros conceitos considerados fundamentais têm uma proximidade que provoca uma difícil dissuasão ao se tratar de um ou de outro. Repetição e transferência, salvo por alguns poucos trabalhos breves (2), não têm um estatuto próprio, erigido em um texto específico, no entanto, estes permeiam toda a obra freudiana no que se refere a sua prática clínica.

Transferência tem ainda o problema de ser o mesmo termo utilizado para descrição de diferentes fenômenos dependendo da área epistêmica onde se emprega o termo. A transferência de que trata Freud é a de vivências de relações, modelos ou protótipos infantis para uma outra realidade ou relação; mais propriamente a situação da análise. Esta transferência, que tem por propulsão e alimento o desejo, se dá pela repetição dessas experiências no divã, na "realidade artificial" da análise. Sobre esta noção de uma "realidade artificial" procuraremos nos deter mais adiante, mas não sem antes deixar claro que este estatuto de repetição pouco tem a ver com o de uma cópia ou estagnação.

Estagnações existem devido ao fenômeno da resistência. Resistência que muitas vezes atua mais como ferramenta do que enquanto entrave no processo analítico. A repetição existe por que há limites para a incorporação de certas vivências ao psiquismo. Repetir situações, relações ou atitudes implica certamente em transformações e ai se encontra o papel do analista (FREUD. 1914 p.135).

O paciente não pode rememorar tudo o que foi recalcado. "Ele é antes obrigado a repetir o recalcado como vivência no presente". Cabe ao analista "limitar o máximo possível o domínio desta neurose de transferência, de levar o máximo de conteúdo possível para o caminho da rememoração e de deixar o mínimo possível à ação da repetição" (FREUD, 1920, p.17). Existe na repetição uma forma de reedição, de atualização das vivências.

A partir daqui parece ser digno de nota o aforismo que Lacan utiliza no acima-referido seminário para definir a transferência. "A transferência é a atualização da realidade do inconsciente" (LACAN, 1964 p.139, grifo meu). Em seus diferentes textos que fazem uso do conceito de transferência, Freud ora falará de afetos, ora de experiências, de mecanismos, de impressões, de protótipos. Enfim, o que todas estas designações terão em comum é o fato de estarem ligadas ao infantil, ao não elaborado e, portanto, ligados segundo as leis e a temporalidade do inconsciente.

Na situação analítica há uma atualização ou "presentificação" dessa realidade. Isso pode, sim, ser afirmado, porém é somente parte da verdade e talvez a parte mais problemática. Dizer que no setting clínico, no divã, repetimos e trazemos à tona o passado histórico-biográfico é o que o senso comum, de modo simplificado, absorveu como sendo o fazer analítico em si. O famigerado "Fale-me de sua infância" que já virou, não sem justiça, motivo de sátira, na academia, no cinema, nos chistes, é bem verdade, diz do modo como muitos procedem dizendo-se analistas.

O tempo em Psicanálise, desde Lacan (1945) o sabemos, não é o cronológico, aquele em que passado, presente e futuro se justapõe como etapas a serem cumpridas. Na análise fala-se sim e sempre de uma infância, mesmo quando trata-se de questões atuais, do trabalho, da relação conjugal, dos hobbies, das inibições, ou seja qual for o campo fenomenológico em que se articulem, é o infantil que atua. Isso, simplesmente, pois a sexualidade humana, o fazer na cultura, é por caráter infantil. Não é o caso, no entanto, de procurar saber de um tempo cronológico anterior como a fonte, a origem do sintoma ou da angústia. Pela transferência, o analisante pode não só atualizar, trazer para o presente a dinâmica de seu psiquismo. Não, não se trata tão somente de trazer para o presente como uma rememoração, atualizar implica também e principalmente "por em ato".

Traduttore, traditore! Com este chiste Freud (1905 p.14) faz alusão aos problemas que envolvem as imperfeições e eventuais tendenciosidades na tradução de enunciados. É preciso saber fazer justiça quando o oposto também ocorre. M.D. Magno, tradutor brasileiro do seminário onze, adverte o leitor em uma nota de rodapé. Lacan não teria utilizado em seu aforismo o termo actualiser ou actualisation e sim mise en acte. Mise, particípio do verbo mettre (por, meter, colocar, ordenar, dispor), partícula comumente associada a substantivos dando origens a expressões de difícil tradução. Exemplos tais seriam mise en jeu (emprego, uso), mise en œuvre (iniciação), ou a expressão utilizada no português mise en scène (encenação, ou preparativos necessário para a representação). Poderíamos aqui pensar o que esta atua(liza)ção ocorrida na transferência tem de "colocação em ato" e de "colocação em cena".

Bem sabemos que ao tomar as neuroses como objeto de estudo, investigação e tratamento, é a histeria o paradigma primeiro com o qual Freud se depara. É digno de nota que, ainda hoje, o termo histeria esteja associado à idéia de uma encenação. Não raro ouvimos falar, sobretudo num contexto pejorativo, de uma "cena histérica". Por certo a histeria, tal como se apresentava na época que hoje designamos como vitoriana, desempenhou um papel de sintoma social: as histéricas trouxeram para o palco, ou diante das luzes, um sofrimento humano sobre o qual a ciência médica não tinha controle. Um mal que paradoxalmente se apresentava na carne, mas não trazia qualquer causação orgânica identificável e não podia ser tratado pela medicina, senão como fingimento, dissimulação.

Com seu mestre francês, Charcot, Freud pode ter mais intenso contato com isso que demonstrava ser sim uma encenação, ainda que vivida como verdade. Com seus verdadeiros shows no anfi-teatro da Salpêtrière, a platéia formada por médicos, intelectuais e curiosos podia perceber como, sob o domínio da hipnose, as histéricas encenavam o que o diretor do espetáculo lhes ordenava. Havia uma quebra com a noção de verdade e fantasia, de cena e ato espontâneo. Ainda que presenciadas como ficção, aquelas situações eram vivenciadas como verdade, ou com força de verdade.

Freud, dali absorvera esta não-oposição entre o verdadeiro e o ficcional. Seu passo adiante foi perceber que estes enredos com força de verdade que operam no ser inconsciente pela sugestão hipnótica também atuam de forma determinante durante a vigília. Ele pode perceber que estes enredos, como são vividas as fantasias na vida cotidiana, são levados, ou transferidos para a clínica, para a relação com o analista. É justamente nos seus Estudos sobre Histeria, que escreve com Breuer, onde ele irá pela primeira vez abordar o fenômeno da transferência, pela noção de falsa-conexão.

O conteúdo do desejo tinha inicialmente surgido na consciência da doente em qualquer lembrança das circunstâncias que o rodeavam e que o teriam recolocado no passado. O desejo presente era então, em função da compulsão a associar que dominava na consciência, ligado a uma pessoa que ocupava legitimamente os pensamentos da doente; e, resultante desta ligação incorreta a que chamo de conexão falsa, despertava o mesmo afeto que em seu tempo tinha levado a paciente a rejeitar esse desejo proibido (FREUD & BREUER, 1895, p.309). (3)

Através das histéricas Freud aprendeu sobre o Inconsciente, sobre sua dinâmica e sua organicidade. Anna O., paciente de seu colega, contribuiu não somente com o método da livre associação como também o de "teatro privado". Nesse teatro, que não mais tem os espectadores da Salpêtrière, qual é então a função do analista? É o diretor, o coadjuvante, o protagonista, a platéia?

Como desempenhar o manejo da transferência e paradoxalmente seguir o conselho freudiano de permanecer in absentia ou in effigie (FREUD, 1912 p. 374) diante do amor transferencial? O analisante desempenha seu papel delegando ao analista o aparente papel de platéia-ouvinte e diretor-condutor. Quer saber de seus passos e julga que o analista saiba do caminho a ser seguido. Delega a este o conhecimento de um suposto script O analista, que de início quer ouvir as construções imaginárias, parece a platéia ideal, mas, quando as construções apresentam suas falhas, a "verdade" trazida pelo analisante parece se apresentar como dubitável.

Se ele pode observar essas falhas e incongruências no narrado e no atuado, supõe-se nele um saber onde elas não existam. A ele se dirige um discurso no qual as certezas vão se desfazendo e o que vinha sido vivido como a mais pura verdade, (o romance familiar, as fantasias, os pensamentos obsessivos onipotentes) revelam ser nada mais que um engodo. Já no fim da análise, o último bastião a ser derrocado é a suposta verdade do analista, o seu saber suposto. O passo subjetivo pelo qual se vê que o vivido não era senão ficção e que a verdade última não se tem acesso, torna possível construir um fazer, ou uma nova realidade onde haja menos sofrimento e angústia.

A transferência, engodo pelo qual se funda a análise é um passo essencial para um contato com a realidade do sujeito do inconsciente. Tratando-se de uma situação de substituição no amor (e que amor não é substituto), não pode ser senão engodo. Nela pensa-se procurar uma verdade para se encontrar uma mitologia própria. E se da ficção não podemos escapar, pela análise procura-se uma ficção mais satisfatória.

Notas

  1. Seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise

  2. Repetição: Recordar, repetir e elaborar (1914) e Além do princípio do Prazer (1920) / Transferência: Observações sobre o amor Transferencial (1915) e Sobre a Dinâmica da Transferência (1912).

  3. Apesar do livro-fonte ter sido escrito por Freud e Breuer, o trecho citado é de uma seção exclusiva de Freud.

Referências

FREUD, Sigmund & BREUER, Josef (1895/1999) – Studien über Hysterie in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Verlag

FREUD, Sigmund (1905/1999) – Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Verlag

FREUD, Sigmund (1912/1999) – Zur Dynamik der Übertragung in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Verlag

FREUD, Sigmund (1914/1999) – Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Verlag

FREUD, Sigmund (1920/1999) – Jenseits des Lustprinzips in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Verlag

GARCIA ROZA, Luiz Alfredo (1994) – Freud e o Inconsciente, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro

LACAN, Jacques (1945/1998) – O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada, in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro

LACAN, Jacques (1964/1999) – O Seminário – Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro

Volver al sumario del Número 20
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 20 - Diciembre 2004
www.acheronta.org