Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A que serve essa obesidade?
"
São trevas e não deve mexer"

Jorge A. Pimenta Filho

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Introdução

Ao nos depararmos com um caso intrigante como o de M., não podemos deixar de nos referir às indicações de Freud: prudência.

Vejamos como M., um sujeito feminino de 56 anos diante de um curto-circuito da pulsão escópica, lança mão na transferência, de um mecanismo protetor menos invasivo e suportável para seguir ‘caminhando’ sua vida, não sem dificuldades.

Ela parece relativamente estabilizada e não sabemos exatamente em que momento de sua vida ocorreu o desencadeamento da psicose.

Vamos privilegiar em nossa disciplina de comentário algumas referências psicanalíticas que o caso nos sugere, localizar o diagnóstico estrutural e situar questões quanto ao manejo transferencial, visando a indagar quanto à cirurgia bariátrica se indicada ou não, diante de um quadro de psicose já desencadeada, com estabilizações precárias.

O corpo para psicanálise

Para a psicanálise lacaniana a biologia não é o destino. E o corpo não equivale a organismo (o soma) mas implica o sujeito ($), a linguagem e o gozo. Lacan abordará o corpo a partir de três registros: o Imaginário, o Simbólico e o Real.

O corpo a partir do imaginário implica em o pensarmos como um envelope, como uma vestimenta que o sujeito porta, como uma imagem, imagem de corpo que tem sua unidade proporcionada a partir do espelho, como o demonstra Lacan, no Estádio do Espelho. 1

O sujeito (Eu) um "a" que se identifica a uma imagem de um "pequeno outro" (a ’) refletido no espelho, que não é ele, mas que parece fazer UM no espelho. Momento só tornado possível pela intervenção de um terceiro que nomeia: "sim, este é você". Momento imaginário que requer a estruturação por outros registros: o simbólico e o real. A condição para que se processe esse estágio do espelho é que o sujeito em questão — a criança — seja investido pelo olhar desse Outro (em posição ou registro simbólico) que o reconhece e que o torna objeto de um certo desejo particularizado. Esse momento do estágio do espelho estrutura o corpo como forma imaginária. 2

Para pensarmos o corpo a partir do registro simbólico a noção fundamental é a de que temos um corpo que nos é "designado" a partir da linguagem e é pela incorporação da linguagem que esse corpo é esvaziado de seu gozo. Gozo que para o neurótico fica, desde então, localizado em torno do significante falo (F). Essa noção é importante pois na psicose o corpo é invadido pelo gozo e não há o significante NP para nomear – há uma forclusão. 3

O corpo no registro real é de início o corpo que goza. É o que restaria do gozo pela incorporação (linguagem no corpo). Nos anos 70, Lacan cunhou um termo: "substância gozante", para falar do gozo que restaria no corpo como Outro gozo, noção que precisa ser melhor elaborada, pois nos é muito enigmática. Esse Outro gozo parece remeter ao que é constatado na esquizofrenia. Quanto ao real, não podemos nos esquecer da complacência somática na histeria, que é o tornar qualquer parte do corpo uma zona erógena. Noção que se apóia na idéia cartesiana do corpo estendido – res extensa. O gozo do corpo não é, necessariamente, o gozo do corpo de um outro, mas quando se goza , goza-se de um objeto tomado a partir da fantasia. O exemplo que nos vêm é o seguinte: o homem goza não de uma mulher, mas dela enquanto objeto de sua fantasia, ou seja goza do corpo de uma mulher. O gozo do corpo do outro (o do parceiro/a) é aquilo do objeto a na fantasia de quem goza.4

Olhar que escapa ao corpo

M., embora tenha um alto índice de obesidade, sua queixa principal, no início do tratamento, são suas dores no joelho, por causa de uma artrose e, pelo que nos diz sua terapeuta, ela não demonstrava muita vontade de emagrecer, de ter um "corpo magro", mas querer livrar-se da artrose.

Aos 29 anos, solteira, quando se aposenta precocemente, não era ainda obesa. Imediatamente perguntamos: será que a aposentadoria não lhe fez bem?

O corpo nesse caso faz sua entrada a partir do objeto olhar, que não estava enquadrado simbolicamente. Ela se vê capturada numa cena em que estão presentes, também, a irmã e o namorado dessa. M., que era apaixonada pelo rapaz, vê a "troca de olhares" dos dois e passa ao ato cravando uma faca nas costas do rapaz. Esse foi o motivo de sua primeira internação. A frase que se destaca desse ato é: "fiquei cega e encravei a faca".

Em outro momento do relato vemos ressurgir esse olhar sem enquadramento. Ela separou-se do marido depois de dois anos de casamento e tem explicações delirantes para esse fato real, o motivo fora a igreja. Um novo pastor não aceitou como legítimo o casamento realizado em outra igreja e no consulado do Panamá (país de origem do ex-marido) e sempre dizia que eles viviam em pecado, o que motiva M. a deixar de ter relações sexuais com o marido. Ele retorna para seu país de origem, a pedido dela, onde poderia encontrar uma moça melhor e ajudá-lo em sua carreira. A frase que diz é: "não tinha olhos para nada, só para a igreja, ficava o dia inteirinho lá".

As intensas relações mantidas com a religião, que a faziam exagerar na sua dedicação e no excesso de ‘contribuição’ financeira a uma determinada igreja, foi o que motivou uma de suas internações em Barbacena. Seus filhos foram cuidados por sua mãe, porque M. passava quase todas as horas do dia na igreja, ficando ausente de casa.

O objeto olhar ainda é encarnado para M. quando já havia iniciado seu tratamento no Núcleo de Obesidade, fazia uso da medicação psiquiátrica e comparecia regularmente às sessões com sua terapeuta. É quando seu ex-marido regressa ao Brasil. Pelo relato, deduzimos que essa sua adesão ao tratamento e sua relativa estabilidade psíquica é quebrada com a visita do ex-marido.

A desestabilização ou o temor de que isso ocorresse leva M. a estabelecer uma estratégia: vai espaçando sua presença às consultas, passando deixar longos recados na secretária eletrônica de sua terapeuta e a desmarcar horários de sessão. Esse mecanismo que utiliza pode ser uma tentativa de resguardar-se desse olhar invasivo vindo do Outro.

Delírios e manifestações corporais.

Sabemos que a interpretação delirante é a interpretação por excelência na psicose 5, que no trabalho analítico no campo das psicoses a interpretação não é do analista. M. tem suas interpretações, as já aludidas e outras. Ela acredita em seu delírio. Atribui a causa de sua doença ao fanatismo religioso. Ao passo que, perguntada sobre sua família, ela afirma que ninguém gosta dela e que todos estão dependentes da mãe pelo dinheiro. Que um de seus irmãos diz que ela não é doente e que vive uma mentira e que ninguém acredita no que ela sente.

Essa sua interpretação da posição do Outro nos indica tratar-se de uma paranóica: ela se vê perseguida pelo Outro. Uma inocência paranóica: é o Outro que lhe quer mal, que lhe é nocivo, que trama contra ela que se vê como objeto desse Outro gozador.

Em recados queixosos e repletos de lamentações, deixados para a terapeuta ela pergunta o que é ser esposa, pois se casou mas não o foi: "tudo era mentira, a minha família é sem Deus e eu amo só a Deus, quem não tem amor de Deus, é inexistente". Diz que isso era uma parte dela que sua terapeuta, deveria conhecer. Frase que revela um conteúdo erotomaníaco.

Lacan definiu estruturalmente a erotomania, como nos lembra Guy Trobas, concernida a um funcionamento paranóico do sujeito no qual este vem a ocupar o lugar de objeto do gozo do Outro, em nome da certeza do amor que o sujeito lhe imputa. Essa certeza — continua o autor — se impõe ao sujeito por causa da alteração simbólica do Outro que, na psicose, o faz ex-sistir no real. 6

Em outro momento, M. reafirma sua certeza psicótica de que ninguém gosta dela, acrescentando à lista o psiquiatra e a terapeuta e até mesmo o serviço público que não a valorizava.

M. demonstra-nos ter uma relação delirante com o sexo ou com a sexualidade à qual se recusa e da qual se protege. Diz se preocupar com a filha por não mais ser virgem e que ela mesma, M., quando moça era muito namoradeira. Fala de uma suposta investida sexual do pai que teria tentado molestá-la e que ela impediu, pois já sabia que ele fazia isso com as outras irmãs: ele era mulherengo. Envergonhada, admite namoricos que teriam transmitido a ela doenças sexualmente transmissíveis.

Revelando suas dificuldades pela inexistência de uma significação fálica, M. apresenta fenômenos alucinatórios (cenestesia): Diz que está num "estado alérgico perigoso, pois isso mata, até ácido salicílico mata". Fala que não vai mais tomar nada e nem vai mais comer, com exceção dos vegetais, arroz e feijão, pois está com alergia a tudo. Faz uma correlação entre os alimentos e os órgãos:

Mais tarde, mesmo refazendo seus conceitos quanto a seus cuidadores elogiando o trabalho do médico e da terapeuta, M. suspende sua ida a uma sessão, alegando que não poderá "tomar poeira" e que, se fosse, iria se cansar muito e assim teria que tomar mais antialérgicos.

O manejo transferencial possível

Como dissemos acima o trabalho interpretativo na psicose está com o paciente.

Na paranóia onde o imaginário tem estatuto de real – imaginário e real fazem síntese, o gozo está no campo do Outro.7 Então isso requer do terapeuta, do analista cuidados, prudência. Delírio é — como nos recomendou Freud — uma tentativa de cura e pode estar relacionado à transferência como no Caso Schreber. 8

As intervenções do analista aqui poderão funcionar como moderador de gozo, desde que não interprete e não coloque pontuações ou perguntas ou mesmo algumas afirmações diante das quais o sujeito psicótico possa se ver em situações enigmáticas, por não dispor do significante fundamental para dar conta das significações, ficando estas em suspenso. Pois o inconsciente está aí mas não funciona, está escancarado, a céu aberto.

E o efeito nefasto que constitui interpretar o saber do psicótico implica que o analista assim fazendo se coloca como o Outro que goza desse saber, deslizamento esse que conduz o analista ao lugar de perseguidor. 9

Diante de tantos limites qual é função e o lugar que o analista ocupa no tratamento do psicótico?

Não vamos responder essas questões sem recorrer ao que nos indica M. a partir da transferência.

Quanto a tal igreja que se inclui num primeiro momento dentro de seu delírio, em outro momento, M. descobre como freqüentá-la de uma forma mais ‘temperada’. E isso nos parece demonstrar ser uma ‘solução possível’ para mantê-la estabilizada.

Mudou sua relação com a igreja, como? Em um dos atendimentos quando reclamava de ter de ajudar financeiramente a filha e não aceitando o fato dessa dormir com o namorado, ela acrescenta: "mas não posso interferir, afinal quem criou não fui eu, a minha mãe sempre tomou conta da educação, da saúde,..., de tudo, porque eu não ligava pra nada, só pra Igreja. Hoje, é que estou indo menos, só uma vez por semana, quando consigo ir e só contribuo com 10% do meu salário. Não sigo fielmente a religião, pois me depilo, corto o cabelo, faço unha etc".

Sua relação com a igreja – que não lhe é mais tão devastadora, sugere-nos que o sujeito consente com uma solução autógena. Essa solução vai de par com outra: evitar o encontro "tête a tête" com a terapeuta, se ausentando das idas às sessões e se protegendo do olhar invasivo do Outro. E, por outro lado, ela descobre como manter um contato: deposita o objeto voz em sua secretária eletrônica. Lugar que M. supõe esvaziado de gozo. E ela faz essa oferta que lhe é menos penosa e que nos indica, claramente, um manejo mais frouxo e trivializado que devemos propor para transferência.

Essa solução não implica, necessariamente, que ela vá abrir mão de interpretações delirantes como revela: "Estou desanimada, pois os argentinos compraram toda a lã e não tem mais para comprar para retornar aos bordados".

Esse é um outro ponto a destacar: o bordado, que ela leva para mostrar à terapeuta. Talvez para lhe demonstrar como se faz bordas ... com as palavras.

Essa noção – fazer borda com as palavras — proposta pela paciente nos dá uma boa indicação de como conduzir o caso, realizando um manejo fino da transferência pois, como nos indica Guy Trobas, na medida em que o lugar da palavra existe na psicose e, mais ainda, quando essa transferência é parcial (no sentido do delírio parcial) ou esporádica, resta uma abertura de princípio a seu manejo e, mais além, uma interrogação do gozo que está em jogo na transferência. 10

M. vinha bordando muito, o que a ajudava a passar o tempo e ficar mais tranqüila, mesmo criticando algumas imperfeições — o avesso — como nos revela sua terapeuta. Curioso: na falta de bordas simbólicas que contornem seu mundo, ela faz bordados e de quebra critica o avesso.

Em suas últimas sessões ela não se queixava mais da artrose, mas da depressão e da vontade de se dopar e não de se suicidar, apenas de uma vontade de dormir e de não querer sentir nada. O sujeito aqui revela a necessidade de dopar o gozo que o atinge. A medicação lhe é necessária.

Revelando estar mais tranqüila, pergunta à terapeuta se essa tem religião. E a terapeuta diz ser a religião importante para M. A seguir, M. fala da força de Deus, e que ainda Ele não se comunicou com ela porque ainda não chegou a hora certa. À pergunta simples proposta pela terapeuta, "qual é a hora certa?" M. não responde e, diz: "o demônio é que faz mal, as pessoas não. São trevas e não deve mexer". E recusa-se a falar sobre isso. Dessa frase escutamos que M. parece dizer à sua terapeuta: "não toque nisso, pois esse é limite, e a partir daí eu não agüento!"

Escudo para psicose

Muitas obesidades graves revelam uma estrutura do tipo psicótica. É esse o comentário feito por Recalcati. Para o autor, nesses casos assistimos um retorno do real da libido diretamente sobre o corpo. Ou seja, que a libido não é mais investida sobre o objeto, mas está em um movimento de retorno sobre o corpo do sujeito. 11

Esse retorno da libido, gozo não barrado compacto sobre o corpo mostra que ali não houve a incidência da castração significante. No caso de obesidade em uma estrutura psicótica o sujeito se torna literalmente um objeto-devorado.12 E aqui nos remetemos a M. onde a devoração aparece, se assim podemos dizer, na vertente de ser devorada pelo objeto olhar do Outro.

A obesidade pode surgir como uma barreira entre o sujeito e o Outro perseguidor e a massa adiposa faz as vezes de escudo protetor contra a ameaça de dispersão, de fragmentação que são efeitos da intrusão de gozo.13

A cirurgia bariátrica sim ou não?

Se a obesidade funciona como uma borda, um limite, como parece nos demonstrar M. por que tocar nesse limite?

Recalcati não contra-indica peremptoriamente a cirurgia bariátrica, mas considera a sua não indicação em casos de psicoses graves 14 como o de M.

Para esse autor, podem-se ver casos onde a redução da obesidade, ou seja, a perda para o sujeito do seu invólucro protetor constituído pela dilatação somática do próprio corpo, pode dar lugar a vivências de uma verdadeira e própria despersonalização psicótica, ou seja, nesses casos, ser um fator de desencadeamento de psicoses não desencadeadas. 15

O caráter irreversível da intervenção cirúrgica de redução de estômago tem efeitos desestabilizadores: uma lesão irreversível da compensação imaginária que garantia ao sujeito uma identidade, no que concerne ao furo narcísico originário da psicose.16

Notas

1 MOREL, G. La différence des sexes – Séminaire théorique, Lille, Association de la Cause Freudienne-Lille, 1995, p.28-29

2 Ibid., id.

3 Ibid., id.

4 Ibid., id.

5 BENETI, A. A. Interpretação na psicose ou manobras na transferência, in Opção Lacaniana – Revista Bras. Internacional de Psicanálise, 15, São Paulo, Eólia, abril/1996, p.89.

6 TROBAS, G. O Outro comprometido ou uma transferência erotomaníaca, in: Phœnix, nº 4 –, Curitiba, Delegação do Paraná/Escola Brasileira de Psicanálise, p.43.

7 BENETI, A. A. Interpretação na psicose ou manobras na transferência, in Opção Lacaniana – Revista Bras. Internacional de Psicanálise, 15, São Paulo, Eólia, abril/1996, p. 90.

8 FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um Caso de paranóia (Dementia paranoides) (1911), in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. XII, Imago, 1969, p.13-108.

9 TROBAS, G. O Outro comprometido ou uma transferência erotomaníaca, in: Phœnix, nº 4 –, Curitiba, Delegação do Paraná/Escola Brasileira de Psicanálise, p.44

10 Ibid., p.45

11 RECALCATI, M. O "demasiado cheio" do corpo, por uma clínica psicanalítica da obesidade, in: Latusa, nº 7, Rio de Janeiro, EBP-RJ/Contracapa, 2002, p. 70.

12 Ibid., id.

13 Ibid., p. 71

14 Ibid., id.

15 Ibid., p. 73

16 Ibid., id.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 20 - Diciembre 2004
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