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(...) um grande número de efeitos psicológicos parece-nos decorrer de um declínio social da imago [função] paterna. Um declínio condicionado por se voltarem contra o indivíduo alguns efeitos extremos do progresso social; um declínio que se marca sobretudo, em nossos dias, nas coletividades mais desgastadas por esses efeitos: a concentração econômica, as catástrofes políticas. §. Seja qual for o seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja com essa crise que convém relacionar o aparecimento da própria psicanálise. §. Como quer que seja, foram as formas de neuroses predominantes no fim do século passado [século XIX] que revelaram que elas eram intimamente dependentes das condições da família. §. Nossa experiência leva-nos a apontar sua determinação principal na personalidade [função] do pai, sempre de algum modo carente, ausente, humilhada, dividida ou postiça.
JACQUES LACAN.
"Os complexos familiares na formação do indivíduo" (1938), in: Outros escritos (2003) (N. 02).INTRODUÇÃO
A seguir, realizamos a leitura psicanalítico-lacaniana daquilo que os historiadores, os sociólogos e os filósofos via de regra denominam de períodos sócio-históricos, econômico-políticos e culturais do Ocidente, períodos estes cognominados a) modernidade, b) pós-modernidade e c) hipermodernidade (N. 03).
Todavia, no contexto destas páginas contentar-nos-emos em oferecer aos leitores apenas as coordenadas gerais de uma investigação que exigiria, caso viéssemos a concretizá-la, uma intensa pesquisa de fontes documentais e bibliográficas, além, naturalmente, para sua exposição, de um espaço-físico muito maior do que este que nos é concedido.
Tais coordenadas gerais estão subdivididas nos seguintes itens: a) vetores de leitura (dez vetores) e b) tópicos de leitura (três tópicos).
Acentuamos que se trata de uma abordagem psicanalítico-lacaniana, qual seja, para operacionalizá-la valer-nos-emos de determinados constructos estabelecidos por Lacan ao longo de seu ensino, sobretudo os de a) estrutura, b) tempo-lógico, c) discurso, d) declínio da função-paterna e e) passagem-ao-ato.
A articulação entre estes constructos objetiva produzir um recorte interpretativo inovador no campo da psicanálise- extensiva, a saber, no contexto do laço-social entre o Discurso-Psicanalítico e os demais discursos hodiernos.
Para nós, os historiadores, os sociólogos e os filósofos, quase sempre apensos às inibições impostas pelo Discurso-Universitário, atêm-se a uma leitura burocrática dos fenômenos sócio-históricos, econômico-políticos e culturais do Ocidente, como se tudo não passasse de acontecimentos e transformações inscritos em uma sistematização lógica - seja ela ou formal, ou dialética, ou "perspectivística" (cf. Nietzsche e seus epígonos) - capaz de elucidar o mais rigorosamente possível os modos de agenciamento e de operacionalidade quer dos materiais, quer do conjunto de forças contrastantes ou solidárias, quer da simbologia, quer da imagística, quer, ainda, das idéias.
Ora, nossa leitura é radicalmente outra.
Do mirante-psicanalítico, vislumbramos uma paisagem "histórica" (as aspas são importantes) constituída por determinados dispositivos-discursivos (o filosófico, o científico, o econômico, etc) como tais imersos em um tempo-lógico no qual e desde o qual torna-se possível supor os cortes - precisamente: cortes lógico-discursivos - que agenciariam os ditos "fatos sócio-históricos" (aqui, as aspas são decisivas).
Do mirante-psicanalítico, então, descerra-se para nós uma paisagem discursiva escandida em a) instante-de-ver, b) tempo-para-compreender e c) momento-de-concluir nos quais e desde os quais ocorreriam cortes lógico-discursivos operadores quer do dispositivo da modernidade, quer do da hipermodernidade. ¬ Sustentamos que não houve - e não há - o dispositivo da "pós-modernidade", posto que (como se verá a seguir) a lógica-interna à modernidade ainda não se concluiu.
Com efeito, a modernidade e a hipermodernidade expressariam um mesmo e perturbador processo em vigência na estrutura tal como nós, psicanalistas sob a orientação do ensino de Lacan, testemunhamos em nossa experimentação-clínica (extensiva-&-intensiva), qual seja (em acordo com Lacan): - A estrutura é o real que vem à luz na linguagem (N. 04).
Pois bem. O inquietante processo ao qual aludimos é o do declínio da função-paterna - processo destacado pela pena de Lacan já em 1938 (N. 05) -.
Sendo assim, avançamos a seguinte hipótese:
- O processo de declínio da função-paterna configura-se em três etapas complementares, quais sejam:
- primeiro processo --> instauração do dispositivo-discursivo da modernidade,
- segundo processo --> instauração do dispositivo-discursivo da hipermodernidade e
- terceiro processo --> passagem-ao-ato.
(Ao primeiro e ao segundo processos segue-se uma conseqüência e uma operação na estrutura).
Nos limites desta introdução, observemos que:
a) o instante-de-ver do dispositivo-discursivo da modernidade é Descartes (1596 - 1650); o tempo-para-compreender é Kant (1724 - 1804); e o momento-de-concluir (e também o novo instante-de-ver ) é Nietzsche (1844 - 1900);
b) em seqüência, o instante-de-ver do dispositivo-discursivo da hipermodernidade é Heidegger (1889 - 1976) e Wittgenstein (1889 - 1951); o tempo-para-compreender é Freud (1856 - 1939); e o momento-de-concluir (e também o novo instante-de-ver ) é Lacan (1901 - 1981).
A seguir, fornecemos os vetores de leitura (dez vetores) e os tópicos de leitura (três tópicos).
VETORES DE LEITURA
01
A estrutura é o real que vem à luz na linguagem.
JACQUES LACAN.
"O aturdito" (1972), in: Outros escritos (2003: 477).A estrutura --> o enodamento entre o campo do sujeito-do-inconsciente (notação lacaniana: $) e o campo do Outro-simbólico (notação lacaniana: ?).
Sujeito-do-inconsciente --> parlêtre: corpos-falantes (N. 06).
Campo do Outro-simbólico --> campo-da-linguagem e/ou campo-da-lei.
O real --> real-do-gozo: "não-cessa de não-se-inscrever no Outro-simbólico" (N. 07).
Estatuto lógico do real-do-gozo --> o impossível.
02
A estrutura é (1) o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) que vem à luz na linguagem.
Aquilo que vem à luz em algo se inscreve nele. Todavia, neste movimento produz-se uma sombra, um resto não-iluminado, um setor não- inscrito sob a luz.
Assim, há o inscrito sob a luz e o não-inscrito sob a luz.
Logo, o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpo s-falantes) é - simultaneamente - o inscrito e o não-inscrito sob a luz da linguagem. Nesta condição, o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) é, a rigor, não-todo-inscrito sob a luz da linguagem.
03
A estrutura é (1) o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) (2) não-todo-inscrito sob a luz da linguagem.
No contexto do Discurso-Psicanalítico, a luz da linguagem é o campo do Outro-simbólico (campo-da-linguagem e/ou campo-da-lei).
Discurso-Psicanalítico --> O laço-social determinado pela prática de uma análise (N. 08).
04
A estrutura é (1) o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpo s-falantes) (2) não-todo-inscrito (3) no campo do Outro-simbólico.
Se a estrutura em ato na experimentação clínico-psicanalítica - experimentação extensiva (laço com o público) e intensiva (laço com o privado) - é o enodamento entre o campo do sujeito-do-inconsciente ($) e o campo do Outro-simbólico (?), esta estrutura é uma topologia.
No contexto da experimentação clínico-psicanalítica (extensiva-&-intensiva), o Discurso-Psicanalítico constitui-se em uma práxis que objetiva tratar o real - real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) - pelo simbólico (N. 09).
O Discurso-Psicanalítico - como tal - é uma práxis-topológica, pois objetiva tratar o real - real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) - pelo simbólico, vale dizer, objetiva enodar o real ao simbólico, estruturando e conformando, assim, um laço-social (cf. Lacan, acima: "o laço-social determinado pela prática de uma análise").
05
A topologia (psicanalítica) é (1) o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) (2) não-todo-inscrito (3) no campo do Outro-simbólico.
Ou:
06
A práxis (psicanalítica) é (1) o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) (2) não-todo-inscrito (3) no campo do Outro-simbólico.
E ainda:
07
O Discurso-Psicanalítico é (1) o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) (2) não-todo-inscrito (3) no campo do Outro-simbólico.
Sendo assim, a definição inicial fornecida por Lacan resulta no seguinte:
08
A estrutura é o real que vem à luz na linguagem.
Isto significa:
Enquanto práxis-topológica em ato na experimentação clínico-psicanalítica, o Discurso-Psicanalítico é o real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) não-todo-inscrito no campo do Outro-simbólico (campo-da-linguagem e/ou campo-da-lei).
Neste contexto, o estatuto lógico e topológico do Discurso-Psicanalítico é o registro do não-todo, visto que ele testemunha - em ato de experimentação-clínica (extensiva-&-intensiva) - a não-toda-inscrição do real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) no campo do Outro-simbólico.
09
O estatuto lógico e topológico do Discurso-Psicanalítico é o registro do não-todo, por ele testemunhar - em ato de experimentação clínica (extensiva-&-intensiva) - a não-toda-inscrição (o não-todo tratamento) do real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) no campo do Outro-simbólico (campo-da-linguagem e/ou campo-da-lei).
Finalmente, a definição inicial requerida por Lacan escreve-se matemicamente (algebricamente) do seguinte modo:
10
¬ Lê-se: - A estrutura é o real que vem à luz na linguagem.
TÓPICOS DE LEITURA
Estabelecido o panorama estrutural no qual se insere o ato de experimentação clínico-psicanalítico (extensivo-&-intensivo), torna-se doravante possível demarcar o vetor através do qual haveria, contemporaneamente - vale dizer: sob o predomínio do laço-discursivo capital-&-ciência -, a transmudação dos corpos-falantes (no francês de Lacan: parlêtres) em corpos-objetos.
¬ Tal transmudação corresponderia à radicalização do processo de declínio da função-paterna, qual seja, à passagem da modernidade para a hipermodernidade e além...
O processo de declínio da função-paterna
01
Primeiro processo: instauração do dispositivo-discursivo da modernidade
Conseqüência: - O declínio do significante Nome-do-Pai enquanto representante da lei e do ideal-do-eu (notação lacaniana: I [A]) no campo do Outro-simbólico.
Operação na estrutura: - Tentativa de inscrição do real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) pela via da secularização, laicização e pluralização do significante Nome-do-Pai.
¬ Evidentemente, como exposto acima, trata-se de uma inscrição não-toda do real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) nos dispositivos-discursivos.
Sendo assim:
(1) No dispositivo-filosófico, o corte lógico-discursivo estabelecido por Descartes (1596 - 1650) e Kant (1724 - 1804).
(2) No dispositivo-científico, a) na física, o corte lógico-discursivo estabelecido por Copérnico (1473 - 1543), Kepler (1571 - 1630), Galileu (1564 - 1642) e Newton (1642 - 1727); b) na antropologia, o corte lógico-discursivo estabelecido por Darwin (1809 - 1882).
(3) No dispositivo-econômico, o corte lógico-discursivo estabelecido por Adam Smith (1723 - 1790) e David Ricardo (1772 - 1823).
(4) No dispositivo-tecnológico, o corte lógico-discursivo estabelecido pela Revolução Industrial (Inglaterra: 1750 e 1850).
(5) No dispositivo-político, o corte lógico-discursivo estabelecido pela Revolução Inglesa (1649) e pela Revolução Francesa (1789).
(6) No dispositivo-artístico, o corte lógico-discursivo estabelecido por Shakespeare (1564 - 1616), Bach (1685 - 1750), Goya (1746 - 1828) e Baudelaire (1821 - 1867).
Estes cortes estariam inseridos em três modalidades lógico-temporais (N. 10), quais sejam:
(A) Instante-de-ver: - O sintagma-nominal cogito na obra de Descartes.
¬ Cogito ergo sum, vale dizer, Penso, logo, existo / sou (N. 11).
A garantia da adequação-lógica entre o "Eu penso" e o "Eu existo / sou" é "Deus".
Para a crítica de Pascal (1623 - 1662), tal "Deus" é o "Deus dos filósofos", qual seja, um operador conceitual cuja demonstração é requerida para a sustentabilidade lógica do sistema.
(B) Tempo-para-compreender : - O sintagma-nominal eu-transcendental na obra de Kant.
¬ O cogito inscrito em estruturas organizativas e limitativas, a priori, da faculdade-de-conhecer (N. 12).
A existência de "Deus" - enquanto conceito demonstrável - continua sendo uma exigência para a sustentabilidade lógica do sistema.
(C) Momento-de-concluir & novo instante-de-ver: - O sintagma-nominal Deus está morto! na obra de Nietzsche.
¬ "Deus" deixa de ser um conceito cuja demonstrabilidade seria essencial para a consistência lógica do sistema (N. 13).
02
Segundo processo: instauração do dispositivo-discursivo da hipermodernidade
Conseqüência: - O hiperdeclínio do significante Nome-do-Pai enquanto representante da lei e do ideal-do-eu (notação lacaniana: I [A]) no campo do Outro-simbólico. Simultaneamente, transmudação do Outro-simbólico em Outro-imaginário - constituído pelo enodamento capital-&-ciência, configurando-se assim o Outro-contemporâneo ou Outro-ilimitado (cf. J-A. Miller: Outro-não-todo) -.
Operação na estrutura: - Tentativa de inscrição do real-do-gozo (gozo-impossível dos corpos-falantes) pela via da secularização, laicização e pluralização do significante Nome-do-Pai enquanto père-version (no francês de Lacan). Isto significa que, doravante, sob o Outro-imaginário - ou Outro-ilimitado ou Outro-não-todo (laço-discursivo capital-&-ciência) -, os significantes nomes-do-pai são imediatas versões-de-gozo.
Neste contexto, deixa de haver suposição-de-saber a um representante do Nome-do-Pai no campo do Outro-simbólico (representante este submetido, também ele, à lei), tal como ocorria no dispositivo-discursivo da modernidade.
Pelo contrário, na hipermodernidade passa a haver a transmudação do Outro-simbólico em Outro-imaginário (laço-discursivo capital-&-ciência), de tal modo que neste Outro-ilimitado ou Outro-não-todo não há mais suposição-de-saber e sim encarnação-de-saber por um elemento (qualquer) que "se apresente" como tal.
Ora, nesta "apresentação" - nos termos técnicos que utilizamos: neste semblante - o que se apresenta o faz sob o signo-do-gozo, qual seja, ele apresenta - em ato - uma versão-de-como-gozar com os gadgets ejetados pelo enodamento capital-&-ciência (N. 14).
Paulatinamente, os corpos-falantes (da modernidade) transmudam-se em corpos-objetos (da hipermodernidade).
Sendo assim:
(1) No dispositivo-filosófico, o corte lógico-discursivo estabelecido por Nietzsche (1844 - 1900).
(2) No dispositivo-científico, a) na física, o corte lógico-discursivo estabelecido por Einstein (1879 - 1955) e Planck (1858 - 1947); b) na antropologia, o corte lógico-discursivo estabelecido por Lévi-Strauss (*1908).
(3) No dispositivo-econômico, o corte lógico-discursivo estabelecido por Keynes (1883 - 1946).
(4) No dispositivo-tecnológico, o corte lógico-discursivo estabelecido pela Revolução Pós-industrial (Estados Unidos: 1950).
(5) No dispositivo-político, o corte lógico-discursivo estabelecido pela Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) e pela Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945).
(6) No dispositivo-artístico, o corte lógico-discursivo estabelecido por Artaud (1895 - 1948), Schoenberg (1874 - 1951), Picasso (1881 - 1973) e T. S. Eliot (1888 - 1965).
Estes cortes estariam inseridos em três modalidades lógico-temporais (N. 15), quais sejam:
Instante-de-ver (a radicalização do dispositivo-discursivo da modernidade):
(A.1) Heidegger (1889 - 1976) ÿ o Dasein substitui o cogito. ¬ O Dasein é ser-no-mundo (N. 16).
(A.2) Wittgenstein (1889 - 1951) ÿ a) forclusão do cogito e instauração da análise lógico-proposicional da linguagem (cf. "primeiro-Wittgenstein"); b) em seguida, os jogos-de-linguagem (cf. "segundo-Wittgenstein"). ¬ A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento da razão pelos meios da linguagem (N. 17).
(B) Tempo-para-compreender (a hipermodernidade): - Freud (1856 - 1939) ÿ a) descoberta do inconsciente e, no inconsciente, a identificação-primária ao pai; b) inauguração do dispositivo-psicanalítico enquanto pulmão-artificial (nos termos de Lacan) dos corpos-falantes - paulatinamente transmudados, tais corpos, sob o enodamento capital-&-ciência, em corpos-objetos -.
¬ Citamos Lacan:
(...) o Discurso-Científico tem conseqüências irrespiráveis para o que se chama Humanidade. A psicanálise é o pulmão-artificial graças ao qual se tenta assumir o que é preciso encontrar de gozo no falar para que a História continue (N. 18).
(C) Momento-de-concluir & novo instante-de-ver: - Lacan (1901 - 1981) ÿ a) corte lógico e topológico com o cogito (cartesiano), com o eu-transcendental (kantiano), com o "Deus está morto!" (nietzschiano), com o Dasein (heideggeriano), com a análise lógico-proposicional da linguagem e com os jogos-de-linguagem (wittgensteinianos), com o inconsciente e a identificação-primária ao pai (freudianos); b) tal corte ocorre a favor do y a d´l´Un, qual seja, há-do-Um (N. 19); c) em última instância, este há-do-Um nomeia o nó-borromeano de quatro registros, quais sejam, o real, o simbólico, o imaginário e o sinthoma (N. 20).
¬ Citamos Lacan:
O real é o que não-depende de minha idéia sobre ele (N. 21).
03
Terceiro processo: e além...
Este terceiro processo decorre de três passagens-ao-ato. As duas primeiras ocorreram no final da primeira metade da hipermodernidade (anos 1940) e a terceira no final da segunda metade (ano 2001). Referimo-nos a Auschwitz (1942 - 1945), a Hiroshima-Nagasaki (06 e 09 de Agosto de 1945) e a Nova York (11 de Setembro de 2001).
Todavia, o estatuto das duas primeiras não é o mesmo que o da terceira. Isto porque Auschwitz e Hiroshima-Nagasaki expressam a ultra-radicalização do dispositivo-discursivo da hipermodernidade, qual seja, a abolição completa do significante Nome-do-Pai - ou, então, se quisermos, dos significantes nomes-do-pai - enquanto o(s) significante(s) capaz(es) de (nos termos de Lacan) "fazer alto ao gozo [ao real-do-gozo]", limitando-o (N. 22).
Neste sentido, Auschwitz e Hiroshima-Nagasaki testemunham, no absoluto horror de seus atos, o trauma inapagável que emerge do encontro - em tais casos, não-faltoso - com (nos termos de Lacan, via Heidegger) das Ding (N. 23).
¬ Se quisermos, ainda: - Auschwitz e Hiroshima-Nagasaki mostram - no absoluto horror de seus atos - o projeto implícito no dispositivo-discursivo da hipermodernidade, qual seja, sob o Outro-contemporâneo - Outro-ilimitado ou Outro-não-todo (enodamento capital-&-ciência) -, a transmudação dos corpos-falantes em corpos-objetos (em tais casos, a cadaverização dos corpos).
Por sua vez, Nova York (11 de Setembro de 2001) expressa a ultra-radicalização do dispositivo-discursivo da pré-modernidade, qual seja, a tentativa - lógica e estruturalmente já ultrapassada - de reinscrição do significante Nome-do-Pai no campo do Outro-simbólico.
Naturalmente, o dispositivo-discursivo da pré-modernidade subsiste em vários grupos, povos e nações do Leste, sobretudo naqueles vigentes sob o Corão. Isto não os impede de fazerem um uso estratégico e tático dos dispositivos-discursivos da hipermodernidade. Pois dominando-os tecnologicamente (nada os impediria desta competência instrumental), tais grupos, povos e nações podem, quando considerar oportuno, assestar estes dispositivos contra os seus (deles, dispositivos) mantenedores, defensores e praticantes mais imediatos, supondo deste modo conter (considerando-se a hipótese destas anotações) o hiperdeclínio do significante Nome-do-Pai enquanto representante da lei e do ideal-do-eu (notação lacaniana: I [A]) no campo do Outro-simbólico.
Sendo assim, Auschwitz e Hiroshima-Nagasaki constituem-se em passagens-ao-ato na e da hipermodernidade; por sua vez, Nova York (11 de Setembro de 2001) configura-se em passagem-ao-ato contra a hipermodernidade.
De um modo ou de outro, se de fato nos encontramos inscritos na transmudação do Outro-simbólico em Outro-imaginário (Outro-ilimitado ou Outro-não-todo) - e, pois, como expusemos acima, subsumidos ao campo-global das versões-de-gozo-do-pai (père-version, no francês de Lacan) -, uma nova passagem-ao-ato ocorrerá inevitavelmente.
¬ Mas quando, onde, como?
Ora, a irrupção do real-do-gozo - venha ela embutida em semblantes (dispositivos-discursivos) pré-modernos, modernos ou hipermodernos - é absolutamente imprevisível, insituável e indefinível. Sabemos apenas que ela advirá e que não podemos prever o montante de corpos-objetos - os corpos "ideais" da hipermodernidade - que restarão para sempre inertes...
Certo, então: da modernidade à hipermodernidade e além...
Vale dizer: - Das idéias de cogito, eu-transcendental, "Deus está morto!", Dasein, análise lógico-proposicional da linguagem, jogos-de-linguagem, inconsciente e identificação-primária ao pai, até..., até..., até àquela decisiva pontuação de Lacan que contextualiza Auschwitz e Hiroshima-Nagasaki, além de antecipar Nova York (11 de Setembro de 2001) e além...
Ei-la outra vez: - O real é o que não-depende de minha idéia sobre ele (N. 24).
NOTAS-&-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(Nota 01) JOSÉ MARCUS DE CASTRO MATTOS. Psicanalista. Membro Colegiado-Fundador do OBSERVATÓRIO DA PSICANÁLISE (Colegiado Psicanalítico de Orientação Lacaniana - COPOL -). Coordenador do site www.observatoriodapsicanalise.net
(N. 02) LACAN, J. "Os complexos familiares na formação do indivíduo" (1938), in: Outros escritos (2001). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 66 - 67.
(N. 03) LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
(N. 04) LACAN, J. "O aturdito" (1972), in: Outros escritos (2001). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 477.
(N. 05) LACAN, J. "Os complexos familiares na formação do indivíduo" (1938), in: Outros escritos (2001). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 66 - 67.
(N. 06) LACAN, J. "Jacques Lacan - Entrevista à imprensa italiana (29 de Outubro de 1974)", in: Alíngua (Jornal de Psicanálise-&-Cultura do OBSERVATÓRIO DA PSICANÁLISE - COPOL -), edição-eletrônica, nº 02. Rio de Janeiro: www.observatoriodapsicanalise.net , Dezembro / 2004.
(N. 07) LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972 - 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985: 127.
(N. 08) LACAN, J. Televisão (1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993: 31.
(N. 09) LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979: 14.
(N. 10) LACAN, J. "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (um novo sofisma)" (1945), in: Escritos (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998: 197 - 213.
(N. 11) DESCARTES, R. "Meditações" (1641), in: Descartes. São Paulo: Abril Cultural, 1983: 73 - 211.
(N. 12) LEBRUN, G. "A aporética da coisa-em-si", in: Sobre Kant. São Paulo: EDUSP-Iluminuras: 1993: 51 - 68.
(N. 13) NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra (um livro para todos e para ninguém) (1884). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
(N. 14) LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969 - 1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
(N. 15) LACAN, J. "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (um novo sofisma)" (1945), in: Escritos (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998: 197 - 213.
(N. 16) HEIDEGGER, M. Ser e tempo (1927). Rio de Janeiro: Vozes, 1988 - 1989.
(N. 17) WITTGENSTEIN, L. "Investigações filosóficas" (1953), in : Ludwig Wittgenstein . Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
(N. 18) LACAN, J. "Déclaration à France-Culture à propôs du 28e. Congrès de Psychanalyse", in: Le coq héron. Paris (France), 1973: 05.
(N. 19) LACAN, J. O seminário, livro 19 : ...ou pior (1971 - 1972). Inédito.
(N. 20) LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975 - 1976). Inédito.
(N. 21) LACAN, J. O seminário, livro 21: les non-dupes errent (1973 - 1974). Inédito. Lição de 23 de Abril de 1974.
(N. 22) LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972 - 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985: 36.
(N. 23) LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 - 1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
(N. 24) LACAN, J. O seminário, livro 21: les non-dupes errent (1973 - 1974). Inédito. Lição de 23 de Abril de 1974.