Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Nos sulcos da aletosfera
(Lacan e as políticas do Outro)
José Marcus de Castro Mattos

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No homem "liberado" da sociedade moderna, eis que esse despedaçamento revela, até o fundo do ser, a sua pavorosa divisão: é a neurose de autopunição - com os sintomas histérico-hipocondríacos e suas inibições funcionais, com as formas psicastênicas de suas desrealizações de outrem e do mundo, com suas seqüências sociais de fracasso e de crime -; é essa vítima comovente - aliás evadida, irresponsável, em ruptura do contrato que destina o homem moderno à mais tremenda escravidão social - [é essa vítima comovente] que recolhemos quando ela vem a nós; é para esse ser de nada que nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir o caminho de seu sentido, em uma fraternidade discreta, à medida da qual somos sempre excessivamente desiguais.

JACQUES LACAN.
"A agressividade em psicanálise" (1948),
in: Escritos (1966) (N. 02).

 

Sobre a política, há em Lacan uma pontuação lúcida, rigorosa e precisa:

É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o psicanalista teria lugar, se fosse capaz de fazê-la (N. 03).

Portanto, a incidência política do psicanalista teria lugar na articulação com o real - mas atenção: se ele, psicanalista, fosse capaz de fazê-la -.

Observe-se que a frase de Lacan está construída no condicional, destacando-se assim a impossibilidade estrutural de um discurso - no caso, o do psicanalista - articular-se com o real.

Todavia, considerando-se os impossíveis demarcados por Freud (governar, educar e psicanalisar), a frase de Lacan aplica-se a qualquer outra posição discursiva, qual seja, ela também pode ser escrita das seguintes maneiras:

(1) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o governante teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

Portanto, a incidência política do governante teria lugar na articulação com o real - mas atenção: se ele, governante, fosse capaz de fazê-la -.

(2) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o educador teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

Portanto, a incidência política do educador teria lugar na articulação com o real - mas atenção: se ele, educador, fosse capaz de fazê-la -.

Ora, aos três impossíveis estabelecidos por Freud (governar, educar e psicanalisar), Lacan acrescentou um quarto, qual seja, o fazer-desejar (posição estrutural do sujeito-histérico).

Assim, aquela frase de Lacan escreve-se afinal da seguinte maneira:

(3) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o sujeito-histérico teria lugar, se fosse capaz de fazê-la. 

Portanto, a incidência política do sujeito-histérico teria lugar na articulação com o real - mas atenção: se ele, sujeito-histérico, fosse capaz de fazê-la -.

Em suma, resultam quatro posições discursivas (ou quatro discursos) impossibilitadas - enquanto posições discursivas - de se articularem com o real. Ei-las:

(1º) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o governante - ou o Discurso-Mestre (ou Discurso-do-Mestre) - teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

(2º) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o sujeito-histérico - ou o Discurso-Histérico - teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

(3º) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o psicanalista - ou o Discurso-Psicanalítico - teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

(4º) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o educador - ou o Discurso-Universitário - teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

Pois bem. Se por mutação interna ao Discurso-Mestre (ou Discurso-do-Mestre) emerge o Discurso-Capitalista, aquela frase de Lacan continua sendo escrita - agora, do seguinte modo:

(4) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o capitalista teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

Portanto, a incidência política do capitalista teria lugar na articulação com o real - mas atenção: se ele, capitalista, fosse capaz de fazê-la -.

Continuemos avançando. E se, por mutação interna ao Discurso-Histérico, emerge o Discurso-Científico, aquela frase de Lacan continua ainda sendo escrita - agora, do seguinte modo:

(5) É nessa articulação com o real que se encontra a incidência política em que o cientista teria lugar, se fosse capaz de fazê-la.

Portanto, a incidência política do cientista teria lugar na articulação com o real - mas atenção: se ele, cientista, fosse capaz de fazê-la -.

Ora, se assim for, o quadro-geral das posições discursivas (ou dos discursos) impossibilitadas - enquanto posições discursivas - de se articularem com o real é o seguinte:

DISCURSO-MESTRE

Impossibilidade - política - de governar o real.

DISCURSO-HISTÉRICO

Impossibilidade - política - de fazer-desejar o real.

DISCURSO-PSICANALÍTICO

Impossibilidade - política - de psicanalisar o real.

 DISCURSO-UNIVERSITÁRIO

Impossibilidade - política - de educar o real.

DISCURSO-CAPITALISTA

Impossibilidade - política - de capitalizar o real.

DISCURSO-CIENTÍFICO

Impossibilidade - política - de conhecer o real.

Inevitavelmente, o corolário deste quadro-geral configura-se nestes termos:

(5) Nenhum discurso é capaz de incidir politicamente no real, vale dizer, discurso algum pode estabelecer um laço-significante com o real, socializando-o desta ou daquela maneira.

Mas que real é este irascivelmente hostil a quaisquer apropriações político-discursivas?

Atentemos: - É o real-do-gozo desde sempre e para sempre - posto ser uma posição estrutural - avesso à "incidência política" do governar, do fazer-desejar, do psicanalisar, do educar, do capitalizar e do conhecer (n. 04).

Com efeito, o real-do-gozo - ensina-nos Lacan - é o que "não-cessa de não-se-inscrever no Outro-simbólico (campo-da-linguagem e/ou campo-da-lei)". Logo, o real-do-gozo ex-siste ("existência-exterior") às apropriações discursivas de toda ordem, e, pois, o seu estatuto lógico é o do impossível (N. 05).

Contudo, a ex-sistência do real-do-gozo promove sérias conseqüências no campo dos discursos. Isto porque, ex-sistindo à simbolização, o real-do-gozo opera desarticulando as estruturações discursivas, e - irrompendo de maneira abrupta (no mais das vezes, cruelmente) - faz tábua rasa dos limites lógicos, ontológicos e éticos de tais estruturações.

Seja como for, o Outro-contemporâneo - constituído pelo enodamento capital-&-ciência -, ao invés de resistir, como tal, à ex-sistência do real-do-gozo, pois bem, o Outro-contemporâneo cega e inadvertidamente ativa-a.

Vale dizer, pois: - O laço capital-&-ciência institui na cena pública e na privada um imperativo-categórico cuja máxima de conduta é: - Goza de tal maneira que o motivo que te levou a gozar possa ser convertido em regra universal.

¬ Um adendo: - Quanto à correta inteligibilidade deste imperativo, a leitura das páginas de Kant com Sade (1963), de Lacan, é absolutamente imprescindível (N. 06).

Ora, parece que nada detém o Outro-contemporâneo, pois além de instaurar este imperativo nos mais remotos quadrantes do planeta (de fato, é isto a "globalização"), o enodamento capital-&-ciência fornece, ato-contínuo, o motivo que nos levou, que nos leva e que nos levará a gozar...

Lacan cognominou este "motivo" de objeto causa-de-desejo e o escreveu, algebricamente, do seguinte modo: objeto pequeno a. Todavia, por se tratar de um objeto "causador" de desejo, tal objeto falta necessariamente. Ou faltava...

Sim, ou faltava, porque doravante imersos nos "sulcos da Aletosfera" (este é um dos codinomes inventados por Lacan para desmascarar a canalhice do Outro-contemporâneo), deparamo-nos em cada esquina com encarnações imediatas do objeto causa-de-desejo!

Onde quer que estejamos - em nossos lares (há ainda "nossos lares"?), em nosso trabalho (há ainda "nosso trabalho"?), em nossas ruas (há ainda "nossas ruas"?), etc -, também aí estarão eles - os gadgets e as latusas (outra vez, codinomes lacanianos) - "causando" e "sinalizando" o nosso desejo (há ainda "nosso desejo"?).

Eis então os bizarros habitantes do ilimitado território "aletosférico", constituído pelo enodamento discursivo capital-&-ciência (Outro-contemporâneo): os gadgets e as latusas.

Observem: - Os gadgets, quais sejam, as engenhocas, as geringonças, os objetinhos tecnológicos de toda espécie os quais você compra, usa por pouco tempo, joga fora e compra outro "mais completo, mais potente, mais avançado"...

¬ Nesta rápida descrição, você reconheceu os gadgets, não?

Observem: - As latusas, quais sejam, os anúncios e as sinalizações em luz néon os quais apagam-e-acendem-e-apagam-e-acendem-e-apagam-e-acendem... As latusas-anúncios ofertam a um-qualquer bens imorredouros obteníveis por qualquer-um a qualquer-preço (são os gadgets), enquanto que as latusas-sinalizações indicam-nos que... não há saídas, mas apenas ruas, túneis, avenidas...

¬ Nesta rápida descrição, você reconheceu as latusas , não?

Pois bem. Inscrito portanto no regime do não-todo - vale dizer: do ilimitado (cf. Miller) -, o Outro-contemporâneo (constituído pelo laço-discursivo capital-&-ciência) traça e retraça para nós - globalmente - os sulcos da Aletosfera (no francês de Lacan: les sillons de l´Alèstosphère) (N. 07).

Nestes sulcos, guiados pelas onipresentes latusas e desfazendo-nos de nossos últimos gadgets, afinal encontraríamos - garantem-nos os Senhores da Aletosfera - a Liberdade, o Sucesso, a Juventude, a Saúde, a Felicidade, a Perfeição ("não necessariamente nesta ordem").

Se for assim, o que nos resta esperar?

- Nada.

Neste exato momento Lacan levantar-se-ia rapidamente da poltrona (se é que ele não estaria "passeando" pelo consultório) e diria entre estupefato e alegre: - Sim, é exatamente isto! O que resta a esperar disso tudo é o nada! Mas, querido, com quem estamos: Sartre ou Heidegger? Decidamos! Com Sartre, você sabe, estaríamos ao mesmo tempo com o ser e o nada; com Heidegger, mais radicalmente, diríamos que o ser é o nada... Resta-lhe ainda Lacan (este mesmo que lhe fala). Com Lacan, então, diríamos que o nada é... que o nada é... que o nada é..., bem, o que é o nada senão o real?

NOTAS-&-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(Nota 01) JOSÉ MARCUS DE CASTRO MATTOS. Psicanalista. Membro Colegiado-Fundador do OBSERVATÓRIO DA PSICANÁLISE (Colegiado Psicanalítico de Orientação Lacaniana - COPOL -). Coordenador do site www.observatoriodapsicanalise.net

(N. 02) LACAN, J. "A agressividade em psicanálise" (1948), in: Escritos (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998: 126.

(N. 03) LACAN, J. "Radiofonia" (1970), in: Outros escritos (2001). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 443.

(N. 04) Tais impossibilidades conduzem Lacan a afirmar categoricamente o seguinte: - O gozo [o real-do-gozo] é aquilo que não serve para nada. (cf. LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972 - 1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985: 11.)

(N. 05) LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972 - 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985: 127.

(N. 06) LACAN, J. "Kant com Sade" (1963), in: Escritos (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998: 776 - 803.

(N. 07) LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969 - 1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992: 142 - 155.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 20 - Diciembre 2004
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