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" Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? "
(Clarice Lispector)
"Quem fala só tem a ver com a solidão, no que diz respeito à relação
que só posso definir dizendo, como fiz, que ela não se pode escrever.
Essa solidão, ela, de ruptura do saber, não somente ela se pode escrever,
mas ela é o que se escreve por excelência, pois ela é o que,
de uma ruptura do ser, deixa traço".(Lacan)
O amor é transferência
Ao fornecer-nos uma primeira definição da transferência, Freud utiliza a metáfora da imprensa, como veremos desenvolvido a seguir. Remete-nos, de certa forma, a algo que já estava escrito. A transferência ela mesma é uma necessidade do tratamento psicanalítico. Freud esclarece que não foi inventada pela psicanálise, mas encontrou nela sua revelação e sua utilidade terapêutica. O que queremos assinalar é um certo caráter automático do amor para a psicanálise, que nela se revela na forma do amor de transferência, cuja elaboração Freud nos dará anos mais tarde. Para ele, a transferência é uma atualização do inconsciente e uma prova da etiologia sexual das neuroses.
O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar conscientes, mas com a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. (...) Algumas dessas transferências em nada se diferenciam de seu modelo, no tocante ao conteúdo, senão por essa substituição. São, portanto, para prosseguir na metáfora, simples reimpressões, reedições inalteradas. Outras se fazem com mais arte: passam por uma moderação de seu conteúdo, uma sublimação (...) São, portanto, edições revistas, e não mais reimpressões.(Freud, 1905)
Amor ao saber
Para Lacan a transferência também é um fato de amor, amor que se dirige a um saber e que se articula pelo sujeito suposto saber. O amor transferencial não é narcísico, não visa uma imagem, visa o sujeito. O sujeito suposto saber é o amor que introduz o sentido e o saber sobre o real. A questão do amor é assim ligada à do saber e todo amor se baseia na relação entre dois saberes inconscientes. A transferência é a modalidade do encontro amoroso na psicanálise. Trata-se de um amor genuíno, no que ele é estritamente freudiano.
No seminário, livro 20 : mais, ainda, Lacan faz uso das categorias modais de Aristóteles possível, impossível, necessário e contingente para articular o amor e a escrita que, segundo ele, são decorrências da linguagem, ela mesma uma elucubração sobre alíngua. Em Aristóteles essas categorias se referem ao ato e à potência, Lacan as articula em uma teoria do escrito. Esclarece que a fórmula não existe relação sexual, só se sustenta em um contexto de linguagem e mais especificamente a partir da escrita. Não se pode escrever a relação sexual porque ela não está escrita. Ou seja, não se pode falar de um universal necessário, como uma lei do instinto, quando se trata dos seres falantes. Acrescenta que o amor é a tentativa de escrever a relação sexual inexistente. Através das condições do amor, que funcionam como um já escrito, um necessário, que circunscreve um objeto signo de amor.
A metáfora freudiana se esclarece, então, na passagem da contingência à necessidade, ponto de suspensão a que se agarra todo amor. A transferência é a contingência tornada necessidade. Ela se inscreve, se reescreve sobre as marcas dos encontros passados, motivo pelo qual Freud a identifica à repetição.
Amor que se escreve
Em uma análise, na qual a relação sexual está excluída, o que se pode escrever a partir do amor de transferência? Não quer dizer que através do amor, a relação sexual por fim se escreva, o que se escreve é uma suplência da relação sexual inexistente, ou seja, se inscrevem para um sujeito as marcas de um gozo particular, nascido de um encontro contingente e que se torna, a partir daí necessário. Segundo Lacan, na análise só se lida com o amor e não é por outra via que ela opera. O analista encarna um significante suplementar na cadeia. É uma primeira indicação da escrita que se pode dar à transferência, uma escrita na cadeia simbólica, como um significante suplementar que lhe serve de endereço.
Miller (2000-2001) comenta a passagem da Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola em que Lacan constrói o algoritmo da transferência, articulando ao passe o ponto de basta da significação. Ele diz que, tal como Lacan o propôs, supõe a assimilação da transferência a um algoritmo, quer dizer, a uma fórmula lógica de funcionamento automático, destinada a encontrar seu principio de parada no passe. Pode-se dizer então que o que se pode escrever de uma análise é o que se articula ao seu final? Só se escreve a transferência após sua liquidação? Pode-se falar de liquidação da transferência, ou o passe indica uma mudança de endereço? O que Lacan chama o trabalho de transferência que se converte em transferência de trabalho, segue sendo, pela via de uma elaboração de saber, uma tentativa de tratamento do impossível, do real que não se escreve?
Se seguirmos o argumento de Jacques-Alain Miller, o algoritmo da transferência permite introduzir o que ele chama metáfora do real. Partindo da idéia de que a transferência é um efeito de significação de ordem imaginária governado pela articulação simbólica, o que levaria a uma infinitização da cadeia, com o passe introduz-se nela o ponto de basta, em que se supõe que o efeito imaginário é substituído por um efeito real. O sujeito suposto saber é uma significação, não é nada real. É uma significação imaginária determinada pela articulação simbólica e o que permite que isso pare, se constitua, se cristalize, (se escreva?) é a emergência do objeto a, que seria da ordem de um semblante do real. O final da análise se marca pelo saber do que se é no desejo, pura falta ou puro objeto.
Escrever sem estilo?
No livro de Clarice Lispector, a que fizemos menção no caput desse trabalho, os personagens se abstêm do relacionamento sexual até o momento de estarem prontos para gozar do encontro, o que se passa através de uma "aprendizagem", uma preparação para o Um, para o Ser e para o Eu. Programa que parece ultrapassá-los, apesar do que parece, não se termina com um encontro perfeito, se termina com o vazio, o vazio da fala que não se completa, o vazio da escrita que não se consuma, não se transpõe. A escrita em Clarice parece ser da ordem de um arrebatamento, "sou mais forte do que eu", ela diz. Ou faz dizer seu personagem:
Nós que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com o meu raciocínio que é frio. Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre. Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias. É uma grande aventura e exige muita coragem e muita devoção e muita humildade. Meu forte não é a humildade em viver. Mas ao escrever sou fatalmente humilde.
Todo o texto se orienta a partir da questão do saber. "Pedir? Como é que se pede? E o que se pede? Pede-se vida? Pede-se vida. Mas já não se está tendo vida? Existe uma mais real. O que é real? E ela não sabia como responder." O real, diz Lacan, é o mistério do corpo falante, o mistério do inconsciente. O real de que se trata na psicanálise é um real que não cessa de não se escrever, é o impossível da relação sexual. O artifício de colocar a relação sexual em um horizonte temporal de potencialidade, empresta-lhe um caráter de promessa, de realização, ainda que assintótica, revelando, no entanto, a radical solidão do um, a impossibilidade concernida ao próprio ser. Existe vida mas não saber no real. O que se pede, o que se demanda, Lacan nos ensina não se tratar do Outro, mas dos objetos que vêm substituí-lo como causa de desejo, objeto a.
"Nós dois somos um só". É daí que parte a idéia do amor, que é uma maneira de dar à relação sexual o seu significado. Em Freud a função do amor narcísico, amor da própria imagem, traz o problema de saber como pode haver amor por um Outro. Para Lacan o objeto não é especularizável, é o que faz furo na imagem e é o que se busca no Outro, que está implicado na satisfação pulsional e pode ir além: um amar-se através do outro.
O desfecho do livro revela a fragilidade da solução, consumado o ato sexual, os parceiros se encontram atingidos em sua solidão e imersos na dor de existir. Ela decide dizer o que calou a vida toda. Ele resolve que enfim terá que escrever seu ensaio. "Escrever sem estilo é o máximo que quem escreve chega a desejar". Para o ser falante, há apenas corpos falantes, o mundo cheio de saber é um sonho.
O que quer dizer escrever sem estilo? O personagem quer transpor para uma escrita matemática o que chama de pensamento-sentimento. Ao mesmo tempo em que diz que o pensamento ameaça o milagre. O que é o estilo? Sabemos que para Lacan só a matematização atinge um real, real próprio ao inconsciente e que responde à formula: não há relação sexual.
Para não se ler
O escrito em psicanálise não é para ser lido, não se deve compreendê-lo. O uso das letras matemáticas visa uma transmissão, ainda que não introduza saber no real. O real da psicanálise é distinto do real da ciência. Visa uma demonstração do impossível pela contingência, o que pode mudar o tempo todo. Fala-se de enigma, mistério, milagre, que uma pessoa possa vestir-se com os signos do objeto a e encarnar as condições de gozo para um sujeito. É o que se constrói no amor: uma resposta para o traumatismo sempre presente nos encontros, que são sempre desencontros.
Pode-se apenas fazer uma homologia com a situação analítica, em que o contrato entre os parceiros institui de saída a marca do impossível, de um amor destinado a ser destituído. De alguma forma podemos dizer que se trata de uma aprendizagem, ainda que não de uma educação, uma aprendizagem pelo sintoma ou quem sabe pelo sinthoma como sugere Bernard Lecoeur. O sinthoma é a marca de um estilo ou sua destituição?
O que quisemos apenas indicar é que a experiência analítica, particularmente em sua vertente do amor de transferência, "realiza" de alguma forma, uma escrita das condições do gozo de um sujeito, ao que se empresta, empresta seu corpo o analista. Não por acaso a saída de uma análise, aquela que produz a passagem de analisante a analista, se articula em termos de um novo amor para o sujeito.
Referências bibliográficas:
LECOEUR, B. Uma aprendizagem pelo sinthoma. In: Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise 32, São Paulo, Edições Eólia, dezembro/2001, p. 22-25
FREUD, S. (1905) Fragmento da análise de um caso de histeria : Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. VII, Rio de Janeiro, Imago, 1989.
LACAN, J. O seminário, livro 20 : mais, ainda (1972-1973), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1985.
Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise 17, São Paulo, Edições Eólia, novembro/1996, p.5-12.
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou Livro dos prazeres, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.
MILLER, J.-A. A teoria do parceiro. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000.
Um real para a psicanálise. In: Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise 32, São Paulo, Edições Eólia, dezembro/200, p. 15-18.
Le lieu et le lien (2000-2001), Curso proferido na Universidade de Paris VIII, inédito.