Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O inconsciente e a diferença sexual
Do corte do sexo à corte aos objetos
Ronald de Paula Araújo

Imprimir página

"uma mulher é um sintoma para o homem, já o homem é para uma mulher pior do que um sintoma, uma devastação."
(Lacan, Jacques. "Le Sinthome". Ornicar?, nº 12.)

"E isto, tanto mais quanto, se posso dizer, a lógica freudiana nos põe justamente no ponto em que ele não poderia funcionar em termos polares e que tudo o que ela introduz como lógica do sexo ressalta de um só termo que é verdadeiramente seu termo original, ou seja, a conotação de uma falta, um menos essencial que se chama a castração, sem a qual, em seu nível, enquanto ele é de ordem lógica, nada seria capaz de funcionar. Toda normatividade se organiza, para o homem como para a mulher, em torno da transmissão de uma falta. Eis o que vemos no nível da estruturação lógica tal como ela se deduz da experiência freudiana".
(Lacan, "Do Outro ao outro", Lição XIV, trad. CEF-Recife)

Tentaremos com as contribuições de Lacan desenvolver algumas idéias acerca da diferença sexual partindo do aforisma "não há relação (rapport) sexual" e no que este revela da impossibilidade do encontro entre o feminino e o masculino no real dessa não inscrição que não cessa de não se inscrever levando em conta os limites nos quais me situo no percurso da nossa "não-toda" teoria.

"Não há relação sexual". O que vem a ser isto? Obviamente que Lacan não está se referindo à não existência do ato sexual no sentido comum, mas à relação enquanto rapport no inconsciente, enquanto razão entre os dois sexos, algum tipo de proporção, de equivalência, entre o "ter" do homem e o "ser" da mulher, o falo. Em princípio percebemos que não poderia haver uma diferenciação simétrica, tipo côncavo e convexo, entre os dois sexos, pois ambos, para Freud, são constituídos a partir de sua posição frente à castração enquanto operação simbólica. A partir de uma natureza bissexual inerente a todo ser humano, vem operar uma lógica que não se dá da mesma forma para a definição dos gêneros se sobrepondo ao destino meramente biológico de cada um, mas que é centrada na inscrição inconsciente de um mesmo instrumento, o falo, como significante da falta no Outro, como Lacan denomina. Sendo assim, ambos sofrendo a ação deste mesmo instrumento enquanto falta fundamental, como um teria o que outro deseja para completar-se? Como seria possível a inscrição de dois supostos significantes complementares e diferenciados, já que ambos se constroem ao redor da mesma falta? O rapport de Lacan é neste sentido. Não há uma proporção simétrica entre os sexos enquanto inscrição inconsciente. Eles não fariam uma relação no inconsciente. Este ideal simétrico só pode se sustentar a partir de uma operação imaginária.

Em "a Diferença Sexual", Sônia Nassim retomando uma posição defendida por MD Magno no seu seminário sobre "A Música" coloca a questão do advento do sujeito a partir do feminino, de uma posição passiva frente ao campo do Grande Outro para, num movimento posterior, instalar-se a referência fálica: "De início, o falante é apenas um significante que advém do campo do Outro que é furado, para aí retornar e se dirigir ao outro significante que vai permitir o seu aparecimento enquanto sujeito do inconsciente"1. Citando Magno: "A entrada do significante impõe aceitação do furo, portanto os sujeitos começam pelo feminino, para só depois entrarem numa referência fálica, terem a castração como limite do Édipo e entrarem na ordem Lei-desejo"2. Haveria então um significante primeiro que retornaria no lugar do significante da falta de um significante no campo do Outro. S1 viria em substituição à , por este indicar a falta de um significante no campo do Outro, indicar o espaço vazio, o seu furo, tornando a posterior inscrição do S1 possível. A tese aqui é a da primazia de um significante retirado do campo do Grande Outro num primeiro movimento, para posteriormente realizar seu retorno, agora na condição de inscrito pela ação da castração, fazendo surgir o nosso sujeito na relação deste "velho renovado" significante com um outro significante (S1-->S2). A esta operação se seguirão as eventuais significações posteriores, notadamente as que se fizerem surgir a partir do estádio do espelho e respectivo surgimento do ego, o qual abordaremos sua função mais adiante dentro da nossa problemática sobre a diferença sexual.

A inscrição no inconsciente, portanto, é a da falta, e não de dois significantes que representariam cada qual um dos sexos, tornando possível a sua diferenciação: "O inconsciente, como já foi dito, é uma questão, e por isso mesmo no inconsciente não há inscrição da diferença anatômica dos sexos, mas sim a inscrição da falta, que é aquilo que possibilita seu movimento, sua abertura"3, coloca Sônia Nassim. Contribuiríamos lembrando a posição que Lacan, fazendo uso do pensamento de Spinoza, constrói ao longo do seminário sobre o Ato Analítico, quando ele relaciona esta falta primordial no sujeito à perda do objeto no Outro, como sendo esta falta a perda e esta perda como sendo "causa-de-si", no sentido que é dado a este termo pelo filósofo, na proposição: "Deus é causa-de-si". O princípio seria esta "perda-falta", ela causaria o inconsciente, o sujeito, seria sua conseqüência.

Mas, a partir da constatação desta falta fundamental, como prosseguir na nossa problematização sobre a diferença sexual, já que esta falta não se configuraria da mesma forma, não se faria funcionar do mesmo modo em relação ao masculino e ao feminino?

Como instrumento para irmos em frente na nossa discussão, faremos uso das fórmulas quânticas da sexuação que Lacan matemizou visando transmitir estes conceitos a partir da letra, a partir de um discurso sem palavras, apontado por ele como a essência da teoria psicanalítica (Seminário Do Outro ao outro). Em tais fórmulas encontramos uma possibilidade de mostração dos paradoxos implicados no masculino mas, principalmente, no feminino, não esgotando, naturalmente, toda a questão, mas abrindo para uma forma de trabalhá-la.

Tomaremos cada um dos lados como imaginariamente homem e imaginariamente mulher, pois, seguindo esta forma de pensá-los com Sônia Nassim, pretendemos não cair no mal entendido das questões de gênero como já fechadas em si mesmas, já distintas, pois só no Imaginário é que poderíamos congelar estas funções em relação à diferença anatômica.

Então, centrando-se no postulado freudiano do parricídio primordial (Totem e Tabu), no lado imaginariamente homem das fórmulas da sexuação, Lacan colocou a existência de pelo menos um não-castrado, uma particular negativa, (existe x, não fi de x.) em relação à universal afirmativa, onde nenhum escapa à castração, ou seja, todos são castrados, (para todo x, fi de x). Na particular negativa, a barra da negação repousa sobre o símbolo da função fálica, indicando pelo menos um x não castrado, enquanto a universal afirmativa coloca todos castrados. Torna-se necessária a função deste um não castrado, a função do Pai, para caracterizar o que todos os outros não tem. A exceção aqui confirma a regra.

Do lado imaginariamente mulher, Lacan colocou a negação na anterior particular negativa, tornando-a, então, uma particular afirmativa, já que em lógica, uma dupla negação recai numa afirmação: , ou seja, não existe nenhuma não castrada, não existe nenhuma que escape à ordem fálica, porém, ainda do lado feminino, colocou a negação na universal afirmativa, (para "não-todo" x, fi de x), ou seja, coloca a questão da mulher como "não-toda" na função/ordem fálica. O feminino teria a referência ao falo como o lado masculino, porém de uma maneira aberta, não totalmente fechada, definida. Estaria "não-toda" implicada no fálico. Segundo Nassim, "o lado feminino das fórmulas da sexuação foi retirado da lógica moderna ou lógica da diferença e inclui o princípio da não contradição como limite"5. O que seria então uma mulher, já que não podemos falar d () mulher enquanto categoria, enquanto universal afirmativa?

Uma observação de Lacan, no seminário Do Outro ao outro pode nos ajudar nos caminhos desta questão: "Entretanto não é senão por este ângulo que, na lógica freudiana, aparece a mulher: um representante inadequado, lado a lado, o falo e a negação de que ela o tenha, isto é, a reafirmação de sua solidariedade com este truque que, talvez, seja bem o seu representante, mas que não tem com ela qualquer relação. Então, isto deveria nos dar por si só uma pequena lição de lógica e nos fazer ver que o que falta ao conjunto desta lógica é precisamente o significante sexual"4. Portanto, há um significante que falta anterior a um hipotético significante mulher, mas que até poderia ter como seu representante, se fosse possível a sua inscrição, este truque que nos fala Lacan, porém, o interessante é ser um truque sem qualquer relação com a mulher, tudo ao mesmo tempo. Aqui a não contradição é o limite, lembremos. Torna-se muito interessante este engodo que seria esta hipotética inscrição de um significante mulher no inconsciente. Sua particular relação com o falo, como sendo "não-toda" na sua ordem, fazendo referência e negação ao mesmo tempo daquela função, e ainda, tal "não-contradição" ser apontada como este truque por Lacan, já que a própria "não-contradição" seria um representante inadequado por não ter qualquer relação com a própria mulher. São questões que ficam suspensas diante da falta do significante sexual para defini-las.

Continuemos, pois, no nosso caminho do corte do sexo à corte aos objetos, observando a ação do Imaginário sobre a diferença sexual.

Nassim conclui que "... o que caracteriza o inconsciente (do falante) é a não-inscrição da diferença sexual"6. Diante da não inscrição da diferença anatômica dos sexos e da impossibilidade da relação sexual no inconsciente o sujeito destaca seu objeto causa do desejo pelo recurso ao Imaginário a partir da imagem do próprio corpo na constituição do eu-ideal no estágio do espelho. Para a autora, "o estágio do espelho é o recurso simbólico doado ao sujeito para que ele possa imaginarizar a diferença"7. O Imaginário é produto do Simbólico, não escapa à lógica significante, porém é um recorte desta, uma forma "congelada", vamos dizer assim.

Frente à falta fundamental haverá a tentativa de construir "o" objeto que supostamente a preencherá ao mesmo tempo que, diante da impossibilidade da relação sexual pela não inscrição da diferença, a imagem do corpo tentará suprir esta não inscrição. Este primeiro objeto imaginário será a imagem do próprio corpo apontada no espelho como sendo a do Eu, a do ser, por um terceiro que vem ocupar o lugar do desejo do Outro, retomando esta função. Há uma organização da imagem do Eu que se encontraria até aqui despedaçado através de uma especulação do que ele seria, conjuntamente com uma negação da não inscrição da diferença sexual, já que a imagem do anatômico, por um processo identificatório, passaria a tentar suprir esta falha, provocando a alienação do sujeito em relação a ela. Perpetua-se a máxima lacaniana: "O desejo do homem é o desejo do Outro", agora, a partir do espelho, imaginarizado.

Sobre a formação do eu-ideal no espelho, Nassim propõe a idéia de uma estátua. Algo foi congelado nessa imagem antecipada de si mesmo em função do descentramento pelo olhar do Outro funcionando como terceiro, aquele que indica quem está no espelho: "É aí que estamos no que deu a estruturação do eu – sede do desconhecimento. Diz Lacan que o eu é estruturado como um sintoma, é o sintoma humano por excelência, é a doença mental do homem. Trata-se de uma personagem instantânea, apreendida na relação à imagem antecipada dele mesmo, independente da sua evolução. Este eu não ignora, não tem essa dimensão, ele desconhece, mantém-se aí por mais que a síntese fracasse. Paixão de desconhecimento, paixão do eu, que deixa vago meu lugar de sujeito."8 O discurso analítico se propõe a desvelar este engodo por um processo de desimaginarização e de trabalho significante até onde a travessia do fantasma do analisante permitir, sair da instância do querer do Eu para a do desejar do sujeito, descongelar a imagem da estátua enquanto sintoma e propor o movimento do desejo eternamente impulsionado e barrado pela falta que o funda.

NOTAS

* Trabalho apresentado no VI Encontro de Psicanálise da Universidade Federal do Ceará em maio 2002

  1. "a Diferença Sexual". Nassim, Sônia. 3ª Edição revista e aumentada. aoutra, pág. 92
  2. Idem., págs. 92/93.
  3. idem, pág. 84.
  4. "Do Outro ao outro". Lacan, Jacques. Lição XIV, pág. 8 – Trad. CEF – Recife.
  5. "a Diferença Sexual". Nassim, Sônia. 3ª Edição revista e aumentada. aoutra, pág. 90.
  6. Idem, pág. 31.
  7. Idem, pág. 36.
  8. Idem, pág. 50.
Volver al sumario del Número 19
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 19 - Julio 2004
www.acheronta.org