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A
O último verso de East Coker, de T. S. Eliot (N. 2), diz o seguinte:
In my end is my beginning.
(No meu fim está o meu princípio.)Ora, este verso deveria servir de epígrafe para a narrativa da análise de Gérard Haddad com Lacan (N. 3). - Por quê? Porque no fim desta análise revela-se - através de um sonho (e isto é muito importante) - o seu princípio lógico , qual seja, a orfandade imaginária de Haddad.
O sonho - de cujo enunciado vale-se Haddad para dar título ao livro - é o seguinte:
Lacan - era a primeira vez que eu sonhava com ele desde que morrera - estava sentado na beirada do grande sofá-cama, um móvel impressionante, alto, estilo Luís XV, que nos servia de leito conjugal. Ele parecia muito velho e seus pés não tocavam o chão. Grossas lágrimas rolavam-lhe pelas faces. Perguntei-lhe a causa dessa tristeza.
- É que não consegui resolver todos os seus problemas, disse.
Tranqüilizei-o, reafirmei-lhe a minha afeição e a minha gratidão.
- Ah! O senhor resolveu muitos.
Ele então disse esta última frase perturbadora:
- Você é meu filho adotivo (N. 4).
Todavia, logo na primeira entrevista Haddad fornece o texto - paterno (como se verá) - estruturante de seu fantasma psíquico (notação lacaniana: $ <> a):
Sinto, nesse momento [ao final da primeira entrevista], a necessidade de acrescentar algumas palavras, sem relação [será mesmo?] com a queixa que acabo de exprimir. "Há pouco, ao me aproximar daqui [do consultório de Lacan], uma visão incongruente apresentou-se à minha mente. Estou de pé, num imenso respeito, reduzido a meu olhar diante do véu do Santuário do Templo de Jerusalém, há-parokhet, e, sem exprimi-lo, meu desejo de contemplar seu além, o conteúdo da Arca (N. 5)". [Colchetes e grifos meus: JMCM.]
Ao ouvir isto, a reação de Lacan é imediata - prossegue Haddad:
Lacan parece então empalidecer, endurecer-se na poltrona. Fico constrangido, quero desculpar-me:
[Haddad] - Eu não tinha nenhuma intenção de lhe dizer isso ao vir vê-lo. Essa idéia me veio assim.
[Lacan] - Sei, e, como pode constatar, acuso o golpe (N. 6).
Pois bem. Com grande percepção lógica e inacreditável ousadia interpretativa, Lacan diz a Haddad as seguintes palavras:
Você vai curiosamente começar a sua análise pelo ponto em que, no melhor dos casos, ela acaba (N. 7).
E então, na reconstrução por escrito de sua análise, Gérard Haddad conclui acertadamente:
Suas palavras ficaram definitivamente gravadas na minha memória. O que significam? Anos mais tarde, entenderei que se tratava da emergência de minha "fantasia fundamental", aquilo que, "no melhor dos casos", acontece no fim de uma análise. Essa fantasia inesperada de meu olhar dirigido para o Santo dos Santos tornar-se-á o fio condutor da minha análise, o seu nome secreto (N. 8).
B
Quanto a Haddad, não se trata portanto de forclusão do significante Nome-do-Pai - o que faria dele, se articulássemos tal forclusão com outros elementos de seu discurso, um psicótico -. Não, de modo algum. A orfandade psíquica de Haddad diz respeito à dimensão imaginária do significante paterno e é isto que estrutura sua transferência, demarcando pontualmente as vicissitudes de um sujeito imerso nos fios do dispositivo psicanalítico.
Assim, a narrativa da análise de Haddad com Lacan é saborosíssima - além de ser, para nós, psicanalistas, altamente instrutiva -. Escrita com clareza, simplicidade e elegância (e, acredita-se, com honestidade), deparamo-nos com um Haddad às voltas com a rigorosa lógica que preside a análise, debatendo-se quase que às cegas com uma direção do tratamento que em momento algum abre mão dos pressupostos teóricos - e não meramente técnicos, frise-se - com os quais instaura, baliza e opera a cura do então jovem franco-tunisiano (ao procurar Lacan pela primeira vez, em 1969, Haddad tem apenas vinte e nove anos).
Bem, os fios do dispositivo psicanalítico encontram-se, quanto a Haddad, em mãos de Lacan... E, pelo que lemos, Lacan imediatamente puxa o fio do registro do real (R) para o seu lado (dele, Lacan), permitindo a Haddad enodar ao longo da análise o fio do registro do imaginário (I) ao fio do registro do simbólico (S) - e, desde logo, este sentido é decisivo (I --> S) -.
Com efeito, Gérard Haddad vai aos poucos - claro, de maneira tragicômica (pois é o que em geral ocorre com as análises) - orientando-se topo-logicamente (o hífen é importante) em seu inconsciente, reconstruindo passo a passo (com naturais tropeços, idas e vindas, etc) o campo discursivo do imaginário paterno. Tal reconstrução possibilitará a ele quando menos dois reposicionamentos subjetivos (vale dizer: discursivos) bastante agudos: - 1) A assunção psíquica de sua própria paternidade (ao procurar Lacan, era ele pai claudicante de três filhos), e - 2) A assunção psíquica da paternidade de seu pai - um judeu tradicionalista - sobre si mesmo, Haddad (ao procurar Lacan, rejeitava ele in totum sua ascendência judaica).
Ora, ao imediatamente puxar o fio do registro do real (R) para o seu lado, de chofre Lacan instaura um ato psicanalítico que irá estruturar e fazer trabalhar corretamente a transferência de Haddad, impossibilitando-o de supô-lo - a ele, Lacan -, desde as primeiras sessões, como um psicanalista operando seja no registro do imaginário (I), seja no registro do simbólico (S).
Noutros termos, em sua direção deste tratamento Lacan recusa-se radical e terminantemente a se deixar enodar no laço transferencial quer como um "pai-imaginário", quer como um "pai-simbólico" (N. 9). - Por quê? Porque, quanto ao primeiro, era o pai-imaginário a questão por excelência de Gérard Haddad (era o que lhe demarcava o campo de sua orfandade e, por conseqüência, o de sua agressividade e o de sua transferência); e, quanto ao segundo, o lugar (evidentemente: lugar lógico-discursivo) já estava por assim dizer ocupado, posto que a função simbólica do significante Nome-do-Pai - aquela que Lacan certa vez cognominou de metáfora paterna e mais tarde (e havia motivos para isso) de père-version (versão-do-pai) (N. 10) - instaurara desde muito antes o sujeito ($) Gérard Haddad no mundo. A propósito, eis o que Lacan lhe dissera na primeira entrevista:
O critério para empreender uma análise é o desejo de fazê-la, desejo cuja sinceridade você tem de testar. Você com toda certeza parece preencher esse critério. Aliás, é raro encontrar um desejo como o seu...
Não leio em você facilmente, pois você tem a sorte de ter um inconsciente... (N. 11)
Portanto, com precisão e força diretiva irrecorríveis, Lacan leva ao ato aquela célebre passagem de O aturdito (1972) na qual define o sujeito que interessa à psicanálise como algo que, enquanto "efeito de significação, é resposta do real" (N. 12). De fato, ao defrontar-se com o fio do registro do real (R) em mãos de Lacan, o analisante Haddad é posto para trabalhar sua transferência no sentido - na orientação vetorial - que lhe caberia desenvolver, qual seja, do imaginário ao simbólico (I --> S). E, ao longo dos anos, Haddad o faz: - Diante de sessões quase que diárias e curtíssimas (além de serem, muitas vezes, cobradas por um valor acima das suas possibilidades de pagamento), bem como diante de um psicanalista que não lhe ocultava no transcorrer das sessões (pelo menos nas que duravam pouco mais de alguns segundos) suas idiossincrasias pessoais (as dele, Lacan), Gérard Haddad irá caminhar quer para a assunção psíquica de sua paternidade (a dele sobre seus filhos e a de seu pai sobre si, Haddad), quer para a sua formação universitária de psiquiatra, quer para a sua autorização enquanto psicanalista-praticante, quer, ainda, para a sua inscrição no dispositivo do passe no âmbito da Escola Freudiana de Paris.
¬ Num breve esquema, talvez se possa escrever esta direção do tratamento do seguinte modo:
R // I --> S
(Lê-se: - O real [R] é disjunto do sentido "do imaginário [I] ao simbólico [S]", causando-o.)
C
Ora, o dispositivo do passe foi arquitetado por Lacan para que se pudesse colher testemunhos de que teria havido o corte - topo-lógico - a partir do qual o analisante tornara-se analista. E, acrescente-se imediatamente, posto tratar-se de um dispositivo acionado no interior de uma escola de psicanálise (e enquanto tal voltado para a estruturação, direção e funcionamento desta), o passe testemunharia então que teria havido o corte topo-lógico a partir do qual o analisante tornara-se analista-da-escola (AE) (N. 13).
Contudo, tal corte implicaria no seguinte: - O sentido (a orientação vetorial) do trabalho da transferência do analisante teria sido topo-logicamente subvertido, posicionando-o doravante não mais na vetorização transferencial "do imaginário ao simbólico" (I --> S) - ou ao contrário, isto é, "do simbólico ao imaginário" (S --> I) -, mas sim na radical e difícil vetorização (se é que ainda há vetorização) I <-- R --> S, ou, então, caso contrário, S <-- R --> I . Como se vê, em ambos os esquemas o registro do real (R) separa quer o registro do imaginário (I) do registro do simbólico (S), quer, ao contrário, o registro do simbólico (S) do registro do imaginário (I), impossibilitando o enodamento topológico - e, pois, o sentido (a orientação vetorial) - de um ao outro.
Não obstante, para suturar tais cortes teria de haver um quarto registro - cognominado por Lacan de Sinthome (Sinthoma, notação: ) -, capaz de reenodar - e, pois, reorientar - o que anteriormente fôra desenodado pelo registro do real (seja I <-- R --> S, seja S <-- R --> I) (N. 14).
Pois bem. Este quarto registro deveria ser a própria análise pela qual passara (ou estaria passando) o analisante, de tal modo que o Sinthoma () comprovaria paradoxalmente (note-se) que teria havido uma como que "subversão do sujeito", a saber, o Sinthoma () testemunharia paradoxalmente (note-se outra vez) a assunção psíquica - logo: discursiva - de um como que "para-além do inconsciente" (do recalcado), e, pois, paradoxalmente (note-se ainda), a assunção psíquica - logo: discursiva - de uma como que "des- subjetivação face ao Outro-real"... (Observe-se que utilizo aspas e reticências no final deste parágrafo para expressar que, quanto ao passe, o sujeito-do-inconsciente [$] encontra-se em uma posição psíquica - logo: discursiva - limítrofe, vale dizer, aquela na qual ele paradoxalmente terá sido - no futuro anterior, portanto - capaz de... "abolir o sentido no e do Outro-simbólico".
¬ Num breve esquema, considerando-se as duas direções do tratamento expostas acima (seja R // I --> S, seja R // S --> I), talvez se possa escrever a estruturação do Sinthoma (S) do seguinte modo:
(Lê-se: - O Sinthoma [] enoda o imaginário [I] ao real [R] e ao simbólico [S].)
Ou então:
(Lê-se: - O Sinthoma [] enoda o simbólico [S] ao real [R] e ao imaginário [I].)
D
Ora, em Memórias de uma transferência (primeiro capítulo de O dia em que Lacan me adotou), Gérard Haddad relata-nos que:
Tentei um dia, fortemente incentivado por Lacan, dar diante de meus pares de então o testemunho da experiência que eu acabava de atravessar, o que ele mesmo [Lacan] nomeou o passe. Não fui ouvido. Vinte anos mais tarde, faço do leitor o depositário dessa confissão (N. 15). [Colchetes e grifos meus: JMCM.]
Evidentemente, há muito que dizer deste parágrafo de Haddad. Sobretudo, há que se ressaltar o fato de que - "vinte anos mais tarde" - ele ainda não apreendeu (pois, evidentemente, não sofreu) os efeitos necessários da experiência do passe. - Por quê? Porque ao contrário do que supõe Haddad, ele testemunhou sim - "diante de [seus] pares de então" - a experiência que acabara de atravessar (a análise com Lacan). E mais: - Tais pares, sim, ouviram-no. Contudo, e é isto o que Haddad - inocentemente? - ainda não admite, tais pares ouviram-no porém não o nomearam como analista-da-escola (AE). E Haddad - acentue-se: por permanecer às voltas com uma análise cuja resolução não confluiu para a subversão de sua posição psíquica (discursiva: sentido I --> S) - endereça-nos sua não-nomeação como um sintoma de não-reconhecimento, pois como que ele "fortemente incentivado por Lacan" (sic) - vale dizer, no contexto de sua transferência (sentido I --> S), como que ele "pré-aprovado no passe diretamente por Lacan" - não foi ouvido, a saber, não foi reconhecido como um par de... Lacan?
Ora, admitamos: - A experiência do passe de Gérard Haddad comprova que sua análise - apesar daqueles agudos reposicionamentos psíquicos (discursivos) vistos acima - não operou o corte topo-lógico no sentido (I --> S) de seu fantasma ($ <> a), deixando-o ainda imerso em uma bisonha e errante orfandade sempre em busca de "pais adotivos" capazes de, reativando o sentido transferencial I --> S, operarem a suplência da vacância imaginária da função paterna. - A propósito, escreve Haddad:
Muitos anos se passaram e permaneço sob o golpe dessa disponibilidade para com o outro [segundo Haddad, a disponibilidade de Lacan para com os seus pacientes, sobretudo na primeira entrevista], rara no comum dos intelectuais de alguma notoriedade. Mais tarde, em outro momento crucial de minha existência, encontrarei a mesma abertura calorosa com aquele que foi meu segundo mestre depois de Lacan, Yeshayahou Leibowitz (N. 16). [Colchetes e grifos meus: JMCM.]
Portanto, ao final de sua análise Gérard Haddad continua apenso ao mesmo modo-de-gozar - sintomático, pois - que no início o levara, por caminhos imprevistos, ao consultório de Lacan: - Suprir, no simbólico (S), pela via de transferências a sujeitos supostos acolhê-lo e/ou reconhecê-lo "calorosamente" (além, claro está, de possuírem "alguma notoriedade intelectual"), sua orfandade imaginária. Aliás, há em O dia em que Lacan me adotou a seguinte passagem inteiramente expressiva do que estou a afirmar:
Eu esperava sobretudo, com a maior impaciência, a reação de Lacan [à apresentação de um trabalho de Haddad no seminário dirigido por Claude Conté]. Estava estupidamente convencido de que as minhas palavras lhe seriam relatadas. Fui à sessão do dia seguinte, angustiado, à espera dessa provável reação. E Lacan me acolheu com uma terrível frieza. (...). Esse mau-humor não podia ter outra causa a não ser a minha exposição da véspera [no seminário de Conté], que ele [Lacan] rejeitava, condenava sem apelação. Minha sessão foi das mais breves. Saí completamente derrubado. §. Era demais. Desesperado, decidi parar a análise com ele. Eu estava sendo desaprovado e, no entanto, continuava convencido de ter feito uma descoberta de certa importância [a hipótese de Haddad segundo a qual "o banquete totêmico consiste em comer um certo texto", explicitada posteriormente em sua obra Comer o livro]. §. [Todavia, após decidir rever Lacan, Haddad continua:] Corri para o carro. Nunca andei tão rápido em Paris. Lacan me recebeu com calor. Seu humor de repente havia mudado. [Lacan]: - Então, o que está acontecendo? [Haddad]: - Cabe a mim fazer-lhe essa pergunta. Por que me trata assim, com tal brutalidade, uma vez que sabe os sentimentos que tenho pelo senhor? [Lacan, conclusivamente]: - É precisamente por isso, porque acho esses sentimentos totalmente excessivos (N. 17). [Colchetes meus: JMCM.]
Assim, a experiência do passe realizada por Haddad demonstra retroativamente que não houve o corte topo-lógico I <-- R --> S. Noutros termos, quanto a Haddad, não houve a subversão de seu modo-de-gozar sintomático enquanto pathos - vale dizer, enquanto sofrimento apenso à verdade de seu fantasma (orfandade imaginária [I]) - para um modo-de-gozar sinthomático enquanto logos - vale dizer, enquanto entusiasmo apenso ao saber de seu fantasma (orfandade real [R]) - (N. 18).
¬ Num breve esquema, talvez se possa escrever a experiência do passe de Haddad nos seguintes termos:
(Lê-se: - Quanto a Haddad, o real [R] não operou o corte topo-lógico no sentido [I --> S] de seu fantasma [$ <> a], não ocorrendo retroativamente a estruturação de um modo-de-gozar sinthomático [], e, pois, a nomeação de analista-da-escola [AE].)
E
Por sua vez, Lacan fez o que devia fazer: - Na transferência, recusou-se terminantemente a ser capturado enquanto "pai-imaginário" de Haddad, e, pois, recusou-se, na direção do tratamento, a velar-lhe a "orfandade". Por doze longos e penosos anos (1969 - 1981), em rigoroso acordo com a ética psicanalítica - posto que enquanto "efeito de significação [S¹ --> S²], o sujeito [$] é resposta do real [R]" (N. 19) -, e apesar dos visíveis, audíveis e (é preciso dizê-lo) risíveis protestos de seu analisante, Lacan não se deixou "adotar". E acrescente-se: - Lacan fez o que fez - e como o fez (bem sei: para escândalo das "belas almas" supostamente psicanalíticas) - para mostrar in limine o que ele mesmo demonstrara teoricamente em suas fórmulas quânticas da sexuação, a saber, o pai-real ex-siste às "adoções" (N. 20).
Naturalmente - ou melhor, estruturalmente -, Lacan perdeu para a consistência imaginária do fantasma de Haddad. Face à enorme e poderosa densidade religiosa - judaico-paterna (e isto é um pleonasmo) - do texto deste fantasma vis-à-vis à "orfandade" do desvalido sujeito Gérard, um Lacan estupefato (como vimos) puxa imediatamente para si o fio do registro do real (R), possibilitando aos significantes erráticos e transbordantes daquele texto orientarem-se minimamente (sentido I --> S: "do imaginário [I] ao simbólico [S]). E esta orientação ocorre: - No final, eis um Haddad cujos laços sociais (discursivos) são sobretudo os de sua ascendência judaica (inclusive com casamento, esposa e filhos "convertidos" ao judaísmo), e ei-lo também enquanto um psicanalista - observe-se: meramente praticante, qual seja, aquele que se recusa a estabelecer laços-de-escola (e, pois, de transmissão-serial) com os seus pares - decididamente às voltas com as supostas "sources talmudiques" (fontes talmúdicas) da psicanálise, além de obstinado tradutor de autores judaicos (E. Ben Yehouda e Yeshayahou Leibowitz - este, lembre-se, seu "segundo mestre depois de Lacan" -).
Portanto, Gérard Haddad é "filho adotivo de Lacan" ao preço da lógica operante em seu (dele, Haddad) fantasma: - Há aí uma "causalidade psíquica" (lógico-discursiva) que vai do texto daquela fantasia expressa na primeira entrevista, transmuda-se e vigora na fantasia do passe e conflui para o sonho de adoção por parte de "Lacan" (as aspas são importantes). De uma à outra ponta o fantasma ($ <> a) de Haddad é, pois, no sentido forte do termo, religioso, a saber, persiste e insiste nele um desejo (inconsciente) estruturado como uma linguagem-religiosa (Outro-judaico), desejo este ávido de adoção - imaginária, obviamente - pelo significante-mestre (S¹) enquanto "Pai" (no caso clínico de Haddad, os "pais adotivos Lacan, Pallière, Yehouda, Leibowitz, etc").
Neste contexto o registro do real (R) como o que não-cessa de não-se-inscrever (N. 21) não é destacado como aquilo que poderia escandir o sujeito, dividindo-o e obrigando-o à invenção de um "novo significante" - nos termos de Lacan, à assunção psíquica (discursiva) de uma alíngua singular enquanto "resposta do real (R)" (N. 22) -.
¬ Num breve esquema, talvez se possa escrever a forclusão (a expressão é bem esta) do registro do real (R) em Haddad do seguinte modo:
(Lê-se: - Na análise de Haddad, o registro do real [R] enquanto causa não é integrável, e isto é congruente com a forclusão do registro do real [R] no final desta análise.)
Certo, observara Lacan à imprensa italiana (29 de Outubro de 1974), a religião é indestrutível. Quanto à psicanálise (continuara Lacan na mesma entrevista), ela sobreviverá ou não (N. 23). Bem, ao final da leitura de O dia em que Lacan me adotou fica-se com a incomodativa impressão de que a psicanálise em mãos de Gérard Haddad - apesar dos esforços e dos protestos dele em contrário - não sobreviverá. Mas o verdadeiramente preocupante é que uma legião de psicanalistas lerá este livro com a secretíssima fantasia de alterar o seu título para O dia em que Lacan nos adotou...
ADENDO
Haddad abre seu livro com duas epígrafes que interpretam com precisão o sentido (I --> S) de sua análise:
[1] Minhas observações de doentes se lêem como romances. (Sigmund Freud)
¬ Vale dizer, quanto a Haddad: - "A narrativa em seguida expressa - e permanece - nos limites de meu fantasma ($ <> a), nada-querendo-saber do registro do real (R)."
[2] Não deixarei discípulos. Não sou um mestre. Sou apenas uma testemunha. A testemunha permanece solitária. (Aimé Pallière)
¬ Vale dizer, quanto a Haddad (lendo-se a epígrafe do final para o início): - "Não faço laços com os que militam no contexto do discurso psicanalítico ('não freqüento escolas, etc'). - Sou apenas um psicanalista-praticante (aquele que modestamente testemunha - e opera sobre - 'os sintomas dos pacientes'). - O mestre é o Outro ($ --> ? S¹: posição discursiva histérica). - Não transmito o discurso psicanalítico mas sim - minha análise conduziu-me a isso - a religiosidade judaica (insiro no discurso psicanalítico as fontes talmúdicas da psicanálise, traduzo textos de autores judaicos, etc)."
Ah, sim, e a dedicatória do livro, em primeiríssima página:
À memória de meu pai. (Gérard Haddad)
¬ Vale dizer, quanto a Haddad: - Bem, deixe-se aqui outra vez a palavra com Lacan:
(...) irão curar a Humanidade da psicanálise. À força de afogá-lo no sentido - no sentido religioso, é claro - se chegará a recalcar esse sintoma [a psicanálise]. Compreende-me? Acendeu-se uma luzinha no seu entendimento? Não lhe parece que a minha posição é sensata (N. 24)?
NOTAS & BIBLIOGRAFIA
(Nota 1) OBSERVATÓRIO DA PSICANÁLISE (Colegiado Psicanalítico de Orientação Lacaniana - COPOL -): www.observatoriodapsicanalise.net
(N. 2) ELIOT. T. S. "East Coker", in: Quatro quartetos. Lisboa (Portugal): Ática. 1970: 44.
(N. 3) HADDAD, G. O dia em que Lacan me adotou. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
(N. 4) Idem: 302 - 303.
(N. 5) Ibidem: 71.
(N. 6) Ibidem: 71.
(N. 7) Ibidem: 71.
(N. 8) Ibidem: 71.
(N. 9) As aspas são justificáveis pelo seguinte: - Ambos estes "pais" situam-se no discurso de Haddad vis-à-vis o laço transferencial com Lacan. Por outro lado, sempre que se tratar de um conceito psicanalítico as aspas serão dispensadas.
(N. 10) Na conferência O que as psicoses ensinam à clínica das neuroses, Éric Laurent faz uma excelente distinção entre metáfora paterna e père-version (versão-do-pai) - ei-la:
O que as psicoses nos ensinam sobre as neuroses? Elas nos ensinam, antes de tudo, que a identificação ao pai é apenas um caso particular. Há maneiras de lidar com o gozo que permitem (...) dar uma representação do gozo sem passar pela identificação ao pai [identificação possibilitada, nas neuroses, pela operação significante da metáfora paterna]. O pai como ficção jurídica útil para um certo real é um caso particular na série de ficções que funcionam na psicose como ponto de ancoragem. É por isso que nos anos 70 não é mais em termos de identificação que [Lacan] vai colocar a relação do pai com o filho, mas sim em termos de modelo. §. (...) o pai como modelo de sua função funciona ao avesso do pai da identificação [pai da metáfora paterna]: ele é simplesmente o modelo de uma função de gozo. (...). A partir daí, o pai e as relações que giram em torno dele são pensáveis em termos de versões ou de existências, de realizações de modelos da função de gozo. É o que ele [Lacan] chama de père-version (versão-do-pai), isto é, a regulação do gozo pelo modelo que é proposto. Neste sentido, o pai - e o pai como sintoma - é apenas a regulação pragmática de um certo gozo (...). Longe de ser uma relação simbólica que abole o gozo [como no pai da identificação edípica, pela via da metáfora paterna], ela apenas o regula. Isto se torna um sintoma ou uma ficção jurídica como outra qualquer. [Colchetes e grifos meus: JMCM.] - LAURENT, É. O que as psicoses ensinam à clínica das neuroses. Curinga, Nº 14. Belo Horizonte: EBP - MG, 2000: 179.
(N. 11) HADDAD, G. Op. cit.: 72.
(N. 12) LACAN, J. "O aturdito", in: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 458.
(N. 13) LACAN, J. "Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola", in: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
(N. 14 ) LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Inédito.
(N. 15) HADDAD, G. Op. cit.: 14.
(N. 16) Idem: 73.
(N. 17) Ibidem: 235 - 237.
(N. 18) Cito Lacan:
A partir daí, ele [o psicanalista] sabe ser um rebotalho. Isso é o que a análise deve ao menos tê-lo feito sentir. Se ele não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance. - LACAN, J. "Nota italiana", in: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 313.
(N. 19) LACAN, J. "O aturdito", in: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 458.
(N. 20) Isto porque o pai-real não se situa nos laços discursivos. Ele é a-significante. Todavia, trata-se de uma suposição lógica indispensável e sua "fórmula" pode ser escrita. - LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972 - 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
(N. 21) LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972 - 1973). Op. cit.
(N. 22) LACAN, J. "O aturdito", Op. cit.
(N. 23) LACAN, J. "Entrevista coletiva com o Dr. Lacan", in: Dizer, 12. Rio de Janeiro: Escola Lacaniana de Psicanálise, s. d.: 13 - 15.
(N. 24) Idem: 13 - 15.