Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A adolescência na contemporaneidade: ¿expêriencia creativa?
María Regina Maciel

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Introdução

Observando a história social do ocidente, é possível perceber como a infância, e posteriormente a adolescência, foram se constituindo para além de simples fase do desenvolvimento humano, em ideais a serem estabelecidos e retidos. Neste sentido, podemos afirmar que na atualidade assistimos à consolidação da adolescência enquanto um ideal cultural. Seus valores de autonomia e liberdade são hegemônicos na sociedade contemporânea.

Sabemos que é freqüente entre os adolescentes a formação de grupos. Constatamos que na medida em que esses grupos não comportarem reconhecimento intersubjetivo das demandas e diferenças identitárias dos sujeitos, a apatia ou a violência desmedida podem se tornar fato cotidiano. No entanto acreditamos também que esses grupos podem se constituir em fratias nas quais haja a possibilidade de experiência criativa.

 

A adolescência na contemporaneidade

Áries (1981) localiza na história social do ocidente, precisamente no século XX [denominado por ele de "o século da adolescência" (Áries, 1981, p. 46)], o surgimento do conceito de adolescência. O autor mostra, portanto, a adolescência como uma construção histórica, mais do que uma fase do desenvolvimento que faria parte da natureza humana. Ela seria uma construção histórica que passa, então, a ser entendida como um período da vida situado entre a infância e a fase adulta, ou como um lugar de passagem para a vida adulta.

Calligaris (2000) situa os primeiros textos científicos e as primeiras produções culturais do século XX nos quais a adolescência se constituiu como objeto de reflexão, pesquisa e, porque não, ideal social. 1 Ele nos auxilia, portanto, na definição da adolescência enquanto um ideal cultural contemporâneo, já que é um derivado atual da infância moderna – esta última posta na modernidade como algo a ser venerado, portador das promessas e dos sonhos dos adultos que se viram desamparados com o fim da sociedade tradicional que, por sua vez, os assegurava através de verdades incontestes. O autor afirma, em seu livro, que o adolescente está submetido, hoje, a uma "moratória " que impõe, por um lado, a espera e a dependência e, por outro lado, o ideal social de autonomia que se deseja dele (Calligaris, 2000, p.16).

O estudo da adolescência tem adquirido tamanha importância, hoje, que há aqueles que estabelecem ligações entre ela e as novas psicopatologias. Este é o caso de Rassial (2000). Este autor, ao mostrar que o diagnóstico de estado-limite invadiu a psicopatologia nos últimos vinte anos – surgindo como uma crítica à clínica das estruturas classicamente determinadas: psicose, neurose e perversão –; entende o sujeito pós-moderno como limítrofe. Ele afirma que na etiologia dessa patologia particular, há um fracasso narcísico. Este fracasso narcísico, por seu turno, é associado a um estado de adolescência sem fim. Assim que, para Rassial, há nas novas psicopatologias um traço do que foi denominado por ele de "adolescência sem fim".

Seu argumento vai no seguinte sentido: Rassial distingue dois momentos de constituição narcísica de todo sujeito e supõe um terceiro. O primeiro momento de constituição narcísica é o do eu sustentado pelo eu-ideal. O eu é aqui o produto do olhar do Outro materno. O segundo momento de constituição narcísica é o da projeção neste eu dos "determinantes simbólicos que serão ordenados pelo Édipo, sendo o resultado disto o ideal-do-eu". O ideal do eu, por sua vez, é associado à figura do supereu. O terceiro momento, acrescentado por ele, é o de um narcisismo adolescente, "cuja questão é uma modificação da relação entre eu-ideal e ideal-do-eu, associada à reconstrução da imagem do corpo sexuado". Essa terceira operação narcísica, que se dá na adolescência – posto que neste período o sujeito renuncia ao seu ideal-do-eu infantil que não mais corresponde às novas exigências superegóicas –, foi precocemente realizada pelo sujeito em estado-limite. O autor conclui seu livro definindo o estado-limite, próprio do sujeito contemporâneo, como uma adolescência tanto antecipada quanto interminável, o que se constitui num fracasso narcísico (Rassial, 2000, p. 83 e 84).

Com este tipo de abordagem, podemos nos pensar a nos mesmos como sujeitos interminavelmente adolescentes: sujeitos incessantemente errantes, submetidos a um ideal de eu infantil, o que se reflete num laço social sempre fluido. Ao invés de passarmos pela adolescência e deste modo podermos encontrar ideais que apontem para um futuro móvel e variável, podemos nos encontrar frente a idealizações infantis paralisantes (que remetem a fixações de objeto que não são facilmente substituíveis) empobrecedoras do ego, na medida que nos aliena ao objeto.

Finalmente uma última via que queremos explorar no que diz respeito à relação da adolescência e dos ideais culturais contemporâneos, é a da articulação do surgimento do conceito de adolescência com a consolidação do individualismo no mundo ocidental. Isto é possível na medida em que percebemos que, tanto na adolescência quanto no nosso contexto sócio-cultural individualista, a liberdade e a autonomia são tidos como valores hegemônicos. Sabemos, no entanto, que quando se trata de um extremo individualismo – como este a que hoje nos vemos expostos – esses valores próprios da adolescência e dos ideais atuais podem não ser verdadeiramente experimentados. No lugar disto, o que assistimos é o aumento nos casos de apatia ou de violência despida de qualquer objetivo de transformação ou projeto histórico.

Adolescência e experiência criativa

Como já se questionou Coutinho (2002), será que toda experiência adolescente atual deve ser vista como uma espécie de sintoma social? 2 A partir daí nós podemos nos perguntar: a adolescência na contemporaneidade deve sempre se referir a uma paralisia da criatividade na qual nos tornaríamos presos a um ideal infantil? Não poderíamos tentar positivar nossa condição atual de "sujeitos adolescentes" que assistem ao desmoronamento dos grandes ideais modernos que até então nos serviam de referências? Por que não ver aí uma possibilidade de experimentar este momento como de criação, um espaço possível em que haja uma elaboração da reedição edípica narcísica e que acabe, finalmente, por fazer valer um ideal, aí sim, mobilizante?

Para tentar responder a essas questões algumas explicações preliminares devem ser feitas sobre a posição que orienta nossos argumentos. Enfatizamos a intersubjetividade, o que significa que nos constituímos na relação com o outro. Concebemos, também, um sujeito com alguma capacidade de autodeterminação. O que há de fundamental em nossa posição é a idéia de capacidade criativa que, no entanto, necessita de experiências concretas para efetivamente existir. Tais experiências, por sua vez, dizem respeito à maneira como estamos no mundo com os outros sujeitos do nosso contexto, ou seja, dizem respeito à maneira como nos relacionamos corporal, afetiva e lingüisticamente.

Especificamente quanto à noção de criatividade a que estamos nos referindo, pretendemos analisá-la referindo-a à identidade: quem somos, que valores temos, como nos sentimos sendo nós mesmos? Não é, portanto, uma criatividade que podemos chamar de instrumental, tão em voga no momento de hoje, dominada pelo mercado e que serve meramente ao poder político/econômico. Entendemos que para que se constituam sujeitos criativos, necessitamos de um certo tipo de intersubjetividade, na qual haja reconhecimento das demandas e necessidades mútuas.

Pois bem, esclarecimentos a parte, vamos voltar ao nosso tema da adolescência. É comum notar que os adolescentes frequentemente se agrupam. Muitos autores vêem neste fato corriqueiro a constituição de uma relação imaginária com o pai ideal, uma relação em espelho alienante. Este tipo de posicionamento pode ser encontrado desde as próprias indicações de Freud em Psicologia das massas e análise do Ego e foi explorado por diversos autores como, por exemplo, Melman (1995).

Mas nos perguntamos: por que não conceber um outro tipo de organização grupal? Por que não pensar no grupo como um lugar possível de reconhecimento intersubjetivo, no qual não necessariamente haja alienação e no qual o sujeito pode ser verdadeiramente criativo?

Entendemos que num grupo não necessariamente o indivíduo está absorvido pela multidão, como Freud nos faz pensar no texto anteriormente citado. Se seguirmos este texto, nós seremos levados a conceber a identificação que aí se dá, como comparável a uma situação hipnótica, na qual o indivíduo está sugestionado emocionalmente e liberado de sua responsabilidade. Entendemos, contudo, que a partir das identificações fraternas próprias de alguns grupos que estão se constituindo hoje, abre-se uma nova perspectiva de se pensar.

Kehl (2000) nos mostra a importância do que ela denomina de função fraterna para a constituição do sujeito. Ao contrário de Freud em Psicologia das massas e análise do ego, ela não acredita que toda coletividade esteja pedindo um Füher que anularia as diferenças entre os membros de uma coletividade, promoveria uma identificação com o líder e a suspensão dos limites impostos pela lei que regula o convívio social. A autora termina por re-introduzir a idéia de fratia na psicanálise.

Seguindo Freud em Totem e Tabu, Kehl afirma que o assassinato do pai gera culpa, o que acarreta a constituição de ideais compartilhados (sendo este ato dos irmãos o que institui a função fraterna). Esta função continua operando a partir da cultura e, porque não dizer, das identificações entre os irmãos. A função fraterna não substitui a função paterna mas, ao contrário, possibilita que possamos ver no outro algo diferente de uma ameaça constante. Esta faz, portanto, suplência à função paterna ao quebrar uma ilusão identitária do sujeito que produziria o fantasma do duplo perseguidor. Esta função – ao introduzir a identificação entre os sujeitos, mas também a singularização nas diferenças –, diversifica o campo identificatório, possibilitando que o sujeito se mova em "novos campos de circulação libidinal que o projeta para fora do triângulo edípico" (Kelh, 2000, p. 40).

Justamente a adolescência pode ser para Kehl, o período, por excelência, das grandes formações fraternas em que há esses "campos de experimentação" que legitimam "experiências de liberdade". Os grupos de adolescentes podem funcionar, nas suas palavras, como "moções de liberdade ... que possibilitam o enfraquecimento do poder de verdade absoluta que a palavra paterna tem na infância" (Idem, p. 41).

Kehl analisando especificamente o grupo de ‘rapper’ os "Racionais" – que apela com suas músicas, para que os "manos" se identifiquem com a causa dos jovens negros da periferia que estão sendo exterminados –, afirma que este grupo pode, com sua fratia, erigir um pai simbólico. Nas palavras da autora, este pai simbólico pode contemplar "as necessidades de todos e não a voracidade de alguns" (Idem, p. 217). Entendemos, portanto, que são os semelhantes – que na constatação também da diferença – legitimam, no campo social, o reconhecimento (inaugurado pelo pai) de quem o sujeito é.

Ainda em termos mais concretos, e pensando mais especificamente no âmbito da educação, podemos dizer que estamos assistindo ao surgimento de variados trabalhos feitos com adolescentes que, buscando reafirmar determinadas referências simbólicas, funcionam como elaboração dos impasses oferecidos pela cultura contemporânea. São trabalhos, como o desenvolvido, por exemplo, na Vila Olímpica da Mangueira, relatado por Gonçalves (2003), no qual se reafirmam e reinventam referências simbólicas que são possibilitadoras de reconhecimento mútuo, mas que também enfatizam nossa autonomia, nosso potencial criativo.

Especificamente sobre este trabalho, vemos que a Vila Olímpica da Mangueira surge como um projeto social local que reivindica a ampliação de oportunidades para a criança e o jovem das classes populares da localidade. Pretende preparar os jovens para a vida, problematizando seus direitos de cidadão e não só "integrar" o "menor" à sociedade via solução do trabalho. Centrado no esporte e na música, apresenta-se como uma alternativa à criminalidade. Trabalha o samba, manifestação local que oferece uma oportunidade de identificação entre seus membros, e promove laços inter-pessoais ou circuitos sociais com suas regras básicas próprias. A partir deles, indivíduo e sociedade vão se entrelaçando e se constituindo (inventando e reinventando tradição). Essas redes formadas ao redor do samba, sem deixar de incorporar estranhos – que podem dizer respeito à heterogeneidade de raça, gênero, etc, de seus membros e não membros (pessoas de outros seguimentos sociais que freqüentam as Escolas de samba) – dão, de certa forma, uma identidade a esses adolescentes. Essas redes acabam, por exemplo, por transformar um anônimo em "mangueirense", em uma pessoa pertencente a um grupo.

Estes são exemplos de como os adolescentes e seus grupos podem ser vividos como espaços de criação. Ou seja, se o adolescente (e porque não dizer, o sujeito contemporâneo) não viver fechado no âmbito individual – mas incluir em seus grupos o reconhecimento mútuo das demandas, as diferenças identitárias dos sujeitos e um projeto social tecido na intersubjetividade cotidiana –, a criatividade pode passar a ser um fato de experiência. Por isto a necessidade de se criticar uma sociedade heteronômica, não democrática, como a nossa, que aliena o sujeito e encobre o seu poder de auto-criação que, como já afirmado, necessita do outro para efetivamente existir.

A título de conclusão

A adolescência como fenômeno psico-social é um fenômeno que não tem nem cem anos. Porém, na sociedade moderna ela se estabeleceu como uma etapa do desenvolvimento fundamental. Sua importância foi se acentuando a ponto de ser possível afirmar que contemporaneamente ela tem invadido tanto a infância quanto a vida adulta. Isto devido á erotização da infância ou á crise econômica que dificulta os jovens a assumirem seus deveres de adultos.

Pesquisando as características da adolescência atual, é possível observar sua tendência ou à apatia ou à violência. Porém, após analisar caminhos possíveis de interpretação que relacionam a adolescência ao ideal cultural contemporâneo, apostamos na possibilidade desta ser vivida enquanto uma experiência criativa, experiência em que se possa viver autonomamente. Isto se concebermos a adolescência como um momento pleno de "campos de experimentação de liberdade", na medida em que nos grupos que se formam haja reconhecimento mútuo das demandas e das diferenças identitárias dos sujeitos.

Tendo esta idéia como base, talvez nós sujeitos contemporâneos, eternos adolescentes segundo alguns, na medida em que também nos encontramos frente á perda de ideais e frente á uma crise de identidade, possamos não existir sintomaticamente, através de ideais paralisantes, mas, ao contrário, possamos agir criativamente no mundo.

Notas

1 O autor cita, entre outros, os livros de G. Stanley Hall, Adolescence: Its Psychology and Its Relations to Physiology, Anthropology, Sociology, Sex, Crime, Religion and Education. New York: D. Appleton & Co., 1904; de Margaret Mead, Coming of Age in Somoa. New York: Willian Morrow, 1928; e filmes como os com Elvis Presley.

2 Coutinho (2002) em seu texto apresentou a hipótese da adolescência contemporânea poder ser vista não como uma espécie de sintoma social, mas como um ideal típico dos nossos dias, que não necessariamente é paralisante.

Bibliografia

Áries, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, LTC S.A., 1981.

Calligaris, C., A adolescência. São Paulo, Publifolha, 2000.

Coutinho, L., "A adolescência na contemporaneidade: ideal cultural ou sintoma social?", trabalho apresentado no colóquio Adolescência e Construção de Fronteiras, APPOA /UFRGS, Porto Alegre, agosto de 2002.

Freud, S., "Psicologia das massas e análise do ego" (1921). In: ___. Obras Completas, v. XVIII. Rio de Janeiro, Imago, 1976.

_______, "Totem e Tabu" (1913). In___: Obras Completas, v. XIII. Rio de Janeiro, Imago, 1974.

Gonçalves, M. A. R., A vila Olímpica da verde-e-rosa. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2003.

Kehl, M. R. (Org.), Função Fraterna. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000.

Melman, C, "Haveria uma questão particular do pai na adolescência?" em Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Ano V, número 11, novembro de 1995.

Rassial, J-J. O sujeito em estado limite. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 19 - Julio 2004
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