Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Violencia urbana, purgatorio das almas sebosas
Dinara G. Machado Guimarães

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Resumen: O trabalho aborda a manifestação cultural da história des "almas sebosas" contada pela gangue dos assassinos sob a liderança do justiceiro Helinho, em Camaragibe, Pernambuco, mostrando como utiliza-se da versão do pai de Totem e Tabu, escrito em 1912/1913, por Sigmund Freud, já que ambas indicam que é o tabu que representa o pai da horda primitiva. Com isso, vai tecendo as relações entre a psicanálise e o cinema, apoiado no filme O Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas, dos diretores Marcelo Luna e Paulo Caldas, em 2001, que documenta duas narrativas do mundo contemporâneo, da violência, a anti-violência pelo rap e a da violência pelos matadores das almas sebosas, procurando mostrar o sofrimento da mãe e dos assassinos.

 

 

O que se vê hoje, nas telas, é uma realidade miserável digna de pena, sob a forma de reportagem s ó para satisfazer voyeurs e exibicionistas urbanos. Já O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas, Recife, 2000, de Marcelo Luna e Paulo Caldas, documenta duas narrativas do mundo contemporâneo da violência, a da anti-violência pelo rap e a da violência por matadores das almas sebosas, contrapondo uma a outra. O título vem de uma amarração entre rap (palavra da língua inglesa que significa ritmo e poesia) e almas sebosas (termo da periferia da cidade de Recife que significava ladrão de pequenos furtos e assumiu o significado de bandido no pior sentido da palavra), como na frase do romanceiro popular nordestino da literatura de cordel. No aspecto da realidade psíquica, o filme cordel possibilita uma leitura da vida mordida pela morte no homo hominis lupus, o homem é o lobo do homem, cujo caminho para a morte é o gozo.

As duas narrativas são contituidas dos depoimentos assassinos e dos versos na forma de rap - o movimento musical criado no meio urbano dos Estados Unidos como forma de expressão da juventude que se propaga pelo mundo inteiro assumindo localmente fisionomias como o rap brasileiro, cujo ritmo é o mesmo da embolada e, a poesia, é a do poema de desafio do cantador nordestino, cantada, melodiosa e simples, algo semelhante à trova do poeta provençal - designação a partir do século XI para o poeta ambulante que cantava seus poemas ao som de instrumentos musicais. Com isso, a dupla de cineastas trova o cotidiano da violência urbana sem mostrá-la.

O documentário é um contra-exemplo do filme chocante que representa a violência realisticamente, enquanto a trama e a atuação são clichês, do tipo ter de matar o vilão que comete atos horríveis de forma cruel e assim poder mostrar a violência só para manter a platéia excitada, como o projeta, de forma reflexiva, na tela da TV dentro da tela do cinema.

Essa diferença, diz respeito ao senso do poder das imagens e da encenação em afetar o espectador, o que nos leva a citar aqui Sigmund Freud, que no seu Tipos psicopáticos no palco, de 1005, ressalta: "Como se tem presumido, desde a época de Aristóteles, a finalidade do teatro é despertar o "temor e a piedade" e assim "purgar as emoções" (1). Neste sentido, faz um paralelo entre a liberação das emoções e uma excitaçã o sexual. Para ele, "...estar presente como espectador interessado num espetáculo ou peça representa para os adultos o que o brinquedo representa para as crianças, cujas esperanças hesitantes de poderem fazer o que os adultos fazem são, dessa forma, satisfeitas (...). E o teatrólogo e o ator permitem-lhe que ele proceda dessa forma fazendo-o identificar-se com um herói" (2).

Também o cinema funciona como um procedimento de identificação do espectador para "purgar emoções", no sentido de purgar culpas passadas, ou expelir maus humores, como a alma que se purga na penitência. A pré-condição do prazer do espectador, é proporcionar um ato heróico sem dores nem temores. Isso é possível pelo fato de, em primeiro lugar, é outro que não ele, o que está sofrendo na tela. Em segundo, tudo é um jogo, tudo não passa de cinema que não causa perigo à sua segurança pessoal e, portanto, o prazer se apoia em uma ilusão.

Como pensar então o documentário cujo tema é o sofrimento e desse pretende o deleite da platéia?

Se o cinema de diversão transporta o espectador da dimensão do cotidiano para o mundo da fantasia, o documentário faz o inverso: primeiro, deixa os personagens verdadeiros viverem o drama cotidiano na realidade concreta, depois revela, quando visto, que eles são protagonistas de uma realidade psíquica. Daí o documentário ser um cinema-direto nos três tempos do olhar: olhar (do cineasta e montador), ser olhado (da personagem), fazer-se olhar (do espectador). Pode-se levantar, de saída, a questão do prazer do público, na situação de alguém interpelado pelo documentário. O espectador v ê mas é o documentário que volta como olhar, o que permite compreender a subjetividade do espectador inserida na ordem da objetividade, pelo fato de ser parte da obra, quer dizer, o documentário é olhar. Um trabalho bem resolvido no rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas.

Primeiro, ao emparelhar o que há de comum entre dois jovens com vinte e poucos anos Alexandre Garnizé e Hélio José da Silva, vulgo Helinho, ambos moradores de Camaragibe, cidade dormitório de Recife, onde eles convivem com o mundo da violência atualmente crescente na periferia das grandes cidades brasileiras. Segundo, ao contrapor os mecanismos de um músico e de um justiceiro, que não poderiam ser mais diferentes.

Nesse ponto, o contraste é evidente e se impõe de forma até mesmo exagerada. Garnizé, baterista da banda de hip-hop Faces do subúrbio, desenvolve um trabalho comunitário com música junto à garotada carente de sua cidade, movido pela utopia de uma sociedade fundada na igualdade entre seus cidadões. Helinho, acusado de ter matado quarenta e quatro pessoas, cumpre uma pena de noventa e nove anos de prisão, desde 1998, apesar disso, não se considera um criminoso, não se confessa um matador que ganha dinheiro, não tem remorsos em matar, só exterminava os maus para que os bons pudessem proliferar; hoje se tem informação que Helinho foi morto dentro da penitenciária, Garnizé foi convidado para visitar a Rússia e as crianças figurantes da escola foram assassinadas.

A montagem é ainda mais engenhosa ao intercalar os depoimentos documentais em viva-voz das figuras da cidade, o delegado, o advogado, os três membros do bando de matadores das almas sebosas, a mãe do justiceiro e o carro com alto-falante que divulga a vontade coletiva da passeata e o abaixo-assinado pedindo a libertação de Helinho, já que havia "limpado a cidade" e lhe devolvido a paz, fato ocorrido quando ele foi preso. O delegado dissimulado sob os óculos escuros, pronuncia-se a favor da condenação de Helinho. O advogado cita a lei que constitui o direito autorizada na justiça, da proibição em vigor de matar, assaltar, traficar drogas. Os matadores mascarados respondem ao comando: seja o agente da morte das almas sebosas!, elas proliferam-se como erva daninha, "não serve para nada, é indiferente". A mãe invoca a lei de Deus: "Quem faz tem que pagar", mas por mais que tenha fé em Deus, sofre a dúvida atroz de punir ou perdoar o filho e enquanto isso, visita-o na prisão. E o m úsico canta o verso: "O rap é a lei da verdade", justificando: "A verdade da periferia é nua e crua, sem colocar verniz". No final das contas, cada um tem sua própria lei, o que a faz aparecer sob a forma variada do sintoma.

O trabalho consiste em fazer responder aos interlocutores a uma questão que só é transmitida em voz off numa única cena. E é no momento que a resposta se torna pertinente que aparece na montagem, de modo que, mesmo se tratando de um documentário, há uma colocação em cena da vida real, além de uma certa dramaturgia na apresentação dos personagens verdadeiros, logo, não atores. Quando esse personagem é a mãe do justiceiro, emoldura apenas o seu olho e a sua boca, de forma à câmera penetrar olho a olho em seu sofrimento enquanto recorda que o filho era "bom menino", apelidado "pequeno príncipe" no trabalho, reconhecido como "herói" pela comunidade local e "querido" na penitenciária. O olho fala, não como o faz a boca, que algo está errado entre a mãe e o filho. Isso é traduzido por um julgamento silencioso pelo olhar, como substituto do que está fora da significação.

A comunidade local não quer que Helinho fique preso; como também não se quis o assassinato de Hitler pelo fato de ter havido uma homogeneização da loucura pela identificação com o líder. No documentário, ele não faz um jovem criminoso. Ele é um criminoso. Suas reações não apresentam as características de castigo e remorso porque é um sujeito dos temores e submete-se à renúncias e restrições, embora essas sejam em parte disfarçadas como medida de defesa contra as almas sebosas. Entre os criminosos adultos, existem aqueles que praticam crimes sem qualquer sentimento de culpa; que, ou não desenvolvem quaisquer inibições morais, ou, em seu conflito com a sociedade, considera sua ação justificada. Desse modo, deve haver algo muito forte neles que realize os membros da comunidade e tal motivação deve ser levada em conta; ela pode lançar luz sobre alguns pontos obscuros na psicologia do criminoso.

Os outros criminosos, por uma filiação imaginária, nomeiam-se brothers, uma palavra inglesa que significa irmão. Eles parecem estar organizados como na sociedade totêmica diante da interdição da horda e, portanto, não é questão nem o tipo de moral, nem o valor ético da lei, mas o gozo. Freud em seu livro Totem e Tabu, de 1913, ressalta: "É vingada da mesma maneira enérgica por todo o clã, como se fosse uma questão de impedir um perigo que ameaça toda a comunidade" (3). O fato de vingar acaba geralmente na morte, sem o procedimento jurídico, sem a mediação simbólica. A proibição do contato é assim um anteparo contra a morte que, na sociedade totêmica, o tabu ergue. Para além dele, há o apagamento da fronteira entre o humano e a bestialidade.

A questão então é: qual o ato originário que desencadeia os assassinatos sucessivos? No mito do assassinato do pai da horda proveniente de um comum acordo dos filhos - mito no sentido de que é uma história sem a origem e o autor - o crime deu acesso ao gozo de algumas mulheres. O pai morto é lei. Aí é que ele vai ter direito a alguma coisa. Antes não tinha. O pai da horda gozava de todas as mulheres. O pai morto acaba com o gozo absoluto, gozo sem entraves, colocando um fim na horda patriarcal. O filho herda a lembrança do gozo perdido e o Nome do pai, depois de ter morto o pai (4). Também devemos lembrar o caso de Hamlet, segundo o qual Shakespeare constrói o filho como um herói frágil que tem remorsos com a morte do pai, queima-se do pecado herdado do pai; o pecado de ser do neurótico. Em comparaç ão com esses dois, os crimes perpetrados hoje aparecem como uma força mental herdada que foi adquirida em relação ao Complexo de Édipo.

A montagem cava assim o que ficou esquecido mas preservado pela memória da cidade, onde a alma sebosa, ou a alma penada, reencarna a alma criminosa de um defunto. Isso numa cultura com tradição na transmissão oral, mostra a verdade em um semi-dizer. Com a impressionante abertura, o plano seqüência do movimento do homem no chão parado sem poder andar entre os transeuntes anônimos que reaparece no final entre os féis da procissão religiosa, a câmera é posicionada dentro da cidade para traçar na origem, uma anterioridade ao discurso que recua sempre e, ao mesmo tempo, está presente como traço, em rastro, mostrando que os diretores parecem estar investidos da tarefa de induzir a mesma doença no espectador e isso para levá-lo a restaurar no seu inconsciente, a trama do antigo mito. Já a mú sica cantada no rap sobre a figura de Jesus Cristo, conclama a obscura lembran ça do pai no plano do vôo lento panorâmico mais alto ainda que as favelas, sem o contato com o solo.

Quando o documentário se aproxima do fim, um dos matadores resume o problema ao dizer que é necessário não exterminar indiscriminadamente para, em sua palavras, "não matar o pai", e que, falta-lhe um "lugar de paz". "A gente não pode imaginar nada, a gente tem que acontecer", diz ele, comparando-se a John Lennon, morto por causa da música "Imagine"; na verdade, sua música descreve uma soc iedade paradisíaca mas o seu assassinato ocorreu porque não podia se dizer mais famoso do que Jesus Cristo, sem a medida de seu sonho.

Luna e Caldas terminam, enfim, por fazer um documentário sobre a função da arte em criar um jogo de ficção que permite tirar proveito prazeroso da morte. Seja o prazer na criação do artista. Seja o entretenimento no jogo de futebol em cujo entusiasmo com o gol, nas palavras do matador, atinge "...o orgasmo". Seja o prazer a partir da fonte do trabalho no radialista Cardinot e na repórter fotográfica da Folha de Pernambuco - um jornal popular de Pernambuco no qual as fotos das vítimas de violência mais chocantes são dela - que reconhece ser esquisito achar interessante o corpo por dentro ao invés de preferir fotografar flores. Um processo que todos atravessam com a mesma complexidade, através do qual vão tecendo elos sociais com pessoas ou coisas, fazendo tudo com o amor, a arte e a fruição da beleza para estender o prazer e assim burlar a realidade. Como também fazem de tudo para ficar na imaginação das drogas e comida, um tema de tantos outros filmes que mostram o desconforto radicado pela ilusão de que, aquilo que as promessas das religiões, os avanços da ciência, da tecnologia não podem dar, há de se conseguir em outro lugar.

Ao trovar as mágoas da Morte onde reina o silêncio sepulcral, oposto ao alarido ruidoso de Eros onde pulula a vida, o documentário dá visibilidade à destrutividade na raiz do mal-estar na cultura que se insiste em não ver e impede que a constatação se complete, o que vejo é real. Afinal, o cinema-direto mostra o que está aí, para quem pode olhar.

Autora: Dinara G. Machado Guimarães
Endereço: Rua Macêdo Sobrinho, 53. Ap.401/b. Humaitá. 22271-080. R.J.
Fone FAX: (021) 25275902

NOTAS:

(1) FREUD, Sigmund. Tipos psicopáticos no palco, 1905-06, In. FREUD, S. Primeira edição standard brasileira das obras completas (OC), Rio de Janeiro, Imago, 1972, v.7, p.321.

(2) Idem.

(3) FREUD, Sigmund. Totem e tabu, 1912-13, In. FREUD, S. Primeira edição standard brasileira das obras completas (OC), Rio de Janeiro, Imago, 1974, v.13, p.23.

(4) LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise. O seminário 17. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p.55-110.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 17 - Julio 2003
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