Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
De repente, Sertão
(Pontuações sobre a questão do "desejo do analista" em Freud, recortadas desde a fala de "Riobaldo" em Grande sertão: veredas, de João Gimarães Rosa)
José Marcus de Castro Mattos

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(...) exagerar no escrito é a única chance de se pas sar para outra coisa.
JEAN ALLOUCH.
Letra a letra, transcrever, traduzir, transliterar
(2)

1

Nas páginas seguintes, ficcionalizo o saber. Assim, "Freud", "Frau Emmy von N.", "Riobaldo", "Chuang-Tsê", "Heráclito", "Aristóteles", "Platão", "Heidegger", "N ietzsche" e "Lacan" são, em minha escritura, ao pé da letra (daí as aspas), personagens.

Portanto, na "via régia do Inconsciente" – via ficcional por excelência –, escrevo ex-cêntrico ao Discurso da Ciência...

2

Freud escreve: "Compreendi que minha proibição geral fora ineficaz e que teria de afastar dela suas impressões assustadoras uma a uma. Aproveitei também a oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria de dores gástricas e de onde provinham. (...). Sua resposta, dada a contragosto, foi que não sabia. Pedi-lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer. Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo (...)" (3)

3

O ex-professor Riobaldo, ex-jagunço Tatarana, ex-grande chefe Urutu Branco e ao final de sua vida "quase barranqueiro", diz lá pelas tantas de sua travessia: "A gente só sabe bem aquilo que não entende. " (4)

Então, neste range-rede com vocês, tanto quanto me permitir (cito Riobaldo) " o Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem gracejos" – tranqüilizem-se: trata-se apenas das muitas alcunhas grã-sertanejas do Demônio –, então neste range-rede com vocês, dizia eu, quero refletir sobre o "Freud, cale-se!", lançado de repente por Frau Emmy von N. aos ouvidos do até então aplicado neurologista Prof. Dr. Sigmund Freud.

4

Para então começar, outra vez Riobaldo: "Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal."

Assim, suponho que algo inesperado brota no exato momento em que Freud, obediente a Emmy (uma de suas "geniais histéricas"), afrouxa o nó dos sapatos, o da gravata, cruza os braços, cala-se e posiciona-se à escuta...

Ora, para "curar-se", o que é que Emmy obriga Freud "calar"?

Grã-sertanejamente, respondo: - Com o "Sigmund, cale-se!", Emmy obriga Freud "calar" o seu (dele, Freud) "sempre ensina" – neste momento, com um trocadilho (autoriza-me Lacan a fazê-lo, pois o trocadilho tem valor de interpretação), interpreto: "sempre ensina" diz sempre em cima...

Portanto, naquele delicadíssimo momento, Emmy quer que Freud "cale" o seu (dele, Freud) até ali Discurso do Senhor (como o delimita, hegelianamente, Lacan (5)), isto é, que Freud "cale" o Discurso que tem ouvidos imperativamente apenas para o "claro", o "distinto", o "ordeiro", o "lógico", o "racional", o "sabido", o "antecipado", o "adequado", o "verdadeiro", o "autoconsciente" no pensamento (logo, na linguagem). (No Ocidente, como Nietzsche primeiro, Freud depois, Heidegger em seguida e finalmente Lacan demonstraram / desmontaram, grosso modo este Discurso do Senhor é o Discurso da Razão Metafísica ou o Discurso da Consciência – se se quiser: desde Sócrates-Platão-Aristóteles, o Discurso da Filosofia; desde Descartes-Galileu-Newton, o Discurso da Ciência; desde Maquiavel-Hobbes-Hegel, o Discurso do Estado...)

5

Permitam-me abrir parêntese e ler uma anotação minha, a quarta de uma série intitulada Chuang-Tsê, cinco lições à maneira chinesa de ensinar e que trata de uma estória contada pelo monge taoísta Chuang-Tsê (século III a.C.) a seu discípulo Huy-Tsê.

Anotação:

Chuang-Tsê e Huy-Tsê sentam sobre a ponte do Grande Hao
O Imperador Amarelo está ao norte da Água Vermelha, na Montanha Lun,
Olhando o Mundo – diz Chuang-Tsê
Ao descer, perde a Pérola-Cor-Do-Vento
Ordena então à Filosofia procurá-La, inutilmente
Ordena então à Ciência procurá-La, inutilmente
Ordena então à Análise procurá-La, inutilmente
Ordena então à Lógica procurá-La, inutilmente
De repente, o Nada A encontra
Estranho – diz o Imperador Amarelo -, nada ordenei ao Nada, que nada procurou
Como então em Suas mãos minha Pérola-Cor-Do-Vento?

Vejam:

Do Alto Da Montanha Lun O Imperador Amarelo Observa O Mundo Sob Seu Domínio, Absolutamente Seguro De Que Tudo Se Encontra Na Mais Perfeita Ordem – Absolutamente Seguro De Que Tudo Se Encontra Em A Mais Perfeita Ordem...

Ao descer, perde todavia o que há de mais precioso e cobiçado por todos: A Pérola-Cor-Do-Vento – vocês conseguem imaginar Algo Mais Extraordinariamente Raro E Delicado?

O Imperador Amarelo Desespera-se, pois em A Mais Perfeita Ordem já não se encontra A Mais Extraordinária Raridade E Delicadeza...

Imediatamente Ele Convoca Os Milenares Saberes E Ordena-lhes Que Reencontrem O Perdido Bem: A Filosofia, A Ciência, A Análise (não se trata, ao tempo do Imperador Amarelo, da análise psicanalítica...) e A Lógica partem incontinenti à procura do Tesouro. Munidos de O Imperial Arsenal Da Verdade – tendo em mãos A Razão, O Método e A Certeza -, confiantes pois de em curtíssimo prazo devolverem ao Anel do Imperador o Objeto Único, vasculham criteriosamente o sopé da Montanha Lun, as aldeias vizinhas, os principados próximos, os reinos distantes, mas..., todavia..., no entanto..., contudo..., em cada um deles, nada..., nada..., nada..., nada.

O Imperador Amarelo – nesta altura dos acontecimentos, biliosamente Amarelíssimo –, Sentindo-se Vítima De Um Complô Universal Contra A Sua Pessoa, Envia Agilíssimos Batedores Em Declaração De Guerra Ao Imperador Azul, Ao Vermelho, Ao Branco, Ao Verde, Etc.

Felizmente, antes que todo o Arco-Íris Dos Impérios fosse incendiado, de repente o Nada – incrível, o Nada! – encontra a Pérola-Cor-Do-Vento...

O Imperador Amarelo fica terrivelmente pasmo com o acontecido, pois afinal nada ordenara ao Nada, que nada havia procurado...

¬ "Co-co-como então – gagueja o Imperador – em su-su-suas mãos (na do Nada) mi-mi-minha Pé-Pé-Pérola-Co-Co-Cor-Do-Vento!?"

Inacreditável: O Imperador Amarelo agora trêmulo, vacilante, gaguejante... Logo Ele, Rei Incontestável De Tudo E Todos, General Mil E Uma Estrelas Do Exército, Da Marinha E Da Aero... (não, engano-me, a Aeronáutica ainda não havia sido inventada), Pós-Doutor (pela Universidade Do Saber Imanente E Transcendental) em Filosofia, Ciência, Análise, Lógica, Literatura E Artes Em Geral, logo Ele, enfim, agora surpreso, agora gago, agora – ouso a palavra? – inseguro...

¬ "Mas como? – poderão replicar – a Pérola-Cor-Do-Vento encontra-se novamente incrustada no Anel do Imperador. Tudo voltou à Mais Perfeita Ordem."

¬ Voltou mesmo? – treplico eu -. Aquilo que o Imperador acionara para recuperar o que havia de mais raro e delicado não falhou? O Imperial Arsenal Da Verdade – constituído pela Razão, pelo Método e pela Certeza – não foi incapaz de cumprir com o que, por definição, era de sua alçada realizar, isto é, Absolutamente Tudo Saber Do Todo Do Saber?

O que é que treme, vacila e gagueja pela boca do Imperador?

O que treme, vacila e gagueja pela boca do Imperador – vocês já terão adivinhado – é o Imperial Arsenal Da Verdade...

Por que o Imperial Arsenal Da Verdade treme, vacila e gagueja?

Porque de repente O Nada – O Absolutamente Inexistente – irrompe no Coração (no Cérebro) Do Império tendo em mãos A Mais Extraordinária Raridade E Delicadeza...

Mais, ainda: o Nada não obedecera ordem alguma do Imperador e nada procurara...

Mais, ainda: nada exigia como recompensa...

Mais, ainda: por suas mãos a Pérola-Cor-Do-Vento parecia – sem dúvida todos haviam percebido – não ser "devolvida" mas sim ofertada ao Imperador...

¬ "Então o Nada – de repente ouviu-se em todo o Império – existe!?"

¬ "Então o Nada – de repente ouviu-se em todo o Império – não obedecera ao Imperador e nada procurara!?"

¬ "Então o Nada – de repente ouviu-se em todo o Império – encontrara e ofertara (não "devolvera") a Pérola-Cor-Do-Vento ao Imperador!?"

¬ "O Nada então – de repente suspeitou-se em todo o Império – existe."

¬ "O Nada então – de repente suspeitou-se em todo o Império – não obedecera ao Imperador e nada procurara."

¬ "O Nada então – de repente suspeitou-se em todo o Império – encontrara e ofertara (não "devolvera") a Pérola-Cor-Do-Vento ao Imperador."

O Amarelo Da Bandeira Do Imperador fora sugerido pelo Imperial Arsenal Da Verdade porque Cor Do Sol E Do Ouro, isto é, porque ao mesmo tempo Símbolo Da Clareza Absoluta E Da Absoluta Pureza. Os Súditos Do Imperador – não importa o Lugar de cada um na Hierarquia Universal Dos Seres E Das Coisas – deveriam Para Todo O Sempre, sob o Amarelo Da Bandeira do Império Amarelo, sentir-se Iluminados, e, pois, Cientes De Que Em Verdade Tudo Se Encontrava Verdadeiramente Na Mais Perfeita Ordem Verdadeira. Entretanto...

Entretanto, no Mundo de A Mais Perfeita Ordem de repente irrompe algo de i-mundo (6) – algo, pois, de Absolutamente Outro vis-à-vis à Mais Perfeita Ordem, logo, algo de (se possível) A Mais Perfeita Desordem.

Desde este momento o Imperador Amarelo treme, vacila e gagueja...

Treme, vacila e gagueja porque fala por Ele o Nada, o I-mundo, a Mais Perfeita Desordem – logo, treme, vacila e gagueja porque falha Nele o Tudo, o Mundo, a Mais Perfeita Ordem...

Treme, vacila e gagueja porque fala por Ele o Inexistente, o Irreconhecível, o Imprevisível – logo, treme, vacila e gagueja porque falha Nele o Existente, o Reconhecível, o Previsível...

Treme, vacila e gagueja porque fala por Ele a Quimera, o Não-Identificável, o Estranho – logo, treme, vacila e gagueja porque falha Nele a Realidade, o Identificável, o Comum...

Treme, vacila e gagueja porque fala por Ele a Sombra, o Velado, o Quieto – logo, treme, vacila e gagueja porque falha Nele a Luz, o Revelado, o Falante...

Shakespeare já notara, lembram-se?: Há algo de i-mundo no reino da Dinamarca!

No contexto grã-sertanejo do discurso de Riobaldo, ao perder a Pérola-Cor-Do-Vento o Imperador Amarelo quis inadvertidamente (cito Riobaldo) "rebulir com o sertão, como dono". Mas o sertão, adverte Riobaldo,"era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela..."

6

O sertão virando tigre debaixo da sela do Imperador é a "intromistura" (7) em Seu Mundo de algo inantecipável – de algo, pois, impossível de ser reduzido às operações de reconhecimento (grosso modo, de localização num determinado contexto espaço-temporal) próprias do Discurso do Senhor –.

Para Heráclito este algo inantecipável é o fogo ou o inesperado – em minha tradução, Fragmentos 66 e 18, respectivamente: O fogo irrompe, rompe, re-úne tudo e Na espera, a con-juntura do inesperado –;

¬ para Nietzsche este algo inantecipável é a irrupção abrupta do futuro;

¬ para Heidegger este algo inantecipável é a rasura em cruz do Ser ;

¬ para Freud este algo inantecipável é o além do princípio de prazer ;

¬ para Lacan este algo inantecipável é o Real ou o i-mundo...

Ora, há então Mundo para o Discurso do Senhor – a rigor, no sentido do que estou expondo, só há Mundo para este Discurso –.

O que é que o Discurso do Senhor enuncia como Mundo?

O Discurso do Senhor enuncia como Mundo a totalidade do antecipável, qual seja, a totalidade do identificável espaço-temporalmente – logo, a totalidade do que se encontra (e permanece) sob a lei (a lei do reconhecível, do localizável, do ordenável) –. Evidentemente isto implica na suposição de um saber totalizante: como se trata de uma totalidade antecipável, este saber necessariamente deve antecipar tudo.

Assim, porque há então Mundo para o Discurso do Senhor – porque há a totalidade do antecipável e a necessidade de um saber antecipador desta totalidade –, faltar algo é impossível, perder algo é impossível, errar alhures é impossível. Daí porque, em minha anotação, o Imperador Amarelo recorrer ao Imperial Arsenal da Verdade: menos para que saia à procura da Pérola e mais – muito mais! – para já encontrar em mãos da Razão, do Método e da Certeza o Objeto Único.

Todavia, se bem vistas as coisas, a perda mesma da Pérola já é o inantecipável, já é o sertão, já é o i-mundo. – A rigor, não é o Imperador que "perde" a Pérola: Ela é que, enquanto tal, "Se perde" no Nada – simplesmente porque No Nada Ela Se Encontra Desde Sempre –. Só assim o Nada – o nada de antecipável – pode ofertar (e não "devolver") a Mais Extraordinária Raridade E Delicadeza ao Imperador.

Para o Discurso do Senhor a existência de algo aquém ou além do antecipável – de algo pois aquém ou além dos entes ou dos objetos (do "diante dos olhos" e do "à mão"(8)) – não possui inscrição significante:"Necessariamente o inantecipável não pode ser visto, mostrado e falado". Deste "isso" apenas se diz: "É nada". Curioso: Riobaldo começa sua narrativa exatamente do Nada – "Nonada", ele diz – e sua última palavra instaura este Nada como morada de sua experiência – "Travessia", ele diz –. Portanto, em Riobaldo, do início ao fim de sua fala, a subversão radical do Discurso do Senhor.

7

Lá em sua cabana no sertão da Alemanha (o mundo pós-industrial ainda tem sertão, acreditem) Heidegger lerá neste "É Nada" do Discurso do Senhor precisamente o "esquecimento do Ser" (9). Mais, ainda: o Ser esquecido – "nadificado" –, Heidegger demonstra-o / desmonta-o serenamente (como se também ele, à semelhança de Riobaldo, estivesse tudo nos contando desde sua "boa cadeira grandalhona de espreguiçar"), o Ser esquecido – "nadificado" -, dizia eu, é a própria condição de possibilidade do Discurso do Senhor.

Vejam: o Ser esquecido – "nadificado", isto é, o Nada – como condição de possibilidade do Discurso do Senhor...

Imaginem: o Senhor do antecipável – Senhor pois dos entes, Senhor pois dos objetos – podendo falar (enunciar o Mundo) apenas a partir do Nada...

Alucinem: o Mundo do Senhor – Sua Tradição, Sua Família, Sua Propriedade, Sua Pátria, Seu Partido, Sua Instituição, Sua Lei, Seu Poder, Seu Álibi, numa palavra: Sua MULHER (como observa Lacan) – "sustentado no inantecipável", "sustentado no sertão", "sustentado no i-mundo"...

O Senhor aceitará "isso"?

A resposta é um imediatíssimo – imeditadíssimo – "NNNÃÃÃOOO!!!"

Pois para o Discurso do Senhor – o discurso político em geral, pontua Lacan – a existência (ex-sistência (10)) de algo inantecipável como sendo

¬ por exemplo, em Heráclito – o fogo ou o inesperado, "Isto não passa de uma apreensão mito-poética dos fenômenos"; como sendo

¬ por exemplo, em Nietzsche – a irrupção abrupta do futuro, "Isto não passa de uma construção literária"; como sendo

¬ por exemplo, em Heidegger – a rasura em cruz do Ser, "Isto não passa de um equívoco lógico" ou "Isto não passa de uma tentativa de ir além dos limites da linguagem"; como sendo

¬ por exemplo, em Freud – a pulsão, "Isto não passa de deliberada mistificação"; como sendo

¬ por exemplo, em Lacan – o real ou o i-mundo, "Isto não passa de obscuridade intelectual travestida de poesia".

8

Permitam-me ler outra anotação minha, a terceira de uma série intitulada Heráclito, cinco lições à maneira grega de ensinar e que trata da leitura realizada por Aristóteles dos fragmentos (na anotação, "ossos") de Heráclito.

Anotação:

Tudo, todos pelas ruas: Verão
(Heráclito recolhe-se à página nua: em voz baixa, conclama noites.)
Batem à porta (Deuses?)
Nuvens,
Nuvens depois um estranho (Aristóteles, o nome) lê os fragmentos. Estranha:
– Não há lógica nestes ossos!
Na postura de sua morte (cães espreitam-no sob o esterco), Heráclito, O Obscuro, Pensa crianças:
Um pé humano mede o Sol

 

Então, para Aristóteles "não há lógica" nos ossos de Heráclito. – Por quê? Porque Aristóteles quer encontrar nos "ossos de Heráclito" a mesma estrutura de antecipação de Mundo presente em seu (dele, Aristóteles) Discurso. Aristóteles, então, ao "ler" Heráclito, já deseja antecipar em sua leitura o Mundo.

Ora, nos "ossos de Heráclito" – Aristóteles não vê isso com bons olhos – não há estrutura de antecipação de mundo – "logo, não há Discurso, não há Mundo".

Veredicto de Aristóteles (11): "Há algo de biologicamente errado com este homem (Heráclito): ao insistir em falar por paradoxos, o sentido de suas palavras torna-se para nós ininteligível, inapreensível, incomunicável. Não compartilhamos do mesmo mundo. Mas terá ele (Heráclito) um mundo?"

Interpreto: "Há algo de biologicamente correto comigo (Aristóteles): ao insistir em falar por silogismos, o sentido de minhas palavras torna-se para os senhores inteligível, apreensível, comunicável. Compartilhamos do mesmo mundo."

Neste "mesmo mundo" em que Aristóteles acredita poder abrigar-se – por extensão, abrigarem-se os homens "biologicamente corretos" – não há portanto lugar para os que, como Heráclito, falam por "paradoxos". (Platão – Mestre de Aristóteles – já não prescrevera a expulsão dos poetas da República Governada Por Filósofos?)

A "lógica" deste "mesmo mundo" (o mundo dos casos idênticos, diz em algum momento Nietzsche), quando aplicada aos "recuperáveis", é a da denúncia pública:

¬ trata-se de levar o outro, observa Barthes, "ao supremo opróbrio: contradizer-se" (continua Barthes: "alguém que permanecesse impassível diante da ironia socrática (...) seria a abjeção de nossa sociedade: os tribunais, a escola, o asilo, a conversação iriam convertê-lo em um estrangeiro: quem suporta sem nenhuma vergonha a contradição?" (12)); quando aplicada aos "irrecuperáveis", é a da renúncia pública:

¬ trata-se de levar o outro, observa Foucault, "para fora do mundo, internando-o no hospício" (13) (por exemplo, a petição assinada pelos arlesianos exigindo "providências" contra Vincent van Gogh (14)).

Para Riobaldo, no entanto, quem vive neste "mesmo mundo" não viu "muitas nuvens"; não sabe (não quer saber) que "o sertão está em toda parte"; que o azougue maligno "está misturado em tudo"; que "quem muito se evita, se convive"; que "viver é muito perigoso "; e que de repente – de repente pode-se perder a Pérola-Cor-Do-Vento...

Fecho parêntese. Volto à "genial histérica" Emmy von N.

9

Heráclito diz o seguinte (Fragmento 19, em minha tradução): Não saber ouvir, não poder falar.

Emmy, em sua "linguisteria" (a expressão é de Lacan), radicaliza este "osso" do Obscuro, pois com seu "Sigmund, cale-se!" ela diz heracliticamente: Não saber calar, não poder ouvir.

Então: Heráclito (Fragmento 19) "mais" Emmy ("Fragmento linguistérico") "igual a": Não saber calar, não poder ouvir, não poder falar.

¬ Freud, então, naquele momento, cala o seu "sempre ensina / sempre em cima": sobre suas pernas cruzadas a pasta contendo o Discurso do Senhor está se fechando;

¬ Freud, então, naquele momento, pode ouvir um discurso outro: sobre suas pernas cruzadas a pasta contendo o Discurso do Senhor é fechada;

¬ Freud, então, naquele momento, pode falar um outro discurso: sobre suas pernas cruzadas a pasta contendo o Discurso do Senhor é substituída por páginas avulsas contendo as primeiras linhas da Psicanálise...

Este "outro discurso" nascido de um "discurso outro" sabe calar sobretudo a si mesmo / sabe calar sobre tudo em si mesmo.

Que nome dar a este "outro discurso"?

Lacan, no Seminário, chama-o "discurso do analista" ("discurso do mestre zen") – discurso, por excelência, "desde" o Real ou o i-mundo.

Riobaldo, no Grande sertão: veredas, chama-o "range-rede " – discurso, por excelência, "desde" o sertão ou o sem-lugar.

O Discurso do Senhor é uma (em latim) dicta dura – um discurso que objetiva calar o outro para poder falar desde si mesmo e de si mesmo.

O range-rede grã-sertanejo do mestre zen é uma (em latim) dicta suávia – um discurso que objetiva calar a si mesmo para poder ouvir o outro falar.

Em seu range-rede-zen no Colégio de França, Barthes disse certa vez que aquele que sabe calar para poder ouvir alcança a Sapientia: a fala do sábio é então aquela que não possui "nenhum poder ", pois "para alimento das retinas" (como escreve Drummond) basta-lhe (volto a Barthes) "um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível" (15).

10

Concluo: com seu "Cale-se!", Emmy flagra em Freud o "sempre ensina / sempre em cima". De repente então Emmy abre o i-mundo: oferta (e não "devolve") a Freud a Pérola-Cor-Do-Vento.

Riobaldo diz: "Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa". Então, Riobaldo continua: "O senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende".

 

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Psicanalista. Consultório: Rua Dois de Dezembro, 78 / 801, Catete Business Center, Catete, Rio de Janeiro (RJ), Brasil (Br). Tels. (21) 2205 58 56 / (21) 2265 76 82 / (21) 9888 41 85 / jmcastromattos@uol.com.br

(2) ALLOUCH, Jean. Letra a letra, transcrever, traduzir, transliterar, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1994: 18.

(3) FREUD, Sigmund. "Frau Emmy von N.", in Obras completas, Rio de Janeiro: Imago, 1975: 107.

(4) ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: 01 ss. (As próximas citações do romance de Rosa não serão numeradas – são trechos muito breves e esparsos no texto do escritor -, devendo pois o leitor remeter-se a esta nota.)

(5) O Discurso do Mestre pode ser lido, hegelianamente, como Discurso do Senhor. Não cabe aqui, todavia, a demonstração desta afirmativa. Para provisoriamente sustentá-la, cito Lacan: "O que sobra é exatamente, com efeito, a essência do senhor – a saber, o fato de que ele não sabe o que quer. (...). Eis o que constitui a verdadeira estrutura do discurso do senhor. O escravo sabe muitas coisas, mas o que sabe muito mais ainda é o que o senhor quer, mesmo que este não o saiba, o que é o caso mais comum, pois sem isto ele não seria um senhor. O escravo o sabe, e é isto sua função de escravo. É também por isto que a coisa funciona, porque, de qualquer maneira, funcionou durante muito tempo." (LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992: 30.) E Alain Juranville: " (O Discurso do Senhor) é o discurso mais comum. Discurso por excelência, uma vez que sua tese é que tudo deve submeter-se à lei, que há um mundo como totalidade exclusiva ordenada pela lei. Há um saber sobre tudo. É a tese que encontramos no discurso político em geral, que é a forma essencial do Discurso do Senhor. A idéia de que o saber possa constituir uma totalidade é, diz Lacan, imanente ao político." (JURANVILLE, A. Lacan e a filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987: 299.)

(6) "(...) o que é que é estranho, não a uma dada antecipação, mas a qualquer antecipação de sentido? De modo algum os fenômenos que, decorrendo de um sentido certamente novo, por ser inédito, têm lugar no mundo dos homens, ou no mundo próprio deste ou daquele, com o risco de modificar este mundo, mas sim fenômenos para sempre externos a qualquer mundo, e portanto, de certa maneira, i-mundos." – JURANVILLE, A. "O inconsciente e o i-mundo, o inantecipável e o sintoma", in Lacan e a filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987: 39.

(7) O termo é de Lacan. Cf. "Da estrutura como intromistura de um pré-requisito de alteridade e um sujeito qualquer", in MACKSEY, Richard & DONATO, Eugenio (Org.). A controvérsia estruturalista, São Paulo: Cultrix, 1976: 198 – 212.

(8) Para Heidegger o "diante dos olhos" e o "à mão " operam a "lida com o mundo". Nas páginas de Ser e Tempo (1927) estes termos buscam, à sua maneira, contextualizar adequadamente a marxiana "união da teoria com a prática".

(9) HEIDEGGER, Martin. "Que é metafísica?", in Conferências e escritos filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1989: 35 –51.

(10) "Ex-sistência" – em Heidegger, a existência do Dasein "aberta" pela questão do Ser; em Lacan, a "não-inscrição" do Real vis-à-vis o Simbólico.

(11) Citado por Diógenes Laércio em "Vida e doutrina dos filósofos ilustres", in LEÃO, Emmanuel Carneiro. Heráclito e a aprendizagem do pensamento (apostila inédita).

(12) BARTHES, Roland. O prazer do texto, São Paulo: Perspectiva, 1977: 08.

(13) FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979:79 ss.

(14) Resposta de Vincent: "Eis a verdade: um certo número de pessoas daqui (Arles) dirigiu ao presidente da Câmara (...) uma carta (com mais de oitenta assinaturas) apontando-me como um homem indigno de viver em liberdade ou qualquer coisa no gênero. O comissário de polícia, ou o comissário principal, deu então ordem para me internarem novamente. (...). Assim, eis-me aqui há longos dias fechado na sala onde se metem os loucos, com chaves, ferrolhos e guardas, sem que a minha culpa esteja provada ou seja mesmo provável. (...). Claro está que no foro íntimo de minha alma tenho muito a dizer de tudo isto. Claro está que não me poderia zangar e desculpar-me pareceria, pelo contrário, acusar-me num caso destes. (...). Assim, podes imaginar como foi um golpe em cheio quando vi que havia aqui tantas pessoas que eram suficientemente covardes para se agruparem contra um homem só e, ainda por cima, doente." (VAN GOGH, Vincent. Cartas a Théo, Porto Alegre: LPM, 1986: 251 – 252.)

(15) BARTHES, Roland. Aula, São Paulo: Cultrix, 1980: 47.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 17 - Julio 2003
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