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Tudo isso é uma tarefa pessoal minha, mas sempre começo recebendo algo algo um pouco vago, mas precioso . Começo sendo alguém que recebe um dom e, a seguir, sendo um amanuense desse misterioso espírito.
JORGE LUIS BORGES,
Entrevista com a imprensa brasileira (1984)KANT COM SADE
Kant com Sade: a peste. Pior, porque encore ("mais, ainda" ) ou en corps ("no corpo"): de um lado (Kant), o categórico imperativo moral Deseje! ; de outro (Sade), o categórico imperativo a-moral Goze! . Faces irmãs da moeda Supereu, ou, se preferirem, da moenda Outro feroz, famígero, fascista (o fascismo, observa Barthes, não é "impedir de", mas obrigar a).
Ora, antes de Freud era Kant sem Sade a rigor, se assim era, não havia nem Kant nem Sade (menos, naturalmente, para os universitários de plantão). Sim, porque a condição de possibilidade de Kant é Sade & a possibilidade da condição de Sade é Kant.
Concretamente: a condição de possibilidade de Kant é Sade porque o projeto crítico do Mestre de Königsberg é a descomunal démarche de um "neurótico" (2) para nada saber do Gozo a-crítico que o causa; a possibilidade da condição de Sade é Kant porque o projeto crítico do Mestre de Charenton é o hercúleo esforço de um "perverso" (3) para nada saber da Lei a-crítica que o causa.
Então: projeto crítico kantiano ("legiferante"): causado pelo a-crítico Gozo & projeto crítico sadiano ("gozante"): causado pela a-crítica Lei. Mas como? Gozo & Lei a-críticos? Gozo & Lei no sentido que Kant empresta à palavra puros? Gozo & Lei portanto dogmáticos? Gozo & Lei enfim arbitrários?
A Obra-Freud lida, interpretada, re-escrita e transmitida por Lacan testemunha-o : Gozo & Lei "a-críticos" fundam e/ou estruturam e/ou causam, logicamente, o Sujeito ("barrado"); Gozo & Lei "puros" fundam e/ou estruturam e/ou causam, conseqüentemente, neste Sujeito, a sexualidade ( "pulsões parciais"); Gozo & Lei "dogmáticos" fundam e/ou estruturam e/ou causam, conclusivamente, nesta sexualidade, o desejo ("não-todo"); Gozo & Lei "arbitrários" fundam e/ou estruturam e/ou causam, (in)felizmente, neste desejo, o horror...
Pois é, o horror : em ambos os casos (Kant & Sade) casos clínicos, posto que não há outros casos , o que ocorre finamente sob os nossos olhos é, pela face "negativa" (neurótica), o crítico-transcendental horror de Immanuel ao Gozo do Outro não há outro gozo senão o do Outro (4) , e pela face "positiva" (perversa), o não menos crítico-transcendental (apesar das aparências) horror de Louis-Alphonse- Donatien à Lei do Outro não há outra lei senão a do Outro .
Contudo, este horror é a um tempo tempo lógico , posto que não há outro tempo senão o Tempo do Outro (o Outro é... paraconsistentemente lógico!) , este horror, então, dizia eu, é a um tempo ódio & amor. Pontuemos: em Kant, ódio ao Gozo & amor à Lei ("a dura lei moral em meu peito"); em Sade, ódio à Lei & amor ao Gozo ("uma vez abertas as comportas, fica impossível saciar-se").
Isto posto, avanço o seguinte: Kant avec Sade (1963) é talvez o mais delirante (5) dentre os matemas de Lacan, logo, com espinosiana precisão (como os outros), mentado para reativar a virulência da experimentação gnosiológico-clínica (6) inaugurada por Freud reativar porque, sabe-se, esta virulência foi rapidamente neutralizada pelas pastorais caídas da pena e da prática medíocres dos que pretenderam "superar" o Mestre de Viena (a propósito, cito Lacan: "[...] não se trata de superar Freud quando a Psicanálise, segundo Freud, como dissemos, voltou à etapa anterior [pré-psicanalítica]. // Pelo menos, é isso que nos afasta de qualquer outro objetivo senão o de restaurar o acesso à experiência que Freud descobriu"(7)) . Kant avec Sade (1963) é portanto talvez a mais incandescente estela da transmissão freudiana realizada por Lacan, a pedra de toque do ensino deste "pelo menos um" que soube outorgar cidadania lógica & topológica à Psicanálise, resgatando-a "Peste para todo o sempre!" (bradava Freud a Jung (8)) das mãos ineptas dos diluidores.
Com efeito, a inteligibilidade de Kant avec Sade (1963) está no conectivo... O com (avec) sugerira eu no início significa encore ("mais, ainda") ou en corps ("no corpo"): Freud re-escrito por Lacan exige que extraiamos "ainda mais" de Kant, "ainda mais" (encore) que permitem?, psilacanalistas postulamos "no corpo" (en corps), corpo que, à sua delicada maneira trata-se, wittgensteinianamente, de ética & estética (9) , Louis-Alphonse-Donatien de Sade pôde (valho-me de uma expressão deleuziana) fazer ranger...
Avanço pois que este matema de Lacan seriam as páginas "faltantes" dentre as saídas da pena lúbrica (R) & lúcida (S) & lúdica (I) de Freud (ÿ) (10) logo, páginas que o Mestre de Paris, à maneira de "Pierre Menard" (o mais exemplar personagem mentado por Borges), traz a uma cena outra e assina como suas . Este ato poético, sem dúvida produz uma conseqüência inusitada (implícita, todavia, no "retorno a Freud"): a clínica psicanalítica a rigor, psilacanalítica é a da ficção, a saber, tal clínica testemunha linha por linha nas entrelinhas, sobretudo a re-escritura do Texto do Outro. Por outras palavras sim, exatamente: por outras palavras , ao bem-dizer a Ausente-Causa (um dos Nomes-do-Real) o analisando re-escreve o Texto do Outro, e, ao final se houver final , assina-O.
...& BORGES
Abro parêntese para ouvirmos o narrador (Borges, talvez?) e "Pierre Menard" (11):
O narrador : "Aqueles que insinuaram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote contemporâneo caluniam sua límpida memória. //. Não queria compor outro Quixote o que é fácil mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem palavra por palavra e linha por linha com as de Miguel de Cervantes." (: 32 33.)
Pierre Menard: "Meu propósito é simplesmente assombroso." (:33.)
O narrador: "Ser no século vinte um romancista popular do século dezessete pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote afigurou-se-lhe menos árduo por conseguinte, menos interessante que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Pierre Menard." (:33.)
Pierre Menard: "Minha empresa não é essencialmente difícil. Bastar-me-ia ser imortal para realizá-la." (:34.)
O narrador: "Confessarei que costumo imaginar que a concluiu e que leio o Quixote todo o Quixote como se o tivesse pensado Menard?" (:34.)
Pierre Menard: "Posso premeditar sua escritura, posso escrevê-lo, sem incorrer em tautologia. (...) é indiscutível que meu problema é bastante mais difícil que o de Cervantes. Meu complacente precursor não recusou a colaboração do acaso: ia escrevendo a obra imortal um pouco à la diable, levado por inércias da linguagem e da invenção. Contraí o misterioso dever de reconstruir literalmente sua obra espontânea. Meu solitário jogo está governado por duas leis polares. A primeira permite-me tentar variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda obriga-me a sacrificá-las ao texto original e a raciocinar irrefutavelmente sobre essa aniquilação... Convém somar outra, congênita, a esses entraves artificiais. Compor o Quixote no início do século dezessete era uma empresa razoável, necessária, quem sabe fatal; nos princípios do vinte, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre eles, para citar um apenas: o próprio Quixote." (: 35.)
O narrador: "Apesar desses três obstáculos, o fragmentário Quixote de Menard é mais sutil que o de Cervantes." (:35.) //. O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão seus detratores; mas a ambigüidade é uma riqueza.)" (: 36.) //. Não há exercício intelectual que não resulte ao fim inútil. //. (...). Pierre Menard empreendeu uma tarefa complexíssima e de antemão vazia. Dedicou seus escrúpulos e vigílias a repetir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os apontamentos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas. Não permitiu a ninguém examiná-las e cuidou que não lhe sobrevivessem. Em vão, procurei reconstruí-las." (: 37.)
Retomo minha exposição.
Kant avec Sade (1963) documenta psilacanaliticamente, por um lado, a re-escritura que o "neurótico" Immanuel Kant (1724 - 1804) realiza do Texto do Outro, interpretando-o como "Lei"; por outro lado, documenta a re-escritura que o "perverso" Louis-Alphonse-Donatien de Sade (1740 - 1814) realiza do Texto do Outro, interpretando-o como "Gozo". Neste sentido, "Lei" terá sido por excelência a ficção logicamente estruturante do "filósofo" KANT (decisiva assinatura um dos Nomes-do-Pai na estória (12) da Filosofia); e "Gozo" terá sido por excelência a ficção logicamente estruturante do "escritor" SADE (decisiva assinatura um dos Nomes-do-Pai na estória da Literatura).
Ora, o "psicótico" (pelo menos quanto à tentativa de rigor (13)) Jacques Lacan (1901 - 1981) por sua vez testemunha o com Kant avec Sade (1963) , com que, embora implícito, jamais aflorou à pena de Freud... E se testemunha, inapelavelmente re-escreve: "retorno a Freud" terá sido por excelência a ficção logicamente estruturante do "psicanalista" LACAN (decisiva assinatura um dos Nomes-do-Pai na estória da Psicanálise).
Se terá sido assim (14), face à fantasia se houver fantasia o Sujeito do Inconsciente seria o amanuense "Pierre Menard", borgiano personagem às voltas com a presentificação com o despertar-assinante ("escriturante") (15) de um Texto (o do Outro) estruturalmente mítico, anônimo, extemporâneo...
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(2) "Para Lacan, Sade (a perversão) enunciaria a verdade do pensamento moral de Kant (a neurose)." JURANVILLE, A. Lacan e a filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987: 182 - 183. (Para o desenvolvimento desta diferença e, pois, referência entre Kant e Sade eu remeto o leitor ao excelente capítulo Lei do desejo e violência: a interpretação perversa da castração op. cit.: 182 - 188.)
(3) "(...) Sade desvela melhor [do que Kant] o que em realidade se passa nessa relação do homem com a lei [da castração] (...). //. Segundo Lacan, o que Sade mostra, e que não cessa de se dissimular na concepção kantiana, é a presença na lei do gozo do Outro. //. Finalmente, Sade teria destacado o que está oculto em Kant: a crueldade do Outro da lei, e o gozo que ele retira por fazer com que o sujeito (...) passe pela violência que leva até além do prazer e dos limites de seu ego." JURANVILLE, A. Op. cit.: 184.
(4) A rigor, o gozo é do Outro Real . Testemunham-no as psicoses. LACAN, J. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998: 537 - 590. E também LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. Neste seminário, sobretudo o capítulo intitulado Do gozo (op. cit.: 09 - 23) cito Lacan: "O que é o gozo? Aqui ele se reduz a ser apenas uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve para nada." (: 11.) // Aí está o dito para o que concerne ao gozo enquanto sexual. De um lado, o gozo é marcado por esse furo que não lhe deixa outra via senão a do gozo fálico. Do outro lado, será que algo pode ser atingido, que nos diria como aquilo que até aqui é só falha, hiância, no gozo, seria realizado? (: 16.) // O gozo, enquanto sexual, é fálico, quer dizer, ele não se relaciona ao Outro [ao gozo do Outro] como tal." (: 17 18.)
(5) Porque uma criação ex-abrupto. A propósito, quando da invenção do Outro (em francês, Autre ) Lacan diz: "Esse outro, nós o escreveremos, se vocês o admitirem, com um A maiúsculo. // E por que com um A maiúsculo? Por uma razão sem dúvida delirante, como a cada vez que se é forçado a empregar signos suplementares àquilo que é fornecido pela linguagem." LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988: 48. (Grifo meu, JMCM.)
(6) Experimentação gnosiológico-clínica porque a) relativa ao saber inconsciente e b) relativa à direção do tratamento.
(7) LACAN, J. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998: 590.
(8) "Em 7 de Novembro de 1955, em sua conferência sobre a coisa freudiana pronunciada em alemão em Viena, (Lacan) mencionou pela primeira vez a visita a Küsnacht (visita a Jung): É assim que o dito de Freud a Jung, da boca de quem eu o devo, quando, convidados ambos pela Clark University, chegaram diante do porto de Nova York e sua célebre estátua que ilumina o Universo: Eles não sabem que lhes trazemos a peste, lhe é devolvido como sanção de uma hybris cuja antífrase e sua perfídia não extinguem o confuso brilho. // Esse suposto dito de Freud foi ouvido como algo que ia muito além de qualquer esperança. Na França, com efeito, ninguém duvida da realidade subversiva do freudismo; sobretudo, ninguém ousa imaginar que Freud certamente jamais pronunciou essa frase durante sua viagem aos Estados Unidos, em 1909, acompanhado de Jung e de Ferenczi. Entretanto, o estudo dos textos, das correspondências e dos arquivos mostra que Jung reservou apenas a Lacan essa preciosa confidência. Em suas Memórias, fala da viagem mas não faz nenhuma alusão à peste. Por seu lado, Freud e Ferenczi jamais empregam a palavra. // Imbuído dessa confidência de que era o único depositário, Lacan inventou portanto uma ficção mais verdadeira que o real, destinada a impor, contra a psicanálise dita americana, sua (dele, Lacan) própria retomada da doutrina vienense, doravante marcada pelo selo da subversão. E se essa visão de uma peste freudiana chegou a se estabelecer tão bem na França, a ponto de os próprios não-lacanianos acreditarem hoje que ela pertence a Freud, é que se inscrevia na continuação direta dessa exceção francesa da qual Lacan, após ter sido o difamador, era ao mesmo tempo o herdeiro e o renovador." ROUDINESCO, E. Jacques Lacan, esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, São Paulo: Companhia das Letras, 1994: 272 - 273.
(9) "Proposição 6421 É claro que a ética não se deixa exprimir [em proposições elementares determinantes da univocidade de sentido]. A ética é transcendental [inscreve-se na plurivocidade de sentido, e, pois, na equivocidade]. (Ética e estética são uma só.)" WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus, São Paulo: EDUSP, 1993: 277.
(10) A pena lúbrica (R) & lúcida (S) & lúdica (I) de Freud (ÿ), a saber, a Obra-Freud como "enodação sinthomática" (R S I. ÿ). LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975 - 1976), inédito.
(11) BORGES, J. L. "Pierre Menard, autor do Quixote", in Ficções, Porto Alegre: Editora Globo, 1976: 29 - 38.
(12) Sim, estória (e não história). Borges insiste inúmeras vezes que a Filosofia e as ditas Ciências Humanas (incluindo-se a Psicanálise) eram "ramos da Literatura Fantástica". De bom grado, Lacan e Derrida concordariam.
(13) "(...) ele próprio (Lacan) chegou a declarar francamente que era psicótico. Eu o cito exatamente ele foi dizer isso aos americanos e o que lhes disse caiu como um balde de água fria: Diria que sou psicótico, e acrescentou: pela única razão que sempre tentei ser tomado ao pé da letra. No fundo, nessa época (segunda metade dos anos 70), ele definia a psicose como uma tentativa de rigor. (...) qualificar assim a psicose não é fazer uma espécie de brincadeira, uma vez que seu caráter essencial é ser não-dialética, não mais do que a lógica matemática." MILLER, J. A. "Lacan e psicose", in Matemas I, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996: 174.
(14) A temporalidade própria do Inconsciente "estruturado como uma linguagem" (Lacan) é a do Nachträglich ("só-depois"). Ora, "só-depois" discursivo-ficcionalmente é o futuro-anterior, a saber, terá sido.
(15) O despertar é impossível ao Sujeito do Inconsciente? Ora, Lacan ele mesmo supôs haver despertado: "Sou suficientemente mestre da alíngua (lalangue), aquela dita francesa, por ter conseguido isso eu mesmo, o que fascina testemunhar do gozo próprio do Sinthome, gozo opaco por excluir o sentido. (...). Só há despertar através desse gozo." LACAN, J. "Joyce le symptôme", conferência no V Simpósio Internacional James Joyce (16 de Junho de 1975), in Joyce avec Lacan, Paris (France): Navarin, 1987: 22.